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Nelson Felix

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Main Publications

1998
Nelson Felix

2001
Nelson Felix

2005
Trilogias

2006
Camiri

2011
Concerto para encanto e anel

2015
O OCO

2020
Berceuse

© Nelson Felix All rights reserved

O artista como cosmógrafo

Cláudio Oliveira - 2022
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A CARTA LACRADA DE NELSON FELIX PARA OS TEMPOS DE GUERRA E PANDEMIA

Antonio Gonçalves Filho - 2022

Exposição concebida na quarentena ocupa Galeria Millan e seu anexo com esculturas de mármore e peças com lacre francês

27/04/2022

O Estado de S. Paulo

Em 1980, o artista carioca Nelson Felix escreveu que a nossa civilização “visou quase sempre o passado ou o futuro, sendo o presente geralmente esquecido”. Evocando a filosofia do francês Serge Raynaud de la Ferrière (1916-1962), Felix concluiu: se o passado não existe e o futuro também não, então realizar o presente é a única verdade. Foi assim que nasceu a exposição Carta de Amor, dirigida ao mundo contemporâneo. Nela, Felix exibe uma série de esculturas em mármore de Carrara e peças que usam lacre francês, hastes de bronze com espinhos, vasos de cactos e uma rosa escarlate.

A exposição ocupa dois lugares, a Galeria Millan e o seu anexo a poucos metros de distância. No primeiro, uma única obra cruza dois andares, ligados por uma haste de mármore que atravessa verticalmente o piso superior e segue por um buraco aberto no teto do andar de baixo. Num momento futuro, essa haste vai formar uma cruz com o eixo do Sol, garante Felix, replicando um procedimento de uma outra obra sua mais antiga, Grafite (1985-1988) – basicamente o encontro de duas hastes esculpidas em grafite em que uma delas era colocada paralelamente ao eixo do Sol.

No presente, Carta de Amor é uma dádiva de Felix à humanidade num momento de crise marcado pela tragédia de uma guerra e uma pandemia. “O mundo está muito feio”, sentencia Felix. Concebida justamente durante o confinamento compulsório da covid-19, Carta de Amor é o que sugere o título: a fusão do êxtase erótico com o espiritual. O crítico Rodrigo Naves já observou o que há no trabalho de Felix uma “espiritualidade laica”. Nele, o corpo humano se integra ao mármore numa composição híbrida que faz pensar sobre as relações entre ciência e arte – vale lembrar que o pai do artista era médico e o tio, Moacir Felix, um poeta e diretor da conceituada editora Paz e Terra. Carta de Amor é também um tributo à memória de ambos, unindo a ciência do pai e a poesia do tio.

Polos. Duas obras que abrem a exposição no anexo da Millan fazem, inclusive, referência a dois grandes poetas, a portuguesa Sofia de Mello Breyner Andresen (1919-2004), de matriz platônica, sempre às voltas com questões transcendentais, e o espanhol Joan Brossa (1919-1998), surrealista, irônico, subversivo. Entre esses dois polos oscila Felix, mas sua Carta de Amor tem ainda outra natureza, que não é outra senão a mensagem de Rilke a seus pares: a celebração da união entre o transcendental e o humano.

No “espaço cósmico interior” de Felix caberiam outros poetas. Ele pensou no antifascista Cesare Pavese (obra em progresso), mas saiu na frente o simbolista Mallarmé, citado na peça dedicada a Joan Brossa – na figura de um alegórico dado. Como se sabe, Mallarmé é autor do poema tipográfico Um Coup de Dés, em que o poeta francês diz: “Um lance de dados jamais abolirá o acaso”. A referência é propositalmente direta. Em outros casos, ela não é tão literal. O visitante da exposição vai buscar relações entre Felix e obras dos quatro artistas por ele escolhidos para dialogar com seu trabalho atual na Millan: Arthur Barrio, David Almeida, Mira Schendel e Paulo Pasta.

Êxtase

Peça de mármore que se assemelha a uma mordida de molde de prótese é carregada de erotismo

Mira fez uma série (a do “ouro”) em que o metal – incorruptível na tradição cristã e utilizado no passado para distinguir figuras santas – surge como um signo da individuação no caótico. Paulo Pasta, um pouco coo os renascentistas, usa a figura de um portal para separar o mundo físico do metafísico. Barrio é o caótico em busca de organização espacial. David Almeida se localiza pela memória dos lugares que passou. Enfim, todos tem a ver com Felix, mas cada um de modo diferente.

O que se verifica, por exemplo, nas esculturas em mármore, é a busca de um estado de suspensão advindo de uma poética arquitetônica: os grandes blocos de Carrara por vezes escondem um osso occipital em sua base, mas também podem escancarar outras formas orgânicas como uma “mordida” (erótica) registrada no mármore como um molde de prótese dentária. Em ambos os casos, são obras de um mestre digno de ocupar o lugar de Tunga.

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“TIVE UMA PERCEPÇÃO MUITO PROFUNDA DO QUE É ESTAR SÓ” COM A EXPOSIÇÃO 'ENSAIO PARA O DESCONFORTO', NELSON FELIX APRESENTA DESENHOS, FEITOS DURANTE A PANDEMIA, NA SP-ARTE, QUE OCUPA O PAVILHÃO DA BIENAL DE HOJE A DOMINGO EM SÃO PAULO

Nai Frossard - 2022

06/04/2022

Segundo Caderno. O GLOBO

Para os gregos, a origem do pensar é o thauma, que significa espanto ou perplexidade. Toda a explosão provoca espanto, e Aristóteles já dizia que a surpresa e a admiração causadas por um momento de perplexidade podem tirar uma pessoa da inércia e a lançá-la em busca de conhecimento e reflexão. Em seu novo projeto solo, o artista plástico Nelson Felix, de 68 anos, fala sobre a explosão que a poesia faz nesse estado repentino de espanto, quando uma pessoa se depara com a percepção de algo maior. A exposição “Ensaio para o desconforto” será apresentada pela Galeria Millan na 18ª edição da SP-Arte, que será realizada de hoje a domingo no Pavilhão da Bienal no Parque Ibirapuera.

FLORES NO TRABALHO

O novo trabalho de Felix estará num estande individual da galeria e traz 13 desenhos, incluindo um desenho-escultura, no qual o artista utilizou mármore, lacre vermelho e caules de rosas. O lacre em vermelho – presente nas obras da série ‘Vazio Sexo’ volta nesse trabalho de forma mais intensa, composto com o caule de rosas moldado em bronze.

- Como eu já estive envolvido em trabalhos com as mimosas pudica (flor conhecida como dormideira) e com os cactos, comecei a observar as rosas. Ela entrou no meu trabalho quando eu comecei a pensar sobre o reino vegetal profundamente - conta o artista, que vive há 40 anos numa casa cercada pela mata atlântica, em Nova Friburgo. - Fiquei completamente embebido de usar elementos vegetais no trabalho. Então comecei a colocar as mimosas em contato com os cactos. É a possibilidade do toque, o momento do espanto e da poesia – reflete Felix, gesticulando as mãos acostumadas a criar esculturas que podem pesar toneladas, construídas no ateliê que mantém ao lado de sua casa.

Uma das 13 obras expostas na SP-Arte tem escrito “Ao Sul tem espinho” por trás de uma camada de lacre vermelho. Para o artista, esta é a poesia desse trabalho.

- Tem uma coisa mais simbólica. O Sul é um hemisfério que foi menosprezado, mas tem muita espiritualidade. As coisas brotam no sul, que é esquecido e tem uma potencialidade latente. Eu mostro uma reflexão sobre a ideia de rosa, sobre uma flor que contem espinho. A rosa tem espinhos mas em compensação tem pétalas de extrema beleza e suavidade. O simbolismo é essa relação imediata entre o espinho e a suavidade. Uma potencialidade que explica por que o Sul tem espinho - afirma Felix, para quem há algo mais poético, que vai além do conceito. – O conceito você entende e, acabou: você aprendeu alguma coisa. A poesia não quer ensinar nada, ela nunca acaba, tem um lado meio obscuro, meio amorfo, que reaparece numa situação diferente, às vezes depois de anos. O trabalho fala sobre essa ideia de desconforto e da necessidade de uma coisa reaparecer e trazer transformação. O trabalho é uma ode a isso.

A exposição “Ensaio para o Desconforto” estava guardada há dois anos, porque foi preparada às vésperas da pandemia.

- O trabalho sempre se chamou assim, e então veio a Covid-19, que foi o próprio desconforto - conta Felix que durante a pandemia lançou o sétimo livro de sua obra: ‘Berceuse’ (Martins Fontes), que abarca 33 anos de trabalho. Para ele, nada mudou com o confinamento, já que exerce naturalmente o distanciamento social onde vive. Em Nova Friburgo, Felix saiu recentemente da pequena casa que morava para outra, menor, a poucos metros da primeira, transformada num local para estudos e desenhos. Mas sua verdadeira casa é o enorme ateliê, com pé-direito de oito metros e grandes blocos de Carrara

- (Na pandemia) Senti até umas pequenas culpas porque vi que muita gente morrendo. E eu também corria um risco de pegar a doença. Mas não tive urgências vindas de fora e eu me senti muito bem, a vida ficou muito mais fina pra mim e com períodos de alta sofisticação mental, de realizações, de alinhamento de coisas – diz Felix, que gosta da distância. - Tive uma percepção muito profunda do que é estar só, e isso envolve a distância. Eu tenho que saber que estou meio longe. Mas essa distância requer comunhão: de um lado extremamente interno e o outro de ter que se expor ou expor meu trabalho. É como se fosse o adubo para gerar esse estado mais poético.

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Nelson Felix: desenho no mundo

Cláudio Oliveira - 2021

1 de fevereiro de 2021

Revista Cult

A mais antiga língua foi a música (…). A mais antiga escrita foi pintura e desenho (…)

Johann G. Hammann

Quando consultamos um dicionário de grego antigo em busca de informações sobre o verbo grápho, vemos que seu sentido original descreve uma ação muito precisa: “arranhar, raspar, esfolar, roçar, ralar”. Aplicada à superfície de uma matéria sólida (madeira, rocha, osso, metal), essa ação deixa na superfície arranhada uma marca, um traço, um rastro. Por exemplo (são exemplos da Ilíada de Homero), a ação de arranhar uma pedra com a ponta de uma lança ou a ação de inscrever signos numa tabuleta de cera ou de barro (certamente a origem dos nossos atuais tablets). É a partir desse sentido original que surgem os sentidos derivados de “representar através de linhas, delinear, desenhar, pintar”; e, num segundo momento, o sentido de “se expressar através de caracteres escritos, escrever”. O movimento de gênese semântica descrito pelo verbo grapho é, portanto, este: arranhar, desenhar, escrever. Nessa ordem.

Há, então, um mesmo gesto, na origem, que define tanto o desenhar quanto o escrever, tanto os desenhistas quanto os escritores, mesmo que suponhamos, corretamente, que o desenhar preceda o escrever, que os desenhistas precedam os escritores. O escrever, nesse sentido, seria um modo derivado de desenhar, as letras seriam, em última instância, desenhos. Ao escrever – podemos assim nos expressar – desenhamos letras. Mas ambas as ações, desenhar e escrever, são modos derivado de um arranhar primordial. Mesmo quando, depois, se começou a utilizar pigmentos para desenhar e escrever nas superfícies, o mesmo verbo grápho continuou a ser usado pelos gregos para descrever essas ações. Como se, ao desenhar ou escrever com pigmentos, nós arranhássemos uma superfície e ali deixássemos marcas, a própria tinta virando uma ranhura.

Uma das mais antigas escritas humanas, os hieróglifos egípcios, também trazem como marca essa indeterminação entre desenho e escrita, entre imagem e letra. Desde que se tornou, para toda a humanidade, um conjunto de signos incompreensíveis, houve muitos esforços de diferentes povos e períodos históricos em decifrar essa escrita e uma das coisas que impediam sua decifração era o pressuposto de que se tratava de uma escrita puramente ideogramática. Foi só com a redescoberta da Pedra de Roseta, em 1799, que se pôde entender que os hieróglifos são uma escrita ao mesmo tempo ideogramática e fonética, que mistura imagens e letras, sem descontinuidade entre elas. Em 1822, Jean-François Champollion conseguiu decifrar completamente os hieróglifos, dando origem assim à egiptologia. Podemos supor que a dificuldade em decifrar a Pedra de Roseta e os hieróglifos antigos estava ligada a uma dificuldade de entender essa indiscernibilidade entre imagem e letra, desenho e escrita, ideograma e fonema, à nossa insistência em pensá-los como pertencentes a campos distintos, esquecendo sua origem comum.

Algumas décadas após a descoberta de Champollion, na virada do século 19 para o século 20, Freud precisou entender essa indiscernibilidade para decifrar uma outra Pedra de Roseta: o sonho. Ao analisar a principal formação do inconsciente, Freud se deu conta do caráter de rébus que o caracterizava, ou seja, o sonho mistura imagens, palavras, números, letras de modo não descontínuo.

A referência freudiana ao rébus aparece logo na abertura do capítulo seis de A interpretação dos sonhos. É ali que o pai da psicanálise se propõe a entender o que ele chama de “o pensamento do sonho”. Para ele, o sonho seria uma tradução desse pensamento. Mas essa tradução do pensamento em sonho se faz através disso que Freud chama de uma Bilderschrift, ou seja, de uma escrita com imagens. Essa escrita com imagens apresenta aquela mesma indiscernibilidade entre imagem e letra, desenho e escrita que vimos no sentido original do verbo grego grápho e nos hieróglifos egípcios. Enquanto rébus, um sonho é tanto imagem quanto palavra, tanto escrita quanto desenho. Para o inconsciente, esse trânsito entre os dois sentidos do verbo grego grápho está sempre se fazendo. É através desse trânsito que isso pensa

Ora, toda a obra do artista carioca Nelson Felix me parece marcada, desde o início, por essa indiscernibilidade entre os dois sentidos derivados do verbo grego grápho, por essa indiscernibilidade entre a imagem e a escrita, mas também por seu sentido original: por essa ação de arranhar não só o papel, mas também a própria superfície do globo terrestre, fazendo desenhos no mundo. Esse sentido original do verbo grego grápho estaria presente não apenas em seus desenhos, como me parece óbvio, mas também em suas esculturas e ações ditas escultóricas, mas que poderíamos também pensar como ações gráficas. Isso fica particularmente explícito no livro que ele acaba de publicar pela Editora WMF Martins Fontes e que será lançado em São Paulo nesta terça (2), como uma homenagem tanto a Iemanjá quanto a Dorival Caymmi, que imortalizou a data em uma de suas mais belas canções. Caymmi, como se sabe, é uma das maiores influências de Nelson Felix.

Trata-se de um livro-objeto, sem textos de críticos, teóricos ou curadores. Nele, o próprio artista se apresenta através de desenhos e fotos dos seus trabalhos, sejam eles esculturas ou ações escultóricas. O livro é, portanto, tanto um livro quanto uma obra de arte, e reatualiza, nesse sentido, mais uma vez, aquela mesma indiscernibilidade entre escrita e desenho. Assim como o inconsciente, é com imagens que Nelson Felix escreve seu livro, mas essas imagens comportam também palavras, letras, traços. Nelson Felix: berceuse (WMF Martins Fontes) é tanto uma série de desenhos quanto um objeto escultórico. Mas é também uma narrativa que conta uma história: a história de como esses desenhos, ações e esculturas foram gravando no mundo, ao longo de muitos anos, um único trabalho que o artista pode, agora, finalmente apresentar como um único gesto: um desenho no mundo, uma cosmografia.

Comecemos pelos desenhos, pois se trata de um livro todo ele desenhado. Até mesmo a capa, a dedicatória, o índice (ou os índices) são desenhos – a única exceção são as fotografias e os créditos das fotografias, escritos em letras tipográficas.

Sempre que fala de seus desenhos, Nelson Felix diz que desenhar é o modo como ele pensa; que o pensamento de seus trabalhos se realiza sempre na forma de desenhos. Quando esteve em Paris, entre 2017 e 2018, por um período de seis meses para “pensar” o trabalho que ele apresentaria na 33º Bienal de São Paulo (Esquizofrenia da forma e do êxtase), Nelson Felix fixou um mapa mundi na parede do apartamento em que morou, que eu tive a chance de visitar por estar fazendo um pós-doutorado na cidade no mesmo momento.

No mapa, marcou quatro lugares e deu títulos a eles. O trabalho previa duas ações nos extremos do continente americano: Ushuaia, na Argentina, ao sul, e Anchorage, no Alasca, ao norte. Esses dois pontos do mapa ele chamou de “local de escolha”. A cidade de São Paulo, onde estava previsto que a exposição aconteceria, chamou de “local de matéria”. E Paris, onde ficaria “pensando” o trabalho durante seis meses, chamou de “local de pensamento”. O local de pensamento não era senão o local em que fez todos os desenhos relativos ao trabalho, desenhos que viriam a ser expostos, durante o mesmo período da Bienal de São Paulo, na Galeria Millan.

Para mim, ao visitar o apartamento, fazia todo o sentido que aqueles desenhos, que misturavam imagens com palavras, letras com traços, fosse chamado pelo artista de o pensamento do trabalho e que aquele “local de pensamento” fosse de fato um “local de desenho”. Ao ver os desenhos, imediatamente pensei no que Freud chamou de pensamento do sonho ou de pensamento inconsciente, pois os desenhos, como os rébus dos sonhos, misturavam indiscriminadamente imagens e palavras. O pensamento da obra de Nelson Felix é um pensamento gráfico, naquele sentido original do verbo grego grápho a que nos referimos acima: tanto desenho quanto escrita, tanto imagem quanto letra. Talvez não seja exagero dizermos que esse sentido original do verbo grego esteja na origem de todo o trabalho de Nelson Félix, se pensamos que sua obra começa precisamente com os desenhos em grafite que ele fez nos anos 1980.

Após uma primeira exposição de aquarelas, na Galeria Jean Boghici do Rio de Janeiro, que obteve grande sucesso, ele resolve zerar o seu trabalho e começar de novo. Como ele mesmo diz numa entrevista publicada em seu primeiro livro: “Quando eu fiz a exposição no Jean Boghici, notei que aquilo que os desenhos estavam passando não me interessava, e quis zerar o velocímetro.” Após abandonar a aquarela, ele inicia então um trabalho com grafite. Ao se propor um novo início, a escolha do grafite vem da seguinte questão que ele se coloca: “O que primeiro veio à cabeça foi me perguntar o que era o desenho: desenho é lápis e papel”. Ora, podemos igualmente responder, se nos perguntarmos o que é a escrita: “escrita é lápis e papel”.

Talvez, então, não seja um acaso Nelson Felix ter partido precisamente do grafite, uma matéria que recebe seu nome da própria ação realizada através dela: desenhar e escrever. Mas foi também esse trabalho com o grafite que levou Nelson Felix ao outro elemento fundamental do seu trabalho: a referência cósmica. Os desenhos com grafite darão origem a uma das mais importantes esculturas de Nelson Felix, aquela à qual ele deu precisamente o nome de Grafite (1985/1988). Nelson usa nesse trabalho, para esculpir, a mesma matéria que ele já estava usando para desenhar. Como se o grafite passasse do papel bidimensional para o espaço tridimensional, sem descontinuidade, como um desdobramento natural. Como se uma escultura fosse um modo de arranhar o espaço, de “grafar” em três dimensões. Como se esculpir fosse, a seu modo, uma ação gráfica.

O trabalho consiste em duas hastes esculpidas em grafite (uma delas com budas de ouro em seu interior) posicionadas no espaço expositivo de tal forma que uma delas está na mesma posição do eixo do sol. Como diz Nelson Felix, na mesma entrevista anteriormente citada: “Aquela peça completamente torta no espaço é a única coisa certa cosmicamente.” Essa ideia de uma referência cósmica do trabalho com o grafite será muito importante para tudo o que o artista fará em seguida e é o que me permite aqui avançar a ideia de que já nesse trabalho do artista se tratava do início da sua cosmografia. A partir de Grafite, vários trabalhos de Nelson Felix passam a se orientar a partir de referências cósmicas. Os 23 graus de inclinação do eixo da terra em relação ao eixo do sol viriam a marcar outros trabalhos futuros do artista. São exatamente esses trabalhos cosmográficos que são objeto do livro publicado agora, Nelson Felix: Berceuse.

Berceuse, podemos ler em um dos desenhos publicados no livro, “é o ato que torna circular o trabalho”. Berceuse, portanto, não é o título do livro. O título do livro é Nelson Felix: Berceuse (teremos que pensar, mais tarde, esses enigmáticos dois pontos do título). Berceuse é o nome de um ato do artista, aquele que torna circular o trabalho. Mas de que trabalho se trata?

Trata-se, na verdade, de um conjunto de trabalhos, que só por este ato se tornam um único trabalho circular. São eles: Cruz na América (1985-2004), Concerto para Encanto e Anel (2005-2009), Método Poético para Descontrole de Localidade (2008-2017) e, finalmente, Esquizofrenia da Forma e do Êxtase (2017-2018). Esses trabalhos são, eles próprios, por sua vez, também, cada um deles, um conjunto de trabalhos. São todos esses trabalhos que se tornam um só (mesmo que guardando, cada um deles, sua singularidade) pelo ato ao qual Nelson Felix dá o nome de Berceuse. Como ele escreve em outro desenho do livro, esses trabalhos descrevem “um só movimento contínuo”.

São esses quatro trabalhos que levam, ao todo, em torno de trinta e três anos para serem concluídos, e que fazem com que o artista se desloque no globo terrestre, atravessando continentes e oceanos, que, por um ato chamado Berceuse, se tornam um único trabalho. E é desse ato que nasce o livro Nelson Felix: Berceuse.

As quatro obras também podem ser entendidas musicalmente, como é sugerido em vários desenhos do livro, como quatro óperas, cada uma delas com suas diversas árias, cada trabalho representando uma dessas árias. A dimensão musical, de grande importância para Nelson Felix, também deve ter contribuído para a escolha do nome Berceuse, que é o título de composições muito conhecidas de Chopin e Brahms, dentre outros compositores. Trata-se, com Berceuse, de amalgamar ações separadas no tempo e no espaço, temas, eles próprios, da cosmografia de Nelson Felix.

Além desses quatro trabalhos, há ainda dois outros que Nelson Felix inclui no livro, como uma espécie de prefácio e que por isso aparecem antes do índice. Eles estão aqui por sua importância e afinidade com os projetos de Berceuse. São eles o já citado Grafite (1985-1988) e a famosa Série Gênesis (1985-2014), uma sucessão de trabalhos que é concluída vinte e nove anos após o seu início, fazendo referência ao tempo que Saturno leva para dar uma volta em torno do sol. De novo aqui vemos a referência cósmica como estruturante do trabalho.

Esses três trabalhos, Grafite, Série Gênesis e Cruz na América, todos datados pelo artista como tendo início no ano de 1985, demarcariam o início dessa cosmografia, desse desenho no mundo, que encontra seu fim trinta e cinco anos depois, com a publicação de Nelson Felix: Berceuse. É como se, com Berceuse, esse desenho no mundo (não por acaso título de um dos trabalhos do projeto), ficasse finalmente pronto e o artista nos convidasse a admirá-lo em seu todo.

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Arte & Ensaio

Nelson Felix - 2018
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Sobre realizar pensamento - uma conversa com Nelson Felix

Gabriela Kremer Motta - 2017
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Nelson Felix: o hiato e o sublime na arte contemporânea.

Taisa Palhares - 2017
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Nelson Felix: Imagens de Pensamento

Taisa Palhares - 2015
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Nelson Felix não mora mais aqui

Rodrigo Naves - 2015

para José Artur Giannotti, Luiz Felipe de Alencastro, Roberto Schwarz e Ronaldo Brito

Há no trabalho de Nelson Felix uma espiritualização laica do mundo: nem um materialismo pedestre (em que o mundo é idêntico a si mesmo), nem um espiritualismo angelical (em que a transcendência não instila leveza no mundo). Para encontrar, o artista precisou perder inúmeras vezes. Como diz a sabedoria zen (e Picasso repetiu-a astutamente): “Não procure, encontre”. Aqui são narradas e analisadas suas peripécias.

Nelson Felix nunca se contentou com a objetividade impositiva da realidade. Ao contrário da aspiração de parcela considerável da arte contemporânea — a arte povera e o minimalismo, por exemplo, [1] movimentos importantes na formação do artista —, ele sempre tentou conferir presença esquiva aos materiais com que trabalhou. Grafite, uma escultura de 1988-1989, por exemplo, é formada por duas hastes de grafite (um mineral) com forte aspecto orgânico. O volume dos bastões tem uma constituição irregular e curvilínea, lembrando uma jiboia a digerir sua suculenta refeição. A aparência externa do grafite prensado, lisa e homogênea, remete a um organismo vivo, com uma interioridade indiscutível, graças a um mimetismo arguto.

As muitas línguas esculpidas ao longo de sua trajetória, tão próximas da serialidade minimalista, serpenteavam pelo espaço, movidas por energias diversas, dependendo do contexto metafórico em que Nelson as inseria. Podiam ser cabelos, cobras ou uma espécie de força ondulante, sustentada por dezenas de pequenas esculturas do Buda, pensador admirado pelo artista.

O próprio corpo humano se infiltrava nos materiais em que era moldado (o ferro, por exemplo), tornando-os menos severos. Esculpidas em mármore, suas partes — ou os vazios que as compõem — partilhavam uma dimensão clássica com que Nelson Felix dialoga [2] e uma estranheza advinda do fato de não sabermos ao certo diante do quê nos encontramos.

Desde muito cedo (faço aqui algumas pontuações mais por motivos didáticos do que por atenção à cronologia dos trabalhos), esse esforço para problematizar realidades idênticas a si mesmas levou o artista a valorizar o contexto em que inseria suas obras. Ou seja, procurava estabelecer relações que ampliassem o alcance das obras isoladas. Grafite (a mesma escultura mencionada acima) já deixava claro o interesse de Nelson Felix por realidades que fossem além dos territórios que nos são familiares: galerias, cidades, desertos ou florestas. Uma antiga insatisfação do artista com o que chamamos “composição” — a disposição de uma obra no espaço segundo certas convenções — o conduziu a sobrepor as duas grandes hastes de grafite que formavam a obra, de modo a criar um ângulo de 23,30 graus, a inclinação do eixo da Terra em relação ao eixo do Sol. Uma das hastes é colocada paralelamente ao eixo do Sol. Com isso, sua posição em relação aos limites do espaço expositivo é desconsiderada. Em outros termos, haveria sempre um elemento deslocado ou descomposto em relação a essas duas grandes balizas imaginárias (os eixos). Por certo, nossos sentidos não poderiam perceber todo o alcance dessa decisão, que procurava colocar a escultura em contato com uma dimensão literalmente planetária. Informações exteriores à dimensão sensível da escultura precisavam entrar no jogo para que a obra adquirisse um significado mais amplo.

 

Sua intervenção na terceira edição do Arte/Cidade, em 1997, também apontava uma preocupação semelhante. No Moinho da Luz, uma fábrica desativada em região bastante degradada da cidade de São Paulo, Nelson serrou três quadrados na laje de um dos andares do prédio. Sustentadas por cabos de aço fortemente tensionados, as partes secionadas pendiam um pouco acima da laje do piso inferior. Mais que os cortes na laje, a ação da gravidade evidenciada por essa intervenção sem dúvida punha o edifício em contato direto com todo o jogo de forças — ele também planetário — que preside essa lei física. Porém, outra vez seria necessária uma série de mediações conceituais para se estabelecerem os nexos entre a tensão dos pedaços de laje sustentados pelos cabos e sua relação com a massa e a distância entre os planetas, que determinam a lei da gravidade.

Acredito que o Grande Budha, 1985, possibilitou ao artista imaginar uma estratégia que colocasse essa necessidade de mediações para a fruição plena das obras num novo patamar. Com o interesse de trabalhar uma escala ampla e meio indefinida, Nelson faz uso da floresta como se ela fosse um material escultórico. Para isso, escolhe um mogno e fixa seis garras de latão ao redor da árvore centenária, numa área da floresta amazônica localizada no Acre. Com a passagem do tempo, seria possível perceber um conjunto de fenômenos amplos e abrangentes. À medida que a árvore crescesse, as garras penetrariam o tronco, revelando a potência da natureza. A violência implicada na intervenção tinha um sentido paradoxal: em vez de dominar a árvore, revelaria sua vitalidade. No meio da enorme floresta, aquela árvore específica adquiria um aspecto que a tornava ainda mais singular.

O estabelecimento da posição do Grande Budha teve uma origem consideravelmente arbitrária. Alguns acontecimentos fortuitos, além de uma maior possibilidade de realização de trabalhos dispendiosos, fizeram Nelson Felix dar outro passo em relação a suas intuições. Em 1997, o Itaú Cultural convidou-o para participar de um projeto chamado Fronteiras. A proposta, que envolvia outros artistas, visava à realização de trabalhos de arte em regiões limítrofes, não necessariamente geográficas.

O convite levou Nelson a escolher uma localidade perto de Uruguaiana, quase na fronteira entre Brasil e Argentina. Ali ele realizou Mesa, 1997-1999, um trabalho com aspectos semelhantes ao Grande Budha. Uma chapa de aço de 51 metros de extensão e quarenta toneladas foi apoiada sobre tocos de eucalipto. Em cada um dos lados da placa foram plantadas onze mudas de figueira-do-mato, uma árvore imponente e longeva. Depois que os apoios de eucalipto apodrecerem — e simultaneamente as mudas crescerem —, os troncos das árvores irão prensar a mesa de aço, envolvendo e deformando aquele grande e regular objeto de metal e transferindo um pouco de potência orgânica a uma peça de origem industrial.

Quase por curiosidade — mas, digamos, seguindo uma inclinação para desdobrar suas experiências de forma sistemática —, Nelson uniu com uma reta os pontos em que se situavam Grande Budha e Mesa. Dois biomas distintos — a floresta amazônica e os pampas — abrigavam as obras, embora ambos se caracterizassem por “vegetações” diversas uma da outra.

O artista então encontrou o meio dessa linha e fez passar um traço perpendicular sobre ela. Dirigindo-se para o leste, a uma distância semelhante àquela que separava o ponto dos dois outros trabalhos (ao sul e ao norte), Nelson Felix encontra um habitat oposto: o deserto do Atacama, no Chile. No ponto determinado, são produzidas seis fotos em que a velocidade da máquina foi definida pelo batimento cardíaco do artista. A máquina foi apontada para as direções em que se encontravam os outros trabalhos, para o zênite e para o nadir. Posteriormente, ele buscou a direção oposta, até encontrar o elemento que falta ao deserto: a água. E no litoral do Ceará ele abandona uma esfera de mármore, cravejada de pinos de ferro. Ao longo de muitos anos, a oxidação do ferro levará a uma dilatação crescente do metal e, consequentemente, à destruição da esfera.

As ações realizadas no deserto e no litoral receberam o nome de Vazio coração, 1999-2004. E a interseção das duas linhas que cortavam o continente de norte a sul e de leste a oeste tornou-se Cruz na América, 1984-2004, o primeiro conjunto de obras que Nelson Felix agrupou sob um nome comum. Um tempo mais ou menos longo permeava todos os trabalhos que formavam a cruz. Como garrafas de náufrago, levavam mensagens que talvez fossem lidas, talvez não. Todas elas, porém, reforçavam aquela busca de ruptura com realidades dadas que sempre moveu o artista, pois falavam de um método para induzir a perda de controle sobre as coisas.

Tempo e espaço são noções complexas que podem ter suas ambiguidades reduzidas por meio do estabelecimento de convenções amplamente reconhecidas, que afastam da mensuração de ambos as dimensões subjetivas. Nelson Felix tenta encontrar um caminho distante tanto da objetividade do relógio e da fita métrica quanto da experiência estritamente subjetiva de uma espera angustiante ou da distância que se interpõe entre um sedento e uma fonte de água. Cruz na América constitui-se pelo entrecruzamento de tempos particulares e heterogêneos. A integridade da esfera de mármore atirada ao mar difere em muito do crescimento do tronco de um mogno ou das imagens proporcionadas por um obturador regulado pelo batimento de um coração solitário.

Em todas elas, porém, a dimensão impessoal da marcação do tempo é substituída por um processo imaginativo que cada uma das relações (esfera/mar; garras/floresta; mesa/figueiras; coração/fotos) desencadeia nos indivíduos. A passagem do plano conceitual para o da imaginação torna o vínculo entre observador e obra mais dependente dos sentidos e da experiência. O processo de oxidação do ferro — que, expandindo os cravos, fará a esfera destroçar — tem uma concretude totalmente distinta daquilo que a oração “três séculos de acontecimentos desastrosos” denota. A cadeia de acontecimentos que envolve a água salgada, os pinos de ferro e a esfera de mármore, por ser mais indeterminada que a relação gramatical entre os cinco vocábulos, estimula a imaginação de uma maneira diversa. Quanto mais claras as relações, menor a possibilidade de fazê-las afetar a imaginação. O choque entre duas bolas de bilhar aguça menos a imaginação do que um “boa-tarde”.

O contato entre o mármore, o ferro e a água salgada possibilita que a imaginação literalmente viaje, enquanto simula as ações recíprocas entre os três elementos. A progressiva oxidação dos pinos de ferro desfará a forma regular deles, levando-os a expandir-se lentamente, até que, num dado momento, a esfera de mármore, que as marés e as correntes marítimas arrastaram a seu bel-prazer, tenha sua resistência vencida, e seus fragmentos passarão a conviver com os demais seres marinhos, podendo, quem sabe, juntar-se aos incontáveis grãos de areia de uma praia remota qualquer.

Esse passeio da imaginação que se move apoiada em balizas frágeis, como pequenos saguis vagando pelos cipós de uma floresta, tem traços comuns a várias práticas de meditação, por mais difícil que seja a sua caracterização. Essas práticas meditativas oscilam entre concentração e contemplação, entre a capacidade de manter a mente numa direção precisa e seu esvaziamento em busca de uma contemplação prazerosa ou gozosa, como a nomeiam os religiosos. Ainda que a série Cruz na América seja pontuada apenas por quatro trabalhos, o observador é levado a percorrer com a imaginação (desde que a obra o atraia) todos os longos e irregulares caminhos que definem a obra. Os quatro pontos que imantam a cruz só conseguem fazê-lo por serem eles mesmos trabalhos que se recusam a uma objetividade estanque, movendo-se sempre para além de si mesmos, como a imaginação.

Nelson Felix tem uma habilidade gráfica incomum nos dias de hoje, uma época em que o desenho praticamente deixou de ser uma mediação para a realização de obras de arte, sejam elas pinturas, esculturas ou instalações. A primeira individual de Nelson, na galeria Jean Boghici, no Rio de Janeiro, em 1980, expunha aquarelas de uma precisão notável do ponto de vista técnico e figurativo. Em muitas outras situações, ele lançou mão dessa habilidade para simular possíveis efeitos de alguns projetos (as figueiras deformando a longa chapa de ferro de Mesa, por exemplo). Em 2013, no Instituto Tomie Ohtake, em São Paulo, foram expostos mais de cem desenhos que o artista realizou durante o processo de desenvolvimento das séries 4 cantos, 2008, e Verso, 2013.

Os desenhos mostrados na ocasião tinham uma aparência e uma natureza totalmente diversas daqueles com que Nelson iniciou sua trajetória. À maneira dos processos meditativos, esses desenhos conduziam a um envolvimento crescente com as questões que o ocupavam. Em vez de serem esboços tentativos de uma imagem apenas vislumbrada, eles proporcionavam uma concentração crescente e um afastamento constante em relação àquilo que não dissesse respeito ao trabalho em jogo. Em depoimentos gravados, Nelson Felix menciona de formas variadas seu encanto com que ele chama de “pensamento”. Eu mesmo ouvi dele inúmeras declarações sobre isso, e confesso que apenas há pouco tempo cheguei a entender melhor a que se referia.

Para Nelson Felix, “pensamento” não diz respeito àquilo que poderia também receber o nome de “raciocínio”, “elucubração”, “consideração”, “observação” ou “reflexão”, como é mais ou menos corrente. Para ele — que usa esse termo à exaustão —, a palavra designa um processo inseparável dos desenhos. Acredito mesmo que não conseguiria pensar sem lápis e papel nas mãos. Para ele, o que conta no ato de pensar é precisamente a obtenção de uma correspondência entre, digamos, o cérebro e os movimentos corporais (os traços sobre o papel), uma unidade que, com diferenças, também diz respeito ao processo erótico. O substantivo “pensamento” designa então uma antecipação dos amplos (e sintéticos) processos que movem a quase totalidade de seus trabalhos, posto agora numa escala humana e não planetária.

Esse conjunto de procedimentos tornou-se central na poética do artista, mesmo porque oferecia saídas a dificuldades que as vertentes mais conceituais da arte contemporânea tendem a escamotear: a necessidade excessiva de explicações para que as obras sejam assimiladas. Restituir aos sentidos a capacidade de ampliar o campo da experiência e das significações tornou-se decisivo num contexto social em que, com frequência, a percepção e os sentidos têm sido as vítimas mais fáceis de práticas regressivas e conservadoras, e isso pelos mais diversos caminhos: da música comercial à literatura de autoajuda, passando por toda sorte de apelações sentimentais que tendem a tornar a experiência sensível do mundo sinônimo de reações banais e imediatas.

Se os sentidos podem levar a emoções baixas, o que dizer de tantos sistemas filosóficos, políticos e religiosos que conduziram a desastres inomináveis que testemunhamos até hoje (e que certamente não pararão por aí)? Uma das origens desse viés totalitário não se explicaria justamente pela ênfase quase imemorial na subordinação da matéria ao espírito, do corpo à alma? Uma pessoa verdadeiramente alegre dificilmente saberia defender dualismos tão primários. Apenas uma grande obra de arte é capaz de nos fazer experimentar uma relação de unidade não violenta entre corpo e alma, sejam lá quais forem os nomes que se queira dar a esse par imemorial. A emoção física proporcionada por uma obra grandiosa é o indicador mais seguro da intensificação de nossas possibilidades. A alegria de uma tela de Matisse aponta, por meio de uma experiência real, que podemos ir além de uma identidade satisfeita consigo mesma.

Em Concerto para encanto e anel, 2005-2009, 4 cantos, 2004-2008, e Verso, 2013, Nelson Felix volta a trabalhar com conjuntos de obras movidas por operações semelhantes. E com eles consegue provar como as soluções propostas nesses trabalhos obtiveram potência estética também em contextos diferentes.

A forma encarnada que a meditação ganhou nesses trabalhos proporcionou ao artista conquistar um estatuto estranho para a obra de arte — distante tanto das mediações excessivamente narrativas e conceituais de parte da arte contemporânea quanto da materialidade da arte pós-minimalista (Richard Serra e Eva Hesse, por exemplo). Como se tivesse alcançado um novo modo de intervir na natureza, Nelson Felix realizava uma land art suave. Ao invés de mover toneladas e mais toneladas de terra e pedra, obteve uma presença digna para a realidade natural por meio de operações pontuais, que a envolviam num contexto poético de alta intensidade sensível.

Outros fenômenos têm também a capacidade de criar aproximações radicais entre os corpos, entre os seres. Entre eles, o erotismo foi aquele que levou Nelson Felix a realizar um de seus melhores trabalhos: Vazio sexo. Parte da força do trabalho vem da figura geométrica paradoxal que elegeu para representar o erotismo: um cubo. Tivesse se decidido por uma esfera, tudo ficaria bem mais direto. De fato, o círculo metaforiza de perto esse contato em que os corpos deixam de ser norteados por critérios como alto e baixo, direita e esquerda etc. Por mais que sejam os corpos humanos que ponham em ação o jogo erótico, é também ele, o sexo, a via privilegiada para colocarmos em xeque os padrões antropomórficos de localização e orientação, conduzindo-nos a situações de riquíssima desorientação visual.

Em vez de escolher a figura que mais se aproximaria do sexo e sua problematização das individualidades, Nelson optou por chegar à ideia de continuidade por meio de um fazer inteiriço. O cubo de que ele partiu tornou-se a geratriz das formas que o atravessaram de alto a baixo, de todos os lados. Trabalhando sem lançar mão de emendas que rompessem a unidade do bloco inicial, Nelson logrou criar um cubo menor dentro do cubo inicial, obedecendo à unidade original. A inteireza do bloco inicial acompanhou desde o início a obtenção de um duplo no seu interior, como ocorre na tradição das esferas concêntricas de marfim ou jade de origem chinesa.

Os oito cantos dos cubos se mantiveram com toda sua angulosidade. No entanto, o aspecto arejado da trama conferia total comunicação entre as dimensões dos dois sólidos. O problema da quadratura do círculo (dado um círculo, construir um quadrado com a mesma área) obtinha aí uma solução poética. E a porosidade total dos corpos atingida no êxtase erótico talvez não obtivesse experiência mais pertinente. O cubo menor era ligeiramente deslocado por um calço com o molde do interior de uma vagina fundido em prata: também é do erotismo fazer-nos perder o prumo. Se Cruz na América havia realizado a dimensão de concentração da prática meditativa, Vazio sexo era seu lado contemplativo, o estado de suspensão proporcionado pelo êxtase erótico.

A preocupação com a problematização da identidade dos seres fará com que o artista se empenhe em conferir estatuto lábil às formas que participam de seus próprios trabalhos, sem o qual seu projeto teria pés de barro. Os anéis são recorrentes em suas obras. A poética do devaneio meditativo de Nelson Felix não pode prescindir dos movimentos circulares, desde que o ponto de partida não seja um duplo simétrico do ponto de chegada, justamente porque eles apenas apontam o começo e o fim de uma trajetória crítica, na qual as coisas serão postas em xeque, em crise, e deverão mudar. Como na tradição das peregrinações, caminho é o outro nome das transformações radicais.

Em Concerto para encanto e anel, há dois trabalhos em que os anéis têm forte peso: Camiri e Cavalariças. Em ambos, os anéis apresentam um sentido praticamente oposto, dada a inserção em tramas de forças diversas. Camiri foi concebido e realizado entre 1999 e 2006 para o Museu da Vale do Rio Doce, perto de Vitória, no Espírito Santo. O título da mostra corresponde ao nome da cidade boliviana que se encontra no cruzamento das duas linhas de Cruz na América. Afinal, é da natureza da meditação a busca constante de novos elos que possibilitem seu prosseguimento. Num grande galpão, são dispostas 27 vigas de ferro paralelamente ao plano do chão, a pouco mais de um metro de altura (para ser mais preciso, no nível dos olhos do artista). A partir da última viga, seguem-se doze outras traves de ferro dispostas numa inclinação de 23 graus em relação ao corpo do galpão. A última dessas vigas atravessa um grande anel de mármore de 2,32 metros de diâmetro. No seu interior repousam dois outros anéis, menores.

As dezenas de vigas traçam dois planos no interior do galpão, inclinados um em relação ao outro. Ambos, porém, compõem-se a partir da disposição diversa de unidades idênticas, todas lineares, numa dinâmica serial que também ecoa as discussões minimalistas. Apenas os três anéis se distinguem da geometria dominante. E o anel maior (e mais visível) interrompe a continuidade das barras paralelas. Ele ganha ainda mais evidência por ser uma figura geométrica associável ao movimento (a roda) que, nesse caso, paradoxalmente, suspende o andamento das vigas de ferro. Em Camiri, o grande anel que depois também fará parte de Cavalariças desempenha um papel mais formal na constituição da obra, ela mesma fortemente apoiada em variações espaciais que dependem em boa parte de disposições geometricamente variadas de unidades idênticas. Mas atenção: trata-se de uma forma delicada que interrompe um movimento envolvendo muitas toneladas de aço.

Outra é a solução apresentada em Cavalariças. Nas antigas cavalariças do palácio da família Lage — no qual desde 1975 funciona a Escola de Artes Visuais do Parque Lage, na cidade do Rio de Janeiro —, foram fincadas verticalmente 68 vigas de ferro já utilizadas em Camiri. Mais ao centro do espaço, quatro das vigas sustentam no seu alto o mesmo grande anel do Museu da Vale. A área da parte superior das quatro vigas é menor que a da parte inferior. O grande anel, que estava preso às vigas por fortes amarras, quando solto, produzirá torções e deformações impressionantes no ferro que, por sua disposição, impedia que a força da gravidade se cumprisse.

No novo trabalho, porém, o anel se transforma totalmente. Já não é a figura geométrica que detém metaforicamente uma dinâmica estrutural. Ao contrário, faz lembrar um cruel empalamento, como numa das séries gravadas mais violentas de Goya: Los desastres de la guerra [Os desastres da guerra], 1810-1815. Muda também, aqui, a significação que o sexo adquire na obra de Nelson Felix. Em Vazio sexo, um cubo vazado representava a inteireza de homens e mulheres no momento do êxtase erótico. Agora uma forma nada angulosa surge como o foco mesmo do sexo entendido como violência e dor.

 

II

 

Desde que a noção de verossimilhança — de representações que se assemelhassem a uma visão da realidade — deixou de balizar a criação artística, as artes visuais, paradoxalmente, não pararam mais de ceder espaço ao mundo e a suas contingências, por mais que a arte se afastasse da representação da realidade. A recusa consciente ao caráter diferenciador da experiência estética — ou seja, o afastamento voluntário e progressivo de qualquer complexidade formal que diferenciasse os trabalhos de arte dos demais objetos do mundo — foi um dos responsáveis por alguns aspectos importantes, e repletos de armadilhas, da arte de nossos dias. Richard Serra escreveu certa vez que as obras dos minimalistas eram homeless (sem-teto). Com mudanças, a observação seria extensível a parte considerável da arte contemporânea.

Uma vez que estavam impossibilitadas de criar novas espacialidades (pois isso significaria ceder à arte e se afastar da vida), as artes visuais foram habitar espaços já existentes. A hipertrofia de museus, centros culturais, fundações de arte, bienais, feiras e demais instituições não tem a ver somente com as democracias de massa e sua necessidade de expandir o acesso da população à arte e à cultura. A própria arte (ou pelo menos uma parcela considerável da arte tridimensional realizada nos nossos dias), pela sua dinâmica, se vê forçada a se institucionalizar para sobreviver. A necessidade de corresponder, ao menos parcialmente, às expectativas sociais desses novos espaços de massa levou-a também a soluções participativas e capciosamente ambíguas, que são a outra face das críticas contemporâneas à autonomia da arte e, em parte, derivam das reivindicações a uma aproximação entre arte e vida.

Então, põe-se em ação um movimento pendular que, ao espaço que envolve e congestiona os sentidos, opõe um paradoxal retorno aos conteúdos politizantes. À tendência à empatia e ao acolhimento corresponde um retorno às mensagens, de caráter pré-moderno, alheias a quaisquer sutilezas formais e injetadas de fora, como o coroamento dessa dinâmica antiartística. Assim como uma chapa de aço se transforma, digamos, nos para-lamas de um automóvel, pela força de uma prensa pesada, as “mensagens” se inoculam às obras com a mesma violência. Paradoxalmente, usa-se o mundo para criticar a sua instrumentalização. O fenômeno contemporâneo das curadorias só pode ser explicado, a meu ver, se se considerar esse movimento. Afinal, a consumação nua e crua do fim da autonomia da arte deve ser o uso do trabalho de arte para ilustração de alguma tese, seja ela qual for. Por certo, nem tudo aquilo que recebe o nome de arte contemporânea corresponde a essa análise. Há ainda uns poucos grandes artistas em ação. Receio entretanto que, se não houver uma mudança significativa no panorama das artes visuais, aquilo que se entendeu por arte até o final do século XX está com os dias contados.

Num ensaio memorável publicado na coletânea The De-definition of Art, de 1972, o crítico de arte norte-americano Harold Rosenberg fez uma afirmação que sintetizava décadas de reflexão e polêmicas: “Uma pintura ou escultura contemporânea é uma espécie de centauro: metade materiais artísticos, metade palavras”. [3] A tentativa dos impressionistas de afastar sua arte de associações literárias, tornando-a uma resposta direta do olho aos estímulos visuais, paradoxalmente deu lugar a um constante conflito entre olho e mente.

Depois de analisar essa tensão entre os action painters (um termo cunhado por Rosenberg), artistas ligados à arte pop, ao minimalismo e vários outros, o autor conclui que não há retorno à astúcia intuitiva do artesão tradicional, e tampouco a rendição do artista a seu medium o libertará das obsessões do pensamento. As palavras sobre a arte continuarão a falar ao artista, às vezes dirigindo-o sem que ele se dê conta, por vezes na forma de problemas conscientes a serem confrontados e modificados. […] Dado o atual grau de consciência estética, até mesmo a mais arbitrária dispersão de dejetos, se se dá num meio de arte, torna-se intencional devido ao fato de que o próprio acaso é uma técnica de criação artística há cinquenta anos. [4]

Na V Documenta de Kassel, de 1972, o trabalho apresentado pelo alemão Joseph Beuys, um dos maiores artistas contemporâneos, foram cem dias de discussão sobre a democracia direta, um sistema político consideravelmente utópico e jamais posto em prática, que mobilizava fortemente a arte e o pensamento de Beuys. Ele defendia uma arte que impulsionasse uma escultura social (“soziale Plastik”), ou seja, um processo de transformação permanente da sociedade, que deveria se afastar das institucionalizações enrijecedoras da dinâmica e da tensão do mundo social.

O uso recorrente de gordura, cera de abelha e feltro em suas obras — para além de uma possível, porém improvável associação a sua biografia [5] — ajudaria a desenvolver uma noção de calor que permitiria conceber transformações de dentro para fora, sem a violência comum aos processos artificiais de manipulação do mundo. Passados quase trinta anos de sua morte, em 1986, acredito que seus trabalhos, cada vez mais afastados do forte discurso que os envolvia (embora essa prosa também os tenha impregnado), mantêm sua potência, sem que sua dimensão discursiva tenha abafado a força sensível deles.

O texto de Rosenberg tem sem dúvida uma dimensão premonitória. Há nele, porém, uma resignação com o destino da arte, que pode transformá-la em pouco mais que um ramo criativo da boa e velha cultura. Nunca saberemos ao certo o que Rosenberg entendia por “astúcia intuitiva do artesão tradicional” (“intuitive astuteness of the traditional craftsman”). No contexto do ensaio, sou levado a crer que ele se refere aos grandes mestres anteriores à arte moderna. Acreditar que o fazer de um Leonardo da Vinci, por exemplo, não tivesse em si mesmo uma dimensão altamente reflexiva irá nos conduzir a ver na prática artística uma racionalidade necessariamente estranha a ela. Nesse caso, a arte estaria mesmo fadada a relações extraconjugais com o pensamento, o que me parece um rebaixamento da arte a um estatuto pré-kantiano, e portanto merecidamente artesanal.

A grande arte nunca foi a solução de problemas artísticos. Mais que tudo, nunca coube à arte a solução do que quer que fosse. Talvez se possa esperar dela o delineamento de questões, desde que ela faça a mais radical e generosa experiência da realidade, ainda que essa realidade — como a dos nossos dias — pareça se mostrar como fugacidade e fantasia, como um mundo sem densidade que não oferece resistência à prática humana, ou seja, uma pura virtualidade.

A obra de Nelson Felix tem todo o hibridismo de um centauro: materiais e práticas artísticos intrinsecamente associados a pensamentos, discursos, diagramas, mapas etc. Essa ampliação dos meios de expressão das artes visuais não o conduziu, no entanto, a direções que forçassem seus trabalhos a um reconhecimento de inferioridade em face das atividades do espírito. A interrogação em torno da natureza da arte, como na arte conceitual em geral e na de Joseph Kosuth em particular, deve necessariamente conduzir à desqualificação do mundo sensível. Afinal, se não fosse assim, como negar que toda grande obra de arte é a reflexão insuperável sobre ela mesma? Kosuth tem reflexões que ultrapassem aquelas materializadas numa obra de Matisse, Picasso ou Brancusi, entre tantos outros? Em arte, para que servem conceitos, se não pode haver um conceito de arte? O juízo reflexionante de Kant é o movimento reflexivo em ato, e não a sua reificação, como nas Três cadeiras, de Kosuth. Poderia haver uma história da arte, se houvesse um conceito de arte? A “obra” de Duchamp pode servir de alicerce ao arranha-céu que se edificou sobre ela? Se um cão engolisse a própria cauda, seria cão a mais ou a menos?

Sempre que escrevemos sobre um artista específico, tendemos a valorizar em excesso suas realizações. Não acredito que o trabalho de Nelson Felix tenha a saída para os sérios impasses da arte que se faz nos nossos dias. Penso porém que seu trabalho expõe e problematiza pontos centrais da arte contemporânea. Sobretudo leva adiante uma experiência do mundo repleta de surpresas e revelações. Na mitologia grega, Anteu era um deus cuja força descomunal dependia do seu contato com o chão — sua mãe, Gaia, era a deusa da Terra. Não havia rival que o derrotasse. Até que Hércules descobre seu ponto fraco e o mantém suspenso, além do tempo suportável por seu adversário, que morre. Gosto de pensar que a arte de Nelson Felix, mais que o hibridismo dos centauros, tiraria sua potência da combinação da força de Anteu com a astúcia de Hércules.

No entanto, diferentemente do mito, é do interesse da arte que Anteu e Hércules sobrevivam. A meu ver, é precisamente na difícil combinação entre materialidade e leveza que reside a possibilidade de sobrevivência de uma atividade que é simultaneamente essa combinação ponderada, cuja regra felizmente desconhecemos, entre objeto e sujeito, entre matéria e espírito, entre afirmação e dúvida.

Nos trabalhos de Nelson Felix, a grande incorporação de novos aspectos da realidade depende de sua capacidade de magnetizar segmentos do mundo, de modo que voltemos sempre a ele. Não por nostalgia ou carência, mas pela simples razão de que precisamos, por vezes, substituir um Hércules cansado do peso de Anteu, já que mitos não morrem jamais.

[1] Como escreve Germano Celant, o mais importante crítico ligado à arte povera, essa vertente artística busca “quase uma redescoberta da tautologia estética: o mar é água, um quarto é um perímetro de ar, algodão é algodão […] o ângulo é a convergência de três coordenadas […] a vida é uma série de ações”. CELANT, Germano. Arte povera. Turim: Umberto Allemandi & C., 1989, p. 21.

Numa passagem esclarecedora sobre questões fundamentais do minimalismo, Donald Judd escreve: “Uma forma, um volume, uma cor, uma superfície existem em si. Eles não deveriam ser dissimulados obtendo existência apenas como partes de um todo sensivelmente diferente. As formas e os materiais não deveriam ser alterados pelo contexto. Que se apresente uma ou quatro caixas alinhadas, que cada objeto seja tomado isoladamente ou que ele participe de uma série desse tipo — isso diz respeito a uma disposição, a um simples arranjo; dificilmente diz respeito à ordem”. JUDD, Donald. Donald Judd: Écrits, 1963-1990. Paris: Daniel Lelong éditeur, 1991, p. 27.

 

[2] Convivo com Nelson Felix há mais de vinte anos. Muitas das opiniões aqui mencionadas surgiram nas conversas que tivemos ao longo desse convívio, e muitas delas também aparecem em entrevistas e depoimentos.

 

[3] ROSENBERG, Harold. “Art and Words”. In: __________. The De-definition of Art. Nova York: Collier Books, 1972, p. 55. Traduzido para esta edição.

 

[4] Ibidem, p. 68.

 

[5] Durante a Segunda Guerra Mundial, Joseph Beuys foi piloto da Luftwaffe (a Força Aérea alemã), tendo participado de campanhas no sul da Itália, Croácia, Ucrânia e na C rimeia, onde foi abatido. Segundo o próprio artista, ele foi salvo por nômades tártaros, que teriam usado gordura e cobertores militares de feltro para restituir calor a seu corpo.

 

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Magia e contundência

Maria Hirszman - 2015

A obra sedutora e paradoxal de Nelson Felix é exibida em SP
Sexta-feira, 17 de abril de 2015.
Caderno 2 – O Estado de São Paulo

 

São 15 esculturas e instalações, muitas de grande porte, 8 vídeos e dezenas de desenhos que, a partir de amanhã permitirão ao visitante da Estação Pinacoteca realizar um mergulho de fôlego na obra sedutora, paradoxal e contundente de Nelson Felix.

Em ação desde 1980, quando inaugurou sua primeira mostra de desenhos, o artista carioca vem desenvolvendo ao longo de mais de três décadas uma das mais densas pesquisas em arte contemporânea do País.

Sua obra é de um rigor formal impressionante, ao mesmo tempo que que aborda e mescla questões fundamentais como o sexo, a ciência e a religião. Retoma de forma quase obsessiva materiais, procedimentos e métodos. Seja lidando com o clássico mármore de Carrara, seja atuando no campo intangível dos conceitos, situando suas ações em escala planetária e abstrata ou extraindo o que há de poético e sintético nos espinhos do cacto e na defesa ao toque das dormideiras, Feliz promove – nas palavras do amigo e curador Rodrigo Naves – uma imantação das coisas do mundo. Simultaneamente cartesiano e mago, a arte é para ele disciplina intelectual e ação física, meditação e linguagem, em busca de algo que, segundo suas palavras, seja capaz de “detonar o olho e a mente”.

 

Entre força e astúcia

Retrospectiva promove um mergulho em 35 anos de criações de Nelson Felix

Avesso a qualquer tentativa de normatização, Nelson Feliz deu finalmente à tentação de revisitar sua produção numa ampla exposição, que pode ser vista a partir deste sábado, 18, na Estação Pinacoteca. Apesar de ser indiscutível o caráter retrospectivo da mostra, bastante representativa dos múltiplos caminhos de pesquisa trilhados pelo artista nos últimos 35 anos, o artista conseguiu a proeza de usar esse fascinante processo de revisita ao passado para reinventar caminhos, promover encontros e reembaralhar as cartas – e trabalhos -, de forma a extrair novos sentidos e conteúdos de poéticas já existentes.

A primeira obra, que recebe o visitante ainda no térreo do museu, já sinaliza esse processo de recombinação de diferentes elementos escultóricos, formais ou conceituais. Trata-se de uma peça complexa na qual estão reunidos elementos importantes da história de Felix: as grandes esculturas de mármore, que remetem à arte clássica e trazem elementos internos e estruturais do corpo (como o osso do calcanhar de Aquiles e o osso occipital, representando os prontos extremos da coluna humana e que ele já mostrou anteriormente, ainda no início dos anos 2000), os cactos e as dormideiras plantas que têm presença importante na trajetória do artista. Intitulada de Eu vi a América com os Olhos d’Ele, a peça expõe de forma imediata e contundente a importância dos contrastes, a sutil sintonia entre contrários, o caráter tentacular de sua produção. Segundo Rodrigo Naves, curador da mostra e interlocutor constante do artista há pelo menos duas décadas, é exatamente nessas combinações paradoxais, nesse trânsito entre matéria e espírito, entre afirmação e dúvida, entre força e astúcia, que reside a potência da arte de Felix.

É possível ver essa exposição como um processo cuidadoso de repertoriar as principais questões, materiais ou estratégias trabalhadas pelo artista ao lingo das últimas décadas, como num curioso processo de composição musical. Lá estão diversos conjuntos de desenhos, testemunhando o que Naves define por “habilidade gráfica incomum”; as primeiras esculturas feitas por Feliz em meados do anos 1980 e diversas peças monumentais criadas por ele, como a excepcional escultura Vazio Sexo, que foi reconstruída após ter sido destruída durante transporte para uma exposição internacional. Trata-se de um cubo reticulado e vazado, que contém dentro de si outro cubo idêntico, num jogo ao mesmo tempo rigoroso e disruptor da ordem precisa das formas geométricas. Esculpidas durante meses pelo artista em um único grande bloco de mármore de Carrara, a peça é sutilmente descolada de sua posição natural por um pequeno calço de metal, na verdade um molde de parta de uma vagina.

Um tanto incomodado pela presença hegemônica de peças tridimensionais, Felix se justifica: “O pensamento precisa de algo para se materializar e o meu caminho é a escultura”.

Uma maneira encontrada pelo curador e pelo artista de driblar o peso das obras tridimensionais no conjunto da exposição e de diminuir a hegemonia impactante do mármore e sua inevitável remissão ao clássico – foi a decisão de incluir trabalhos praticamente impossíveis de materializar num espaço expositivo na exibição de um conjunto de oito vídeos documentais. Eles mostram o processo de criação de trabalhos intangíveis, por sua escala, distância e efemeridade – como as quatro intervenções reunidas sob o sugestivo título de Cruz na América – e que constituem uma espécie de núcleo central da exposição. Entre documento visual e criação poética, esses filmes servem como chave de acesso aos sistemas que Felix foi impondo a si mesmo e detonam todo seu pensamento plástico e poético.

Diante das fotografias que realizou no Deserto do Atacama, com a câmera regulada de acordo com o ritmo de batidas de seu coração, que constituem um dos quatro eixos do gigantesco projeto em forma de cruz, com intervenções nas quatro pontas de um cruzeiro imaginário desenhado sobre a América Latina, Felix explicita a necessidade de criar regras, estabelecer sistemas internos que garantam coesão e sentido a sua arte: “Tem que ter uma razão, mesmo que irracional. Na verdade, quanto mais irracional melhor”, conclui.

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Contra o senso comum

Tiago Mesquita - 2015

Ilustríssima / Folha de São Paulo – 5/7/2015

 

Na mostra retrospectiva de Nelson Félix Ooco, na Estação Pinacoteca, há poucos trabalhos sobre papel. O curador Rodrigo Naves foi preciso e escolheu desenhos centrais na trajetória do artista: como a série Vazio Sexo (2004), um conjunto de desenhos feitos com espinhos e lacre sobre papel e um dos Desenhos horizontais da década de 1980. Um trabalho grande feito com manchas pesadas.

A importância do desenho, contudo, não se restringe à produção bidimensional. Nelson Félix pensa desenhando. Segundo seus relatos, o desenho ajuda a explicar como ele formula seus projetos e incorpora diversos significados a eles. No vídeo exibido na retrospectiva sobre os grupos de trabalho Vão, Vazio Sexo, Vazio Cérebro e Vazio Coração, ele reafirma a importância da técnica. O desenho é usado para definir as formas dos objetos, estabelecer a relação entre um elemento e outro e, mais do que tudo, escolher os intervalos entre eles. Esses intervalos nos ajudam a entender a relação que Nelson sugere existir entre as peças. Talvez por isso a exposição mencione o oco, o intervalo entre um sólido e outro.

Faz todo o sentido. A maior parte dos trabalhos expostos em Ooco são tridimensionais. Mas não são volumes íntegros que partem de um bloco só. Em todas as esculturas da exposição Nelson Félix se vale de mais de um elemento. O artista coloca lado a lado, de maneira mais ou menos amistosa, materiais, objetos, naturezas, lugares e momentos diferentes. Associa em seus trabalhos lugares distantes no tempo e no espaço, a sugerir que algo acontece entre eles, para além do que percebemos.

As obras aproximam discos grossos feitos com materiais diversos. Cravos de ouro são alocados em cubos vazados de mármore; uma superfície ondulada de madeira é acompanhada de um vaso de bronze com azeite; um gradeado de mármore é suspenso por vigas de ferro, sugerindo que sua posição não é mais dada pela gravidade, mas pela orientação do planeta terra com o sol.

Na série Cruz na América (1985 – 2004) ele faz trabalhos que aproximam a Floresta Amazônica, o Deserto do Atacama, os pampas gaúchos e o litoral. Supõe-se que a ação do artista fez algo acontecer em todos esses lugares. De maneira fictícia, tais acontecimentos podem ser aproximados.

O significado de cada elemento se modifica. O artista parece fazer com que o trabalho nunca acabe. Muitas vezes, são obras que sugerem acontecimentos naturais que dispersam completamente as formas utilizadas no trabalho artístico.

Uma das primeiras intervenções do artista, neste sentido, foi agrupada sob o nome de Série Gênesis. Na Estação Pinacoteca, é exibida a documentação dessa série em vídeo. Ela se iniciou em 1985 e terminou faz pouco tempo, em 2014. É feita a partir de gestos discretos, pequenos. Todos implicam a assimilação de um corpo por outro.

Nelson Félix começa por inserir uma pequena escultura de Buda na pata de um cachorro. Mais ou menos na mesma época, perfurou o caule de uma árvore e depositou um bibelô de cristal em forma de pênis e colocou um diamante em uma ostra. Mais tarde, cravou um osso no troco da mesma árvore que enterrará em uma cova. Um corpo fagocitava o outro até se tornarem indistintos. O Buda e o cão, o pênis de cristal e a árvore, a madeira morta e o osso na terra.

O trabalho de Nélson lida com escalas muito peculiares. São ações que, por maior que sejam, revelam-se sempre miúdas diante do significado que sugerem ou mesmo do espaço em que estão.

Em A mesa, uma tábua plana, disposta em uma paisagem plana, como os pampas gaúchos, se tornará mesa quando as árvores crescerem e a incorporarem. A inclinação do gradeado de Malha é apenas uma indicação do arbítrio das nossas formas de orientação e uma lembrança da nossa miudeza diante de um universo infinitamente grande.

É como se essas estruturas delicadas, se relacionassem com um espaço mais amplo que o lugar onde os trabalhos são expostos. Provavelmente, nenhum trabalho de arte conseguiria promover vínculos ultramarinos e nem sugerir uma outra relação com o sol. Se esses devaneios não parecem mais objetivos do que o senso comum, as certezas repetidas por aí, eles são o seu melhor contraponto.

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Conversa com Nelson Felix

Lucas Costa - 2014
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O pulso das coisas vivas

Gabriela Motta - 2013

Catálogo exposição CantosreV – Instituto Ling – 2014

 

O vocabulário normalmente utilizado para se escrever sobre arte parece insuficiente para abordar a obra de Nelson Felix. Uma possibilidade seria partir do começo de cada projeto, como cada um surge, a partir de quais procedimentos e conceitos o artista os constrói. No entanto, com isso, seria preciso admitir logo de saída uma omissão fundamental: o fato de que os trabalhos de Felix amalgamam-se uns nos outros, constituindo um corpo único em permanente transformação. Ou seja, em primeiro lugar, é preciso perceber como fundamental para a produção do artista a noção de continuidade permanente. Esse sentido de continuidade é a vertigem que simultaneamente atrai – deixemo-nos cair no abismo – e imobiliza – falar, escrever, é sempre menos do que estar diante do inefável.

Esse arrebatamento revela o que acredito: a obra de Nelson Felix é uma das mais relevantes da produção contemporânea de artes visuais, justamente porque escapa aos esquemas de leitura, das abordagens usuais do campo da arte. Estão lá, na obra, o minimalismo, a escultura clássica, o site specific. Mas também a astronomia, o budismo, a filosofia, a botânica. Disso tudo, nada aparece como referência, citação ou reverência, mas sim como matéria viva, como fluxo vital que anima a existência da obra enquanto ser e jamais enquanto objeto. Por isso, por essa relação com a existência, que é sempre uma noção repleta de perguntas, o trabalho de Felix pede um envolvimento em que entram em jogo sentimentos como confiança, crença e entrega.

Desde o início de sua trajetória, mas de modo mais evidente a partir da série de ações reunidas sob a alcunha de “desenhos no mundo”[1], Felix desenvolve trabalhos que transcendem as noções clássicas de obra, espaço, tempo, lugar, peso, forma. Simultaneamente, suas intervenções valem-se de materiais e formas tradicionais, como mármore, aço, círculos, planos. No entanto, com frequência, tais formas e materiais são submetidos a situações em que protagonizam um diálogo irreversível com seus contextos físicos. São como sujeitos, permanentemente transformados por suas experiências. Assim, por exemplo, em uma das intervenções do projeto Cruz na América, realizada no litoral do Ceará, o artista abandona no mar uma esfera de mármore ao redor da qual estão cravadas 22 pontas de ferro[2]. O que se intui da descrição da obra é que essas pontas de ferro, em contato com a água salgada, acabarão por oxidar-se e expandir-se, causando a ruptura da esfera.

O tempo em que isso ocorrerá e o lugar – o fundo do mar – não estão ao nosso alcance, são próprios de seus elementos e de suas reações intrínsecas com o mundo. O trabalho está acontecendo neste momento, algo nele se transforma permanentemente a despeito de todo e qualquer sujeito que nomeie ou qualifique tal ação. O trabalho é sujeito. E o artista, ao empenhar na construção da obra muito mais do que materiais, formas, significados, conceitos, deslocamentos, estrutura de produção, reafirma em cada projeto aberto um comprometimento irrevogável com o fazer artístico e especialmente com a arte enquanto imponderável.

A expansão temporal em que operam, a extensão espacial que ocupam, os procedimentos e negociações que reivindicam, são também matéria da obra, o núcleo conceitual que estrutura o trabalho. No entanto, tal núcleo conceitual não se apresenta apenas como conceito, ou seja, enquanto abstração ou exemplo, como em algumas obras efêmeras que lidam com materiais perecíveis. Seus conceitos de espaço, de tempo, de deslocamento, corporificam-se como experiência da própria obra, conferindo-lhe continuidade não como ideia mas enquanto verdade da obra.

 

Icebergs

Diante dessa verdade, o que são as exposições de Nelson Felix? Ao reconhecer a obra de Felix enquanto ser, é preciso perceber suas exposições como situações em que o trabalho, no decorrer de uma trajetória que antecede e ultrapassa esses momentos, abre-se para um encontro público e mediado, já que amparado por algum contexto institucional. Nesses aparecimentos, há uma inversão absoluta na perspectiva da qual se vê a obra, de um ponto de vista do pesquisador, que busca a literatura dos projetos, suas justificativas e premissas, para um ponto de vista do espectador, que vê coisas, objetos, desenhos, formas, imagens.

No entanto, por mais que tais pontos de vista sejam de fato independentes (é possível construir e experienciar alguns trabalhos apenas mentalmente, ou ver as instalações enquanto conjunção de objetos e formas, independente de suas referências), essas perspectivas são complementares e simultaneamente fundamentais para os trabalhos que se encontram em situação expositiva. Tal contração entre diferentes modos de percepção só é possível porque o mesmo rigor e obstinação que encontramos na execução de projetos de décadas também encontramos na formalização de seus aparecimentos públicos. As peças que o artista produz são absolutamente precisas (não poderiam ser maiores ou feitas em outros materiais ou terem outras formas) exatamente porque são justas aos seus conceitos. Não representam ou ilustram algo, são a coisa mesma da qual falam. E dizem tanto da sua história quanto da sua presença.

Como se fossem icebergs, enormes blocos de gelo de cujo volume total apenas cerca de 10% emergem à superfície, a obra de Felix flutua entre a complexidade de suas razões de ser e uma aparente simplicidade de seu estar no mundo. O jogo em que seus trabalhos estão envolvidos não tem começo nem fim, não funda-se em dicotomias contrárias, como não são contrários o visível e o invisível de um iceberg. Ao emergirem, já estavam lá. Seus enigmas abrem-se em outros mistérios, suas faces dobram-se sobre si mesmas, e as escolhas que fazemos ao olhá-las implicam sempre em reconhecer a ordem poética em que operam.

 

 

Um encontro de encontros

A exposição – encontro – Canto/osreV é uma face de um iceberg. Ainda que seja possível vê-la desde suas referências conceituais específicas, essa instalação abre-se em um léxico próprio, dado por sua presença poética no mundo. No entanto, ao saber dessas possibilidades complementares de abordagem, não é possível eleger uma ou outra: é preciso escolher a vertigem em ambas direções.

Olhar esta exposição em busca de suas origens leva-nos à obra 4 Cantos (Portugal, 2008) e Verso (São Paulo, 2013)[3], um trabalho realizado em dois atos. Em 4 Cantos Felix viajou aos quatro extremos de Portugal, com quatro blocos cúbicos de pedra. Em cada canto, o artista colocava as pedras no solo e as desenhava, até impregnar-se da paisagem. No último extremo, este em espaço interno, direcionou os blocos contra os cantos das paredes e os fixou com oito ponteiras de bronze, onde estavam inscritos os oito versos do poema Casa Térrea, de Sophia de Mello Breyner[4].

O poema de Sophia fala-nos de comprometimento e posicionamento, atribui uma imagem – a construção de uma casa térrea a partir do fundamento – à verdade indispensável de nossas escolhas. Seus versos, gravados nas ponteiras de bronze sobre as quais se apoiavam os blocos de pedra, sustentavam não a matéria bruta desses cubos, mas esse compromisso com nossas escolhas que precisa ser diariamente reafirmado. Ao desenhar tais pedras por dezenas e dezenas de horas, deslocando-as pelo país, Nelson impregna-as de tempo, o tempo em que se submete a mais básica e fundamental relação com a arte: olhar.

Já Verso, o outro ato da obra, nasce da observação de que a cidade de São Paulo encontra-se equidistante e sobre uma linha imaginária que liga duas pequenas ilhas, uma no Oceano Pacífico e outra no Atlântico. O artista viajou às duas ilhas, onde olhou na direção de São Paulo e fincou no solo três peças de bronze, que constituem as três partes da letra “A”. Essas peças de bronze referem-se ao poema Desmuntage, do catalão Joan Brossa[5].

Enquanto 4 Cantos vale-se de um poema absolutamente rítmico, repleto de significados, e de um procedimento que reitera o sentido espacial da palavra canto – deslocar-se aos quatro extremos de Portugal – Verso traz um poema-imagem. As três partes do A são também linhas, como aquela imaginária que liga as tais ilhas que compõem o trabalho. E linhas não têm verso – um outro lado –, são versões da banda de Moebius sem a banda, geometria espacial antes do espaço. Abstração pura ou materialidade absoluta, é como Brossa olha para o A, e é como permanentemente somos convidados a olhar para a obra de Felix.

Assim, a partir desses percursos mentais e geográficos, dessas poesias e das imagens sugeridas por tais deslocamentos entre linguagem oral e experiência, estrutura-se Canto/osreV. A instalação reúne imagens do artista com o poema Desmuntage, mapas em ouro dos territórios atravessados por Felix na obra 4 Cantos e Verso, duas flautas em mármore de Carrara vazadas pelas palavras canto e verso, três anéis em mármore de Carrara e ponteiras em bronze. Nas ponteiras inscreve-se um terceiro poema, também de Brossa, intitulado El Temps[6].

O aparecimento do poema El Temps surge como mais um grão de areia a contaminar uma possível nitidez do trabalho e a agregar outra gama de sentidos ao pensamento sobre espaço até então instaurado por 4 Cantos e Verso. Com este novo elemento, deparamo-nos também com uma das características marcantes de Nelson Felix: a incansável tarefa de abrir frestas em sua obra pelas quais escorram qualquer ilusão de compreensão.

A espacialização de Canto/osreV define-se de acordo com as características da galeria, um retângulo. A instalação secciona a dimensão longitudinal do espaço criando três situações escultóricas complementares e interligadas. A primeiras dessas situações é uma parede atravessada por ponteiras de bronze que sustentam os anéis de mármore. Ao centro da galeria, encontram-se as duas flautas, sobrepostas e como se unidas a um mapa em ouro. Ao fundo, vemos as duas imagens do artista nas ilhas do trabalho, projetadas sobre outros mapas em ouro e sobre a terceira ponteira da exposição.

Os atravessamentos e sobreposições que se reiteram em todas as situações escultóricas e também na relação da instalação com o todo do espaço físico em que ela se encontra, determinam a irreversibilidade da experiência – algo que se dá no tempo e sobre o qual não é possível retornar sem estar modificado. Ou seja, tais arranjos, mais do que significarem um princípio composicional, reconhecem o tempo como dimensão fundamental do espaço na medida em que o trabalho não toma esse espaço como estático e não negociável. Desta forma, o poema de Brossa (El temps) ainda que não seja legível na obra de Felix, corporifica-se na instalação. Em um dos seus versos lê-se “las palabras/ están aquí, tanto se las leéis/ como si no”. E o mesmo vale para a obra de Felix, sua inteira presença capaz de aglutinar tudo o que em si é visível e invisível.

 

Eu confio em você

Ao reconhecer os trabalhos de Felix enquanto sujeitos, a noção de continuidade como verdade da obra e suas exposições como encontros, resta-nos recebê-los em sua ordem poética. Como tal, enquanto poesia, seus trabalhos são fugidios às tentativas de compreensão. Pedem uma relação de confiança e entrega pois entregam-se e acreditam na potência de uma linguagem que opera através do sensível e que escapa às exegeses teóricas. A fragilidade dos conceitos tradicionais da campo da arte para dar conta de uma obra tão densa e com tantos desdobramentos dá-se exatamente porque tal obra reitera constantemente a possibilidade de relacionar-se com o outro através de abstrações que não são próprias da arte ou do que quer que seja. São próprias daquilo que faz cada experiência importante ser inenarrável.

Se não abordei especificamente as questões metafísicas dos projetos de Felix é porque acredito que toda arte que “dá barato” tem algo de metafísico. Portanto, não é o “falar de algo indizível” que importa, mas a capacidade mesma de ser transcendente. Essa potência sem nome que se apresenta quase como revelação ou clarividência e que, em sua concentração máxima de energia, nos faz perceber (ou achar que percebemos) coisas sobre nos mesmos, sobre o mundo, sobre a arte.

A obra de Nelson Felix é um abismo.

 

Gabriela Motta

[1] “Desenho no mundo” é como o artista chama a série de trabalhos que tem início com Cruz na América (1985-2003). Esse projeto de quase 20 anos conforma-se a partir de quatro intervenções realizadas na floresta amazônica, no Acre, no pampa, no Rio Grande do Sul, no deserto do Atacama, no Chile, e no litoral do Ceará. Cada uma dessas quatro paisagens geográficas ocupa a extremidade dos vértices de uma cruz imaginária, traçada sobre o globo terrestre. “Desenho no mundo” abriga ainda Camiri 1999-2006 (ação realizada em Camiri, na Bolívia, e uma exposição no Museu da Vale, no Espírito Santo) 4 Cantos 2004-2008 (intervenções realizadas em Anguilla e na República Dominicana, no Caribe, em Dongsha, no mar da China, e em Karratha, na costa Australiana) e Cavalariças 2005-2009 (intervenção no Parque Lage, no Rio de Janeiro, e uma ação no vulcão Hekla, na Islândia). Os trabalhos Camiri, 4 Cantos e Cavalariças, por sua vez, aparecem reunidos sob o nome Concerto Para Encanto e Anel. As obras Verso (2008-2013), e 4 Cantos (2008, Portugal), homônima daquela citada anteriormente, também poderiam estar neste conjunto de trabalhos, já que envolvem grandes deslocamentos e uma complexa relação entre a planaridade da representação do espaço geográfico e a experiência do próprio espaço.

[2] Esta intervenção chama-se Vazio Coração/ Litoral. Além de ser um dos vértices de Cruz na América, ela faz parte de um outro conjunto de trabalhos do artista chamado Vazios, que reúne três obras realizadas entre 1992 e 2004.

[3] No site do artista, o verbete sobre a obra 4 Cantos e Verso, relata que “o trabalho aborda, primeiramente, um pensamento poético sobre o espaço, na sua estrutura mais simples – os cantos, o centro e o verso – e o que seriam estes locais, hoje, na percepção multifacetada do espaço. Depois, na relação ambígua que existe na língua portuguesa nas palavras canto e verso, ora com sentido espacial, ora com sentido poético. A primeira parte, 4 Cantos, prima pela relação espacial; a segunda, Verso, pela poética”. www.nelsonfelix.com.br Consulta ao site do artista em 17/09/2014.

[4] Que a arte não se torne para ti a compensação daquilo que não soubeste ser/ Que não seja transferência nem refúgio/ Nem deixes que o poema te adie ou divida: mas que seja/ A verdade do teu inteiro estar terrestre// Então construirás a tua casa na planície costeira/ A meia distância entre montanha e mar/ Construirás – como se diz – a casa térrea -/ Construirás a partir do fundamento. ANDERSEN, Sophia de Mello Breyner. “O nome das coisas”. In.:_______. Obra poética. Alfragide: Caminho, 2011.

 

[5] Realizado em 1974, Desmuntage é um poema visual no qual a letra A aparece primeiro em sua forma maiúscula, como aqui – A – e, logo a seguir, como se desmontada, em três traços.

[6] Este verso es el presente./ El verso que habéis leído ya es el pasado,/ ya ha quedado atrás después de la lectura./ El resto del poema es el futuro,/ que existe fuera de vuestra/ percepción./ Las palabras/ están aquí, tanto si las leéis/ como si no. Y ningún poder terrestre/ puede modificarlo. BROSSA, Joan. Poemes de Joan Brossa (antologia). Trad. de A.S. Robayana y M. Mur. Madrid: Ediciones Libertarias, 1983.

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verso(meu ouro deixa aqui)

Paulo Miyada - 2013

Texto para o folder da exposição Verso (meu ouro deixo aqui)

No Instituto tomie Ohtake – 2013

 

O ciclo de ações que redunda em Verso (meu ouro deixo aqui) é conformado por dois conjuntos de relações espaço-temporais e poéticas. No primeiro, o artista atuou sobre o território português: para alcançar poeticamente a ideia de “canto”, desenhou um retângulo sobre o mapa do país, encontrando em seus vértices quatro locais limítrofes. Estes tornaram-se as paradas de um périplo que envolveu um caminhão munck, quatro grandes cubos de pedra e muitos desenhos.

No segundo conjunto de relações espaço-temporais que compõem o presente ciclo, Nelson Félix voltou-se para a metrópole de São Paulo, tomando-a como lócus para a reflexão sobre as ideias de centro espacial e verso poético. Começou cravando pontos de uma linha cuja mediatriz é São Paulo. Lançada no globo terrestre, essa ideia redundou na linha que liga o Arquipélago de João Fernandez (no oceano Pacífico, na costa do Chile) e a ilha de Ascencion (oceano Atlântico sul). O artista viajou para esses lugares e dali realizou umas poucas fotos, cravando na terra estacas materializadas a partir da poesia visual de Joan Brossa.

O poema Desmuntatge (Desmontagem, 1974) do catalão Joan Brossa consiste no encontro da letra A maiúscula com um conjunto de três peças que compõem sua tipografia. O artista fundiu em bronze essas estacas, como se pudesse transformar o princípio do alfabeto, metonímia de toda palavra, em objeto escultural. Empregou-o então como simbólico mastro a penetrar o solo dos lugares encontrados pelo traço cartográfico.

Esse campo de reflexões foi condensado em uma ocupação da Galeria Millan e em uma instalação no Instituto Tomie Ohtake. A ala menor da sala do Instituto foi tomada por uma situação escultórica que funciona como diagrama das viagens entre as ilhas e São Paulo – as fotografias aparecem em projeções sobre mapas das ilhas, diante de um cilindro de mármore sobreposto à mancha da urbanização da metrópole paulistana. Feitos de folha de ouro, todos os mapas aderem ao espaço, sendo necessariamente destruídos ao final da exposição.

Esta é, também, a primeira mostra do artista cujo cerne está em seus desenhos de processo. O desenho é o recurso pelo qual o artista conversa consigo mesmo e articula, cotidianamente, as ideias fundadoras de seus percursos, viagens e formas. Se as instalações são a consolidação do pensamento e os processos a duração de seu fluxo e corrente, os desenhos são sua emergência aquecida sem restrições ou limites, senão aqueles próprios ao ato de desenhar.

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Nelson Felix: Aventuras da razão

Rodrigo Naves - 2013

Duas mostras de Nelson Felix questionam os limites da produção artística

Estado de São Paulo – 2013

Até onde pode ir a dimensão reflexiva de uma obra de arte, sem que ela perca sua força sensível e se transforme num teorema descarnado? A questão tem grande pertinência, sobretudo no momento em que a arte contemporânea, de tanto evitar a pecha de ingenuidade, assemelha-se a um escorpião encurralado: prefere morrer pelo próprio veneno a deixar-se apanhar. Gerhard Richter, um dos mais bem-sucedidos artistas contemporâneos, duvida tanto da pintura que é de se perguntar por que ainda continua a pintar.

Acredito que os trabalhos apresentados por Nelson Felix em suas duas exposições (na Galeria Millan e no Instituto Tomie Ohtake) movem-se no fio perigoso desta navalha, conhecendo o risco que correm e a estreita margem de manobra que resta a esse tipo de interrogação, embora procurem dar outra saída à pergunta, como têm feito outros importantes artistas de nossos dias.

Uma circularidade problemática sempre foi presença forte em sua obra, exercendo essa função inquisitiva. Numa dimensão modesta, a questão surgia, por exemplo, em “O grande Budha” (1985-2000), um trabalho no qual garras de latão eram dispostas circularmente ao redor de um mogno, uma árvore centenária perdida em meio à Floresta Amazônica. À medida que o tronco crescia, as garras penetravam-no, tornando perceptíveis tanto seu crescimento quanto uma força que, sem essa oposição, jamais se mostraria. E ambos (crescimento e força) irão potencializar a circularidade rude do mogno. Em outras palavras, a própria gênese dos volumes, elemento central da escultura, se mostrava a nossos olhos.

A simples circularidade, ou seja, o voltar-se sobre algo, ao mesmo tempo que é condição para o entendimento, pode conduzir a uma posição oposta. A expressão “andar em círculo” é sinônimo de descaminho e há pouca sabedoria no cão que tenta morder a própria cauda. Em arte, penso que, para adquirir relevância, o movimento de voltar-se sobre algo (reflexão) precisa apontar e problematizar seus próprios limites. Uma atividade cuja grandeza está tão intimamente ligada aos sentidos, a arte, tem, em sua própria constituição, algo avesso ao entendimento.

O mero crescimento de uma árvore não tem nada a ver com a compreensão de um processo nem com a arte. Cercada de maneira regular (circularmente) por balizas que evidenciam sua expansão, irá adquirir uma presença nova, nem simplesmente natural nem objeto domesticado: algo que poderíamos chamar arte, possivelmente para escândalo do crítico de arte Ferreira Gullar.

Neste exemplo, a evidenciação de um processo natural (o crescimento) não é realizada pelas vias convencionais (uma fita métrica, por exemplo), e sim por procedimentos que põem em relevo a força e a opacidade do mundo material – do qual, aliás, também fazemos parte – sempre rebaixadas pela oposição que privilegia a (suposta) transparência e leveza do espírito.

Logo que entramos na sala principal da mostra na Galeria Millan, dois grandes anéis de mármore chamam nossa atenção. Já a disposição dos dois aros, enviesados, retira deles parte da dinâmica sugerida pelos círculos, o que intensifica sua presença material e, assim, reduz o estatuto de pura forma. As hastes que quase tangenciam os anéis funcionam visualmente como as ferramentas do torno que os fabricaram, supondo uma fricção áspera que nada tem de espiritual.

No andar superior, outros aros de mármore, bem menores, repousam sobre o piso, alguns deles sobrepostos. Definitivamente, aquele conjunto de roldanas não irá mover-se. A construção de um volume pleno, dotado de “movimento” e belas proporções – um ideal perseguido pela escultura desde os gregos – fracassou. Restam apenas os fragmentos que testemunham aquele empreendimento frustrado.

Quando voltamos ao piso térreo, depois de uma primeira visada ao conjunto da exposição, temos a impressão de que tudo mudou, justamente em virtude dos empecilhos que o artista criou para que aquele sistema de circularidades operasse harmonicamente. O anel recostado na parede resume bem o processo do trabalho: cansado do esforço vão de por em movimento uma sequência de objetos que prometia uma dinâmica plena, ele descansa, tentando se recuperar do longo esforço. Só falta o cigarro no canto da boca.

Na exposição do Instituto Tomie Ohtake dezenas de desenhos e algumas poucas fotos testemunham o longo trajeto (também ele circular) que o artista percorreu para chegar à complexidade desse conjunto. São outros tantos fragmentos fundamentais para a compreensão de um processo que põe em xeque as incursões tradicionais da própria compreensão.

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TEXTO PARA EXPOSIÇÃO VERSO (MEU OURO DEIXO AQUI)

Rodrigo Naves - 2013

Instituto Tomie Ohtake -2013

A obra de Nelson Felix muitas vezes é orientada por uma espécie de magnetismo brando, que põe em contato trabalhos e lugares fisicamente muito distantes. Suas preocupações, em princípio, aproximam-na da land art. Mas, enquanto os trabalhos Robert Smithson, Michael Heizer, Walter de Maria e tantos outros movimentam toneladas de terra ou empregam um sem-número de materiais na tentativa de intensificar a presença da natureza e de suas forças, Nelson Felix lida com escalas e procedimentos diversos. Há no aspecto comedido de seus trabalhos algo da sutileza do inglês Richard Long. A escala do trabalho de Nelson, porém, o conduz a direções muito diversas: envolve todo o planeta; muitas vezes, inclui o tempo, e este tratado extremamente dilatado – ainda que os objetos e esculturas que o conectariam recusem dimensões excessivas.

Ousaria dizer que sua arte tem a forma de meditações e devaneios, esses movimentos do pensamento que não têm descanso, levando-o de lá para cá e para acolá ininterruptamente. Mas qual seria o gatilho que dispararia esse processo? De um ponto de vista positivo, a necessidade de ir além de nossos limites físicos, um impulso de viajar (nos vários sentidos da palavra) que nos conduzisse, junto com o observador, a um tipo de experiência que afirmasse a liberdade e leveza de nosso ponto de partida. De um ponto de vista negativo, a recusa às composições tradicionais (ainda que modernas ou contemporâneas), às formas dadas, aos temas batidos… e tudo isso pode ser problematizado com mais força quando deixamos de lado as balizas estritamente antropomórficas que nos orientam (alto e baixo; esquerda e direita, simetria etc.) e partimos para outros parâmetros.

Neste trabalho, o artista determinou arbitrariamente um centro (São Paulo) e depois procurou outros dois “centros”: as ilhas de Ascension e do arquipélago Juan Fernandéz, respectivamente, no Atlântico e no Pacífico. Sobre esses três pontos ou centros é possível traçar uma reta, um critério arbitrário que o levou a escolhê-las.

As dezenas de desenhos apresentadas na sala principal mostram parcialmente a condução do trabalho, procurando manter nos próprios traços a natureza leve e instável dos devaneios. Numa das paredes são projetadas imagens das duas ilhas. Na sala lateral, pousada sobre o mapa da cidade de São Paulo, uma flauta esculpida em mármore recorda os sons que podem articular e fazer reviver todas essas regiões. E, talvez, como na fábula do flautista de Hamelin, levar todos os ratos da cidade a se afogarem num rio.

 

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DESENHO – NELSON FELIX – PENSAMENTO

Paulo Miyada - 2013

Texto para a exposição Verso (meu ouro deixo aqui)

No Instituto Tomie Ohtake – 2013

 

Nelson Felix desconfia da composição. Imagina – porque conhece de perto essa tentação – que os mais rigorosos pensamentos artísticos podem se deixar reduzir a clássicos jogos de harmonias, equilíbrios, contrastes e simetrias entre formas, cores e volumes. Mas a desconfiança sozinha não abolirá a composição.

Há mais de três décadas, Nelson Felix procura maneiras de evitá-la ou, pelo menos, retardá-la. Ancora suas decisões em arbítrios aplicados sobre campos de relação quase inapreensíveis pela percepção sensorial usual. Em torno de gestos aparentemente singelos, como fotografar o horizonte a partir de ilhas alinhadas com São Paulo, nos oceanos Pacífico e Atlântico, Nelson Felix concatena cadeias de pensamento que invadem a cartografia, a geografia, a poesia e tantos outros recantos do pensamento abstrato.

Nas suas instalações e esculturas, realiza uma aterrissagem desses pensamentos abstratos no plano da concretude. O impasse tenso consiste em que, sendo forma, suas diretrizes advém da ideia e, sendo ideia, sua realização se dá na fisicalidade da matéria. Não é um paradoxo, mas um desvio por rotas que atravessam o pensamento não-disciplinar. É possível especular que a arte possa ser um meio para estar junto com algo ainda sem nome e categoria, prescindindo de nomeá-lo ou categorizá-lo. A arte, portanto, como coisa mental, mesmo quando feita de toneladas de mármore.

Falta entender a instância mais maleável e expansível desse processo. A presente exposição no Instituto Tomie Ohtake é a primeira mostra do artista cujo cerne está em seus desenhos de processo. O desenho é o recurso pelo qual o artista articula, cotidianamente, as ideias fundadoras de seus percursos, viagens e formas. Nessa articulação, criam-se gestos como a fundição de peças de bronze materializadas a partir da poesia visual de Joan Brossa, em seguida utilizadas como simbólico mastro-estacas que penetram os três lugares designados para o trabalhos, o espaço expositivo e as duas ilhas. Dessa forma, desenho, escrita, poesia e viagem colapsam sobre si, como líquidos que uma vez misturados não podem mais ser separados.

Em sua casa e ateliê na serra do Rio de Janeiro ou em suas viagens, Nelson produz mil desenhos ou mais a cada ciclo de três ou quatro anos. Não são esboços ou exercícios de composição, mas sim notas mentais. Desenhar é, em certa medida, uma forma de conversar sozinho. Você pensa e marca o papel, o traço deforma-se e o papel oferece resistência demais ou nenhuma. Um risco na parte esquerda do papel pode transformar todo o desenho, fazendo com que exista certa dialética entre intenção e resultado, traço e conjunto.

No campo do desenho, a demanda por agilidade mental é soberana em relação ao acabamento, mas, mesmo com a espontaneidade da alternância entre registros e técnicas gráficas, mantem-se a coesão de cada folha. Quando elementos contrastantes e diversos conseguem conviver compartilhando o plano do desenho, é porque a inteligência gráfica do artista saiu na frente de sua organização verbal. O desenho, efetivamente, conduz o pensar por trilhas que o discurso verbal não poderia percorrer sozinho.

 

Paulo Miyada

Núcleo de Pesquisa e Curadoria do Instituto Tomie Ohtake

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percurso de escultura

Ronaldo Brito - 2011

Texto para o livro Concerto para Encanto e Anel – Editora Casa 11 – 2011

Tudo é a escultura pronta, como se apresenta nas cavalariças do Parque Lage, no Rio de Janeiro. Sessenta e oito vigas de aço, com sete e cinco metros de altura, quase a alcançar o teto, fixadas em intervalos regulares de 1,40 metro, estendem-se ao longo das duas grandes salas. Por sua vez, um anel de mármore de Carrara, de nove toneladas e dois metros de diâmetro, vindo de cima, comprime quatro dessas vigas e se acomoda (e incomoda), a cerca de um metro de altura, mais ou menos no centro da sala alta da cumeeira. O anel interrompe a sequência linear de vigas verticais e a ela contrapõe sua forma circular e sua posição incerta, um tanto precária. E contrapõe à aparência rude e anônima das vigas a sua matéria sensível, historicamente qualificada. A situação escultórica arma-se entre o cálculo preciso e o dado circunstancial, entre um processo formal longamente elaborado e o aspecto de canteiro de obras.

Necessariamente, um experimento de escultura tem a ver com dois fatores básicos do mundo da vida: o transitório e o permanente. Assim como toma posse das cavalariças, procura torná-las intrínsecas à sua forma, a escultura passa também a impressão de que acaba de chegar. E, no devido tempo, vai partir. Está exposto o paradoxo: escultura plena, coisa única, ela se sabe contudo uma ocorrência, um acontecimento que não sobrevive à sua apresentação. Íntegra, ela só vem a sê-la porque absorve o tempo heterogêneo, as instâncias díspares de seu processo de produção. E porque resiste à falsa segurança do futuro, a seus apelos enganosos. Ao futuro, reserva só uma resposta: uma versão diferente de si mesma.

Tudo é a escultura pronta e, no entanto, ela é indissociável de um percurso físico e mental, uma série de manobras poéticas (vamos chamá-las, por enquanto, manobras) que a preparam, ou melhor, a ela respondem por antecipação. Manobras que conduzem o artista, casual mas compulsoriamente, a cinco pontos predeterminados do planeta. Cavalariças, daí a sua condição ímpar, encerra o ciclo, conclui o périplo. Todo o trânsito desconcertante, a ansiedade e a euforia que o acompanham, convergem para a forma final, porém aberta, prospectiva, da escultura. Há que dizê-lo de uma vez, embora sob o risco do contrassenso: sua autonomia plástica depende dos deslocamentos imaginativos que a precedem. Mas só porque a gramática não permite dizê-lo de outro modo. E se pretendêssemos isolá-la do raciocínio, pairando numa esfera mística, inacessível ao verbo, tampouco lhe faríamos justiça; pelo contrário, talvez induzíssemos uma leitura psicológica que recusa francamente.

Por via negativa, primeiro. O experimento de uma escultura não é nem uma ação planejada, um projeto, nem uma divagação pitoresca; tampouco é uma ascese, exercício espiritual a progredir em graus ascendentes até culminar na obra. Disso tudo tem um pouco, ao mesmo tempo, é o exato oposto. Em condições contemporâneas, um experimento de escultura é, antes de mais nada, uma atividade sóbria. Tudo será feito, se não à sombra, no curso estrito que prescreve a lógica da futura escultura, sob o efeito de sua força de atração antecipatória. Sobriedade é o título provisório de uma ética operacional que persegue a perfeita equivalência entre o móvel imaginário do trabalho e sua forma concreta e inelutável. À primeira vista inexplicáveis, as idas e vindas do artista constituem momentos pertinentes da escultura, movidas a rigor pela pressão de sua imobilidade.

Quanto mais a presenciamos, como se instala nas cavalariças do Parque Lage, mais sentimos que o seu movimento serial, repetitivo, é inseparável da circularidade. Podemos até vê-lo como um demorado curto-circuito, se for isto viável. O certo é que as vigas em progressão virtualmente infinita estão fincadas no chão e não apenas dispostas, muito menos pousadas no solo. E se o anel captura essa progressão, faz com que a escultura gire sobre si mesma e recomece, é de maneira problemática. Porque, também ele, não desliza entre as vigas, conquista literalmente seu espaço entre elas, manobra delicada, temerária, que demanda engenho e concentração. E envolve um grau de imprevisibilidade: o ponto exato em que o anel descendente consiga firmar-se.

Percorremos, voltamos a percorrer esse objeto em aberto, que adere ao ambiente e o assimila, e assim completamos um círculo. Mas a sua extensão exigente nos convoca de novo a fazê-lo, impreterível, interminavelmente. Nenhuma visada apreende o conjunto: ele nos escapa por conta de sua extensão, nos leva a rodar por causa do grande anel. Somos instados a experimentar uma escultura em ação. E justo por tratar-se de ação poética, gratuita, sem propósito, a ela cabe a total responsabilidade pelo seu vir a ser. Para merecer o nome, a escultura deve coincidir inteira com o seu destino.

De Camiri[1] até as Cavalariças do Parque Lage, sob a óptica do observador, o processo de realização da obra não poderia parecer mais incongruente. A começar pelos planos diversos em que se move, a misturar conduta e pensamento, acaso e determinação, espera ansiosa e serena contemplação. Enfim, a confundir arte e vida. Segundo o tempo abstrato da escultura, na verdade, tudo obedecia ao empuxo de sua forma: a disciplina do artista consistia sobretudo em manter-se atento, no prumo, em contato criativo com o seu desenvolvimento. O que, em uma palavra, significava: trabalho. E o provam, flagrantes, os desenhos inquietos produzidos à época da montagem de Camiri: Nelson Felix já se encontrava então sob o influxo da futura escultura. Urgentes, incisivos, em lúcido tumulto, esses desenhos saem em busca da forma da escultura e impelem o artista em sua direção. Mas agem também em sentido inverso, a detê-lo, ocupá-lo no papel, impedi-lo de partir prematuramente.

Sem forçar muito o nexo causal, talvez possamos inferir que, do labirinto desses desenhos, de seu emaranhado lógico, surge a forma sucinta do retângulo que decreta o percurso a ser cumprido. Sempre por rebatimento de ponto a ponto, de Camiri até o mar do Caribe, daí ao mar da China, em seguida, ao deserto da Austrália. O que se prenuncia na imaginação, passa ao estudo cartográfico e, sob o impulso de uma pregnante forma invisível, torna-se ação efetiva, ofício de escultura. A princípio, uma e só uma decisão impôe-se: seguindo à distância o conceito clássico de escultura – extrair matéria do bloco de pedra –, os deslocamentos serão subtrações, exercícios crescentes de abstração. Fazer para desfazer – sublimar matéria simbólica acumulada, matéria de vida inerte, agilizar a escultura graças ao gesto saudável e eficaz do despojamento. Assume-se de saída, por exemplo, que os dois anéis de mármore menores que, na montagem de Camiri, aninhavam-se na superfície interna do grande anel – o mesmo que ora comparece ao Parque Lage – serão deixados para trás, abstraídos, em locais específicos na costa do Caribe. Duas fotos sumárias registram os eventos pedestres, entretanto, marcantes. Nada de exclamativos, há que tomá-los pelo que são: passagens para a futura escultura.

Já a viagem a Dong-sha, no mar da China, ocorre sob o signo do espanto: a pequena ilha, constata o artista, tem a forma emblemática do anel. O que o compele a tornear com as próprias mãos um finíssimo anel de mármore com 43 centímetros de diâmetro e a espessura de seu dedo anelar. Chegando à ilha, após infindáveis marchas e contramarchas burocráticas, a missão é mínima – esquecer o precioso anel na praia. Um tanto pesaroso, é verdade. O desprendimento é a regra de ouro que preside a ética do trabalho. Mais que isso, é procedimento estrutural – limar todo e qualquer excesso, aliviar, apurar a forma substantiva da escultura. O que nem sempre se revela tão tranquilo. Uma vez no deserto australiano, perplexo em meio ao vazio, Nelson Felix pôe-se a andar e andar entre os 22 anéis de ferro, encomendados para a ocasião, e um anel de mármore que trouxera do Brasil. As peças, votadas ao abandono, despertas talvez pela energia do deserto, reagem – de improviso, o artista sai a ordená-las e reordená-las em sucessivas variações. Ao que tudo indica, o demônio do minimalismo – a composição – retorna a cobrar seus direitos contemporâneos e só resta ao escultor conjurá-lo por meio de um exaustivo e efêmero ensaio composicional. Por fim, o programa se cumpre, as peças ficam entregues ao deserto, e apenas três ou quatro fotos, de muito longe, registram o périplo. Note-se contudo que, entre todos os deslocamentos, este é o único a deixar exposto o nervo da questão – o conflito escultórico entre o contingente e o permanente.

Fechado o retângulo fatal e arbitrário que dá a volta ao mundo, e sugere a figura recorrente do círculo, o trabalho não poderia parar. Seria fácil, simétrico demais. Desde o início, a extravazar os pontos geográficos rebatidos, a escultura intui um quinto ponto aleatório, errante, uma fuga para o alto, quase em suspenso, que a complementa: o vulcão Hekla, na Islândia. Diante dele, aí sim, calma e pensativamente, Nelson Felix olha para o ponto futuro, em direção ao Parque Lage.

Tudo é a escultura pronta, finalmente, tudo conta em seu processo de realização. A experiência de Cavalariças se quer autônoma, imanente, prescinde da narrativa das manobras poéticas que a antecedem. E, no entanto, elas foram inadiáveis, imprescindíveis: agentes positivos da forma da escultura. A meu ver, em dois sentidos importantes. Primeiro, dotam o trabalho de um passado sensível a ser incorporado. A sua notória tendência a seguir em frente, repetir-se ao infinito, teria que conhecer uma contrapartida. É inegável, a figura geométrica dominante é o círculo – a serialidade obedece aqui a uma ordem cíclica, com certeza não ruma a um suposto infinito pacífico. Ainda assim, faltaria talvez à escultura a pulsação invisível da vida, a memória acidentada de um passado a lhe oferecer resistência, a lhe dar consistência. Dele decorrem as pequenas decisões cruciais ao longo do percurso, no esforço constante do artista para visualizar, convicto, a escultura. Tudo o que foi feito, e deliberadamente desfeito, concorre na forma pronta para torná-la perfeita. Isto é, na forma justa de seu problema insolúvel.

Num outro sentido, as ações poéticas que a pré-formam, na medida em que escapam ao domínio de sua apresentação, abrem a escultura ao futuro. Uma obra que se constrói por meio de elementos móveis, atópicos, desfruta a liberdade de combiná-los indefinidamente. Os seus anéis, cambiáveis por vocação, aparecem e reaparecem em diferentes situações. E mesmo quando desaparecem, como é o caso, trata-se de fenômeno singular. Porque, na verdade, desaparecem dentro da escultura: permanecem latentes, na expectativa da próxima.

 

ponto final, ponta solta

 

A confirmá-lo, no meio do caminho, uma nova tarefa já reclamava, insistente, a atenção do artista: um outro grupo de esculturas que fariam, e não fariam, parte de Cavalariças. Uma extensão, uma contramedida. A serem expostas simultaneamente na hap Galeria, por coincidência ou fatalidade, situada nas cercanias do Parque Lage. A figura central aqui é o cubo, às voltas com o círculo e o retângulo. Como de costume na obra de Nelson Felix, enquanto se afirma, a geometria também se desmente. Ela garante, sem dúvida, a intuição primitiva do espaço – o resto é ornamento. Mas, uma vez que o espaço não é homogêneo, a geometria desconhece figuras ideais – elas são reversíveis, fundem-se umas às outras, agentes da incerteza e da ambiguidade constitutivas do mundo da vida. Os três exemplares dos cubos* que o digam: a estreita conjunção entre dois cubos vazados – debastados de um só bloco de mármore, o que faz toda a diferença – gera o paradoxo de uma unidade díspar, um todo dividido. De saída, o olhar tropeça na ligeira assimetria entre um cubo e outro e, para todo o sempre, vai estranhar um dentro do outro, pois são do mesmo tamanho: o conteúdo é igual ao continente

* O meu amor vai encontrar você (escultura para cantos)

 

E a presença sutil dos Anéis de Ouro – alianças no modelo padrão – entre as arestas dos cubos, nos pontos de apoio, a evitar que o mármore estoure com o atrito de superfície, é muito mais que um recurso técnico. Os seu efeitos se propagam em múltiplos sentidos que ora somam, ora se contrariam, e nos obrigam a retornar ao enigma concreto dos cubos. A priori, não há por que reprimir, por exemplo, a sugestiva mística milenar do anel e do ouro e sua aura espiritual. Basta deixá-la assim: no ar. De fato, conta pouco para a leitura material das peças. Já o dado perceptivo mínimo dos círculos diminutos, a vibrar entre os cubos, é intrínseco ao sistema nervoso das esculturas. Símbolos de plenitude ou não, os Anéis de Ouro resultam fatores de inquietude e desequilíbrio. E intrigam, interpostos entre os cubos, a infiltrar luz entre o mármore e o vazio.

O que se agrava consideravelmente com a intervenção das Ponteiras de Bronze, por vários motivos. Primeiro, não são figuras geométricas, tão-somente coisas do mundo, instrumentos de ofício do escultor. Depois, pela presença visual ostensiva, diferente da presença quase subliminar dos anéis e a contrapelo da regularidade dos cubos. E sobretudo porque desempenham funções inequívocas: fixam, deslocam ou inclinam, enfim, põem ou tiram as peças do lugar. E não como acessórios dispensáveis: fazem parte delas em qualquer contexto de apresentação. Acidentes essenciais, ditaria Aristóteles. A seu modo, as ponteiras reiteram a obsessão do artista pelo desvio como princípio de ordem: a inclinação, o deslocamento mais ou menos acentuados tiram a escultura (e até, às vezes, a moldura do desenho) do prumo e corrigem sua posição no mundo – em última instância, a terra gira em desvio de 23 graus em relação ao eixo do Sol. Ao recorrer durante um bom tempo à estrita observância de tal fenômeno – a eclíptica – Nelson Felix fazia tábula rasa do dilema da composição. Por decreto poético, tudo passaria a respeitar o desvio de 23 graus. A partir de Cavalariças, entretanto, o princípio do desvio emancipa-se, perde o caráter ortodoxo, varia segundo o momento e a inspiração.

Vazados, assimétricos, estes cubos não existem em processo aberto, cabem inteiros no campo de percepção que problematizam. Na antítese, portanto, da extensa operação escultórica, a um tempo volumosa e volátil, de Cavalariças. Embora, sob certo aspecto, procedam de feição análoga – ao debastar matéria, criam vazios significativos. A topologia do trabalho envolve fluentemente as suas diversas instâncias, ações poéticas, desenhos ou esculturas, sempre a entrelaçá-las e a distingui-las. Assim, um dos cubos presentes à exposição de Camiri, no Museu Vale, em outubro de 2006, ressurge agora, transfigurado, sob a forma de outro cubo.[2] Nada disso guarda um nexo secreto. Claramente, os trabalhos derivam um do outro, por continuidade ou divergência, semelhança ou estranhamento, afinidade ou oposição estrutural. Três das últimas esculturas cúbicas, como vimos, reagem ao círculo e ao retângulo, descartam as peripécias de Cavalariças. A quarta delas contudo – Desenho no mundo – praticamente a arremata. De um único cubo debastado, aparecem dois retângulos virtuais, em cruzamento horizontal-vertical. Pois bem: somados em sentido longitudinal, repetem a proporção do desenho do percurso pelo mundo que origina a escultura do Parque Lage. Só agora, concluído o trajeto, o desenho pode se materializar em escultura. Um ponto final, uma ponta solta…

A união entre Cavalariças e a mostra simultânea e quase contígua na hap Galeria sela-se com a série luminosa de dez desenhos – a rigor, colagens – em folha de ouro e a presença recorrente das alianças. Em franco contraste com os desenhos toscos, a caneta esferográfica, de Camiri e sua intensidade nervosa – a sondar o campo da futura escultura – os desenhos recentes brilham serenos e meditativos. Fiéis ao registro do sóbrio, não especulam, não extrapolam, atêm-se ao curso da escultura à qual pertencem e da qual ora se despedem. Dentro da lógica abstrata do trabalho, independem de narrativa prévia: cada um deles resume a conjunção disjuntiva entre a mancha aproximada de retângulo em folha de ouro e uma aliança padrão. As manchas atravessam casualmente o papel, como de passagem, mas o impregnam graças ao ouro dispersivo, duradouro. Já as alianças de ouro, que completam e sacramentam, surgem deslocadas, o olho não consegue bem fixá-las, em contato com o retângulo, meio à deriva.

[1] Camiri é uma pequena cidade no interior da Bolívia, onde tem início o trabalho. Sua latitude corresponde perfeitamente à do Museu Vale, em Vitória (es). Quando ali realiza exposição, em outubro de 2006, sem hesitar, Nelson Felix vem a chamá-la Camiri.

[2] Mas o fato plástico decisivo que liga Camiri a Cavalariças é a progressiva elevação das vigas de aço. Nas duas salas do Museu Vale, elas saíam quase do rés do chão, alcançavam meio metro de altura e, sempre de parede a parede, erguiam-se ao proverbial desvio de 23 graus. No Parque Lage, consumado o percurso da escultura, as vigas de aço encontram-se, decididamente, em posição vertical.

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o percurso cheio de resquícios de uma escultura

Catharina Wrede - 2011

O Globo – 2011

 

Nelson Felix inaugura hoje no Oi Futuro Flamengo ‘Concerto para encanto e anel’, fruto de um trabalho de quatro anos

 

É algo como o percurso de uma escultura, com o objeto final imbuído das sensações de sua trajetória. Ao contrário de uma obra esculpida em mármore, em que é preciso retirar material para se chegar ao resultado pretendido, a exposição “Concerto para encanto e anel”, em cartaz a partir de hoje no Oi Futuro Flamengo, é o resultado de um trabalho que o artista plástico Nelson Felix vem desenvolvendo desde 2006 e cujos resquícios não foram abandonados. Estão todos lá.

Primeira escultura sonora de Felix, “Concerto para encanto e anel” origina-se de um trabalho constituído de quatro partes que sintetizam, de modo original, a construção da obra: duas exposições (“Camiri”, no Museu Vale, e “Cavalariças”, no Parque Lage); uma série de ações realizadas pelo mundo (“4 cantos”, em que o tal anel virou instalação urbana em seis países); e um livro (que leva o mesmo nome do trabalho, tem textos de Ronaldo brito e Marisa Florido, e, além de imagens de todos os estudos e cidades visitadas, traz duas séries de desenhos). A publicação, de 300 páginas, será lançada na semana que vem, no Oi Futuro, com mesa-redonda.

O artista dividiu o espaço expositivo em duas partes – segundo ele, uma extremamente simples e outra muito complexa. A sala principal, que abriga a “obra mais complexa”, é toda revestida de material acústico, como num estúdio, com espuma no chão e nas paredes. Lá dentro, quatro monitores de TV vão exibir o momento em que o anel – a escultura principal – entrou nas Cavalariças em 2009, erguido por um guindaste. O som do enorme objeto sendo colocado chamou a atenção de Felix:

– Sinto que fiz música contemporânea através da imagem. Você entra na sala e se prepara para ouvir um som – diz ele.

A obra “mais simples” consiste em uma prateleira com sete projetores empilhados, com suas lentes direcionadas para um mesmo ponto. Projetadas em uma cortina de seda, as imagens sobrepostas exibem, em loop, fotos e desenhos produzidos pelo artista: cubos, cruzes, anéis, círculos, assim como os lugares do mundo percorridos por ele para posicionar o anel.

– A obra é outra quando se tem o anterior dela. É como nas relações de amor. Você pode até abandonar o objeto amado em algum momento, mas se o sentimento era forte, acaba carregando com você. Esses lugares todos que percorri não tiveram uma finalidade, mas fizeram parte da obra e estão sendo projetados, transformados em luz.

Desde o início, em 2006, Felix sabia que o processo iria durar alguns anos:

– Sempre foi um trabalho que gerou uma potência muito grande, de trabalhar o tempo todo no limite. E é isso que busco sempre. O que realmente me interessa é gerar pensamento reflexivo, seja ele plástico, sono… esse é o valor da arte para mim.

A ideia do livro surgiu da tentativa de construir o pensamento do trabalho. De acordo com ele, bastam três segundos virando uma página para se saltar de um ano para o outro. O vídeo veio do mesmo objetivo, com um desafio a mais:

– O vídeo cai, automaticamente, na forma didática. Só que, na arte, a poesia é mais forte. Podia ter colocado imagens de todo o percurso, mas vi que o momento mais importante era quando o anel estava sendo colocado nas Cavalariças. Foi um momento ímpar.

 

‘Um certo jazz’

Felix conta que no instante em que o anel estava sendo posicionado para entrar nas Cavalariças, um engenheiro, apreensivo, logo profetizou que a escultura iria estourar, ao que o artista respondeu que, se estourasse, seria um anel rachado após tudo que percorreu. E tudo bem.

– A obra está viva, e esse estado de vida, de tensão, com o trabalho é que importa. É um certo jazz que preciso fazer, chega um momento que é no improviso. Isso te dá uma potência de vida. O barato da arte não é só fazer, é ir respondendo a ela. Não ligo muito para o lugar em questão. Agora, se me convidam para expor aqui no Oi Futuro, por exemplo, eu aceito enquanto estiver fazendo sentido. Se estou sentindo que estou fazendo arte, tudo bem.

Quando Felix é levado a falar da admiração por outros artistas, acaba fazendo uma espécie de autoavaliação:

– Acho que o homem só consegue ter uma relação profunda com as coisas depois de uma certa idade. Nunca liguei muito para obras de outras pessoas. No início, você tem uma relação intelectual com os outros artistas, de saber que aquilo é importante, mas entre saber e sentir de fato um amor, há uma certa diferença. Foi preciso perder alguns cabelos pretos e passar por algumas perdas para realmente perceber a potência de algumas pessoas.

 

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imagens e sons em atrito

Marisa Flórido - 2011

Concerto para encanto e anel

O Globo – 2011

 

Nelson Felix mostra ‘ópera em quatro atos’ construída em pontos diversos do planeta.

O som das matérias em atrito ecoa violento e áspero pela sala. Rangem as nove toneladas do imenso anel de mármore e as vigas de ferro que se deformam em sua passagem. O canto bruto circunda-nos como um anel, como o deslocamento do artista ao redor do mundo, como a terra em seu giro em torno do sol. A esse som circular, vão se superpondo outros, que invadem nosso corpo, fazendo-o vibrar. Nas paredes que nos envolvem, quatro projeções: a versão original do vídeo, e mais três que a repetem com diferenças ínfimas de tempo – de cada vídeo, foram extraídos cinco, sete 11 frames. Números primos que orquestram, em sua combinação, um concerto aberto e imprevisto. Unidades abstratas de medida, a partir das quais se estabelecem o ritmo, a cadência, o pulso musical e das imagens. “Os quatro vídeos em looping geram um concerto que, mesmo construído sobre poucos sons, nunca se repetirá nos 45 dias em que o trabalho estiver exposto.”

“Concerto para encanto e anel”, exposição de Nelson Felix no Oi Futuro/Flamengo com curadoria e texto de Alberto Saraiva, é uma “escultura sonoro-visual”, como define o curador. Ou uma “ópera de muitos atos”, como a chamou o artista. Uma ópera que se iniciou há mais de 20 anos, quando realizou quatro obras nas paisagens da América do Sul, entre 1985 e 2003: em “Cruz na América”, interligou dois pontos no mapa, a Floresta Amazônica e o Pampa Gaúcho e, com uma perpendicular a essa reta, o litoral cearense e o deserto do Atacama. Na intersecção da cruz, estava “Camiri na Bolívia”. É a partir desse centro que se inicia o certo construído, como diz, em três atos: duas exposições (Camiri em 2006, no Museu Vale, e Cavalariças em 2009, no Parque Lage) e uma série de inserções artísticas em vários locais do mundo definidos por cruzamentos abstratos no mapa. Acontecimentos que nos recusam o contato direto, que se tramam em um arco de invisibilidade entre os dois momentos expositivos, os momentos de doação aos olhos.

Com o rebatimento da coordenada de Camiri no Hemisfério Norte, Nelson Felix encontrou Anguilla e a República Dominica, no Caribe; sua projeção para o outro lado do mundo, a ilha de Dong-sha, no mar da China e Karratha, na costa australiana; a inversão das coordenadas de Camiri, o vulcão Hekla, na Islândia. Em cada lugar, depositou uma escultura da exposição inicial, e extraiu da viagem uma única fotografia, um instante conciso e circunspecto.

Irrisório momento definido por um entrelaçamento sem fim de relações. Um lugar não é mais que uma contingente e breve posição em um universo móvel, tão dependente dos desenhos, coordenadas e símbolos com que convencionamos aos espaços e os tempos, quanto dos acasos e desvios que nos extraviam. Oscilamos entre as medidas e o incomensurável, entre a existência como uma desatenção do tempo e as horas dilatadas dos astros, entre a pulsação do corpo e as distâncias cósmicas, entre a instabilidade dos solos e a gravidade que a eles nos ata. Cada acontecimento resulta de uma combinação de forças que tanto se repete como se diferencia. Por isso as obras dessa “ópera” são, a um só tempo, únicas, singulares, todavia interligadas.

São as fotografias realizadas ao longo do périplo do artista, e o vídeo da montagem da exposição no Parque Lage, que vêm agora amalgamar-se à sua “manifestação escultórica”, como escreve o curador. Poderia ser de outro modo? Se os trabalhos e ações foram guiados por desenhos abstratos no globo – pela circularidade dos tempos, dos deslocamentos, dos gestos que se repetem -, eles acabariam por encontrar aquela que foi, um dia, considerada a mais abstrata e temporal das artes: a música. Ela própria, em “Concerto”, submetida a um procedimento tradicionalmente escultórico: se na escultura, extrai-se para construir, desbastando-se o bloco de pedra; na instalação sonoro-visual, o artista retira tempos e imagens, subtraindo frames do vídeo.

Tempo, espaço e existência

Processo inverso ocorre no outro trabalho em exposição: as fotografias das viagens são superpostas em 12 projeções, em ritmos aleatórios. A superposição comprime as distâncias, o acúmulo apaga as imagens – devolve-as assim à invisibilidade que as engendrou.

Tempo, espaço e existência orbitam em infinitas associações, tramam escalas diversas, pulsações variadas. Como compreender a circunvolução do artista? Esse ato de doação e abandono de suas peças? Não creio que seja da ordem de uma construção formal, reproduzindo a ação clássica da escultura: retirar o excedente da matéria, dele desfazendo-se. Felix embaça o que é ora e o que é sobra ao depositá-las pela superfície de um mundo que não cabe em meridianos, globos, pensamentos. O que ele deposita é um excesso, o que nos ultrapassa. Por isso o que ouvimos nesse concerto é o canto ruidoso da matéria. “Doce é a violência da arte”, disse certa vez. Este é o encanto e a perdição da arte: orquestrar e desenhar mundos, sabendo que eles não cabem em obras.

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encontro com nelson felix e marisa flórido

Marisa Flórido - 2011

Conversa realizada no Espaço Oi Futuro em 2011
e publicada no livro Cadernos EAV 2009: encontro com artistas

Governo do Estado do Rio de Janeiro
Secretaria de Estado de Cultura
Escola de Artes Visuais do Parque Lage

 

Alberto Saraiva – Durante três anos negociamos com Nelson Felix a realização desta exposição[1] que aqui está: uma escultura sonoro-visual, um trabalho de imersão. Falamos de conceitos de escultura que lidam com elementos muito transparentes, muito sensíveis, mas, ao mesmo tempo, fortes e intensos como o som e a imagem. Embora Nelson trabalhe com materiais como mármore e metais, e mais recentemente com vídeo e fotografia, esses elementos já estavam presentes em sua obra. Pois é, uma obra que absorve tudo o que está no ambiente, ela tem passagens, tem vãos no seu processo de construção… E ele decidiu que o Oi Futuro era o lugar ideal para realizar o projeto. Ficamos felizes, porque Nelson é um dos nossos artistas prediletos e um dos mais importantes do cenário atual. Então, vamos agora ao lançamento do livro. Estamos aqui com Nelson Félix, como também com Marisa Flórido, uma das críticas com texto no livro, que tem acompanhado a obra do artista, e que vai poder nos falar um pouco desse trabalho. O livro[2] é um livro de desenhos, um livro de projeto. A ideia de projeto, de desenho como projeto, é antiga, mas o livro também fala de aspectos muito sensíveis como a linha e o pensamento reflexivo. Eu tenho dito que o desenho (algo que gosto muito e sobre o qual venho escrevendo) é quase uma filosofia; o desenho é quase uma elevação da filosofia. Se existe algo na arte que se equivale à filosofia, para mim é o desenho, porque é pensamento sensível. Nelson com a palavra.

Nelson Felix – Agradeço a todos pela presença, a Marisa especialmente e ao Alberto pelo convite. Quando convidei Ronaldo Brito para participar desta conversa, havia a possibilidade de ele viajar nesta data, o que acabou ocorrendo de modo meio relâmpago. Ronaldo está na Bélgica neste momento. Como a divulgação da mesa saiu antes de confirmada a viagem, peço desculpas a todos e agradeço a ele, também, pelo prazer de trabalharmos nestes 5 ou 6 anos juntos.

Bem, a ideia é lançar o livro e falar um pouco sobre o trabalho aqui no Oi Futuro.

Fiz o livro com um amigo artista, mais jovem, Wanderlei Lopes. Trabalhamos no livro alguns anos, numa boa sintonia, lhe agradeço também por esta luxuosa parceria. Sua disponibilidade foi fundamental e por isso o livro consegue tatear o pensamento poético que direciona o trabalho. Esta foi uma questão que sempre orientou o livro e o estruturou com desenhos e não com discurso. Desenhos que desenvolvi quando construía o trabalho.

Acho que o meu trabalho é construído por camadas de pensamentos, significados, que se agregam a outros significados, e mais outros, ora poéticos, ora teóricos. Esta soma de significados se anula, não pela negação, mas sim pelo excesso. E a perda do significado gera um oco, até esperado, que faz a obra renascer ao olhar, que a reestrutura. Sua visualidade então é calcada nestes pensamentos ligados abstratamente, que muitas vezes não se encadeiam para se evidenciar. É uma linguagem de cunho poético, solta, e ao mesmo tempo que totalmente construída. Por isso, não queria que o livro fosse especificamente demonstrativo das ações do trabalho, como me propuseram.

Para não amarrar esta exigência poética, senti a necessidade de outra poesia. Quando penso, penso desenhando na mente — a poesia desse processo prima por estar fluida, gráfica. E, como toda poesia, pode se transformar a qualquer identificação ou definição, na maioria das vezes é o que se tateia.

Há uma diferença entre fazer um livro definindo e o fazer abrindo o trabalho. Uma linguagem discursiva, muitas vezes, explora ponto por ponto, pausadamente, mas não tem a possibilidade de abrir um só viés e todos ao mesmo tempo. Essa convivência de um ou dois, ou todos; unidos e únicos, é de outro princípio de inteligência. Para desenhar, é necessário definir o outro pelo mesmo, com o princípio que está aqui e lá. Bem, o livro é todo o processo da colocação do Anel ao contrário.

O livro e o vídeo[3] me permitem anular o tempo. Como essa obra foi feita em vários anos e em vários locais, semelhante a uma ópera e seus atos, ou a um concerto e seus movimentos. Foi possível, no livro, ter 4 ou 5 anos ligados e não romper a sensação cronológica desse tempo, pois se tem uma fração de segundo na mente para percorrer esses 4 anos — uma ou duas viradas de página.

Para o vídeo, Alberto Saraiva tinha me feito um convite, há uns anos atrás, mas teria que viajar provavelmente com um videomaker. Além disso, tinha questões como, em determinados lugares, só conseguiria ir em uma determinada época do ano. A Islândia, por exemplo: no local onde fui não se chega no inverno, e o inverno lá são vários meses. Tinha todo um processo, independente do processo poético, a ser resolvido, questão a questão… aduana, peso, etc.. Vi que se eu começasse a amarrar muito as datas e diversas outras exigências, eu colocaria uma camisa de força e não iria realizar nada poeticamente, principalmente com a concentração necessária. Precisava de uma liberdade naquele momento e foi o que fiz, conversei com o Alberto e suspendemos o convite. Tempos depois, com o trabalho realizado e com esta visão, de fazer um trabalho sobre o trabalho, nos encontramos novamente.

O vídeo é exatamente o contrário do livro, é um só momento do trabalho. Há 2 pontos centrais no Concerto: a ideia de deslocamento, no meu percurso e da escultura, e a escultura se realizando nos dois espaços arquitetônicos. Vejo que, nesse trabalho — desde que ele começa no Museu da Vale[4], aliás antes, desde o ponto de Camiri (como centro da Cruz na América) até a Cavalariça[5] — tudo culmina na ação da entrada desse anel. Posso estar até sendo um pouco pragmático, mas essa ação, tanto ela em si, como teoricamente, constituiu uma performance e todo o resto é sobra. Sobras que formam a obra, mas sobras. O vídeo é isto: o momento dessa performance, sem as sobras. Tem sua própria natureza, que é diferente daquela do livro.

O trabalho com o vídeo tende a ser documental, é próprio da linguagem dessa mídia. Sempre gostei muito dessas coisas diretas das linguagens, mas ser documental, nesse momento, como uma obra contínua, seria ruim.

Percebi no som, ali, na entrada do Anel nas vigas, a contração de todo o processo. Era música, e música criada pelo peso: uma questão primeira da escultura. O que fiz foi criar ritmo. O vídeo tem 4 projeções em 4 paredes, num espaço cúbico fechado e todo coberto de espuma, teto, chão e parede. A espuma é um material relacionado ao som, mas aqui a transformo em espaço, em escultura. E no chão, inclusive, interage, desequilibra. Uma destas projeções é a original, das outras retirei 5, 7 e 11 frames, respectivamente. Isso faz com que o som de uma projeção seja levemente diferente do tempo das outras, e, com o andamento do trabalho, essa diferença cria uma musica ritmada que nunca será a mesma nestes 45 dias de exposição.

Aberta a conversa, agora vamos convidar a Marisa.

Marisa Flórido – Gostaria de agradecer a Nelson e a Alberto pelo convite e começar contando a sensação que experimentei ao entrar na sala de exposição de “Concerto para encanto e anel”. Não sei se vocês sabem que os antigos gregos acreditavam que as distâncias entre os astros obedeciam às proporções de intervalos musicais. Para os pitagóricos, os tons emitidos pelos planetas dependiam das proporções aritméticas de suas órbitas ao redor da Terra, do mesmo modo que o comprimento das cordas de uma lira determina seus tons. Se as esferas próximas produzem tons graves, os agudos vão aparecendo na medida em que a distância aumenta. Assim, a combinação entre os sons de cada esfera, em seu perpétuo girar em torno da Terra, produziriam uma música suave, a “música das altas esferas”, harmonia cósmica apenas audível em condições muito especiais.

Há algum tempo, os cientistas da NASA descobriram que os astros de fato cantam. Um satélite gravou tal “canto”. A atmosfera do sol emite ondas sonoras 300 vezes mais graves do que o ouvido humano pode captar. Há uma “música das altas esferas”, sim, mas o som que se ouve é muito mais próximo de um rangido, de um atrito metálico, do que da doce melodia das liras gregas. E se classificássemos a música das altas esferas, seria quando muito uma espécie de “heavy metal”.

Foi da música gutural das altas esferas que me lembrei quando entrei na sala expositiva (aqui no Oi Futuro) e ouvi “Concerto para encanto e anel”: era um rugido. O rugido das nove toneladas do imenso anel de mármore se encaixando nas vigas de ferro que se deformavam em sua passagem. Pois essa videoinstalação foi concebida a partir do vídeo da montagem da exposição de Nelson no Parque Lage em 2009.

Era o rugido do atrito da matéria circulando à nossa volta. E tudo circula ali (ainda mais caminhando sobre aquele chão instável): o som circula, as imagens circulam, Nelson circulou pelo mundo… Como a Terra, que gira ao redor do Sol… Mas ocorre que ela não faz um círculo perfeito, mas uma elipse: 23 graus de desvio da órbita em relação ao eixo do Sol.

Do mesmo modo, longe da harmonia da lira, da harmonia universal dos gregos, o som que se ouve ali tem também a sua “marca de imperfeição” como define Nelson esses 23 graus. Uma marca ou um desvio que, em seu processo artístico, torna-se fundamental. Eu gostaria que você falasse sobre isso, Nelson, sobre essa marca, sobre essa imperfeição e desvio… E sobre “Cruz na América”…

Nelson Felix – Ok, mas para chegar ai, necessito chamar atenção para um ponto central do nosso tempo: o homem atual lida constantemente com muita informação e no artista contemporâneo, esta informação é saturada de História da Arte, inclusive a recente. Hoje, quando o artista coloca um trabalho no mundo, imediatamente tem alguém querendo fazer relações ou estabelecer algum laço deste trabalho com algo histórico, ou mesmo com outro atual. Estar ciente, que constantemente vamos lidar com essa presença “histórica”, com essa total possibilidade de imediata inserção num processo de linguagem, é no mínimo necessário.

Durante o século XX, nos libertamos de determinadas situações na construção da obra, de certo academicismo rompido com a visão moderna, e mais ainda, com a contemporânea. No cubismo, abrimos a forma, no fauvismo, a cor, no tachismo, no concretismo, na performance, etc. fomos abrindo o leque… na arte povera, os materiais, ou mesmo com Beuys, etc.. Expandimos o horizonte, mas ao mesmo tempo incorporamos fortemente outras questões, mais mentais, como o pensar na formulação da obra. Vejo no processo, uma potência – existe um refinamento de linguagem muito sofisticado nos dias de hoje.

Agora voltando à sua pergunta. No meu caso, utilizo de determinadas técnicas, que me são próprias. Meu pensar é abstrato. Não é só a forma que é abstrata, como os cubos, a cruz, o círculo; é o pensar que é abstrato, sem palavras, num encadeamento de ideias que desdenha o discurso. Isso me libera momentaneamente da história, do estar no mundo de respostas. Eu me considero um artista abstrato. Mesmo quando parto para o mundo, parto para o mundo com coordenadas. Para situações onde a forma é impregnada de situações externa a ela, ou preste a se modificar, ou mesmo abandonada, o que não deixa de ser uma abstração também.

Muitas vezes, trabalho com formas que já existem: cruz, círculos, etc. Sempre que possível, evito a me propor a criar formas. No fundo, acredito que tudo é a mesma coisa, tanto faz trabalhar com a forma de um cubo, de um anel ou de um calcanhar — elas já existem. Na realidade, é a busca da poesia que agrega significados, que são embebidos e abstraídos ou absorvidos nestas formas, que me satisfaz. Já as coordenadas, vejo o mesmo princípio destas formas, elas já existem. Assim como todo cubo é igual, todo lugar é igual para as coordenadas. Isso me permite, no instante mesmo de estruturar o trabalho, me libertar da composição. Não escolho onde colocá-lo e muito menos tenho que dialogar, naquele momento, com a paisagem.

Existem, no processo de trabalho, várias questões, questões que se sucedem, se unificam e conservam sua identidade, amalgamam-se. A tal ponto que me é difícil falar de uma coisa sem mencionar outra. Já conversei muito com Marisa sobre isto, uma vez ela cunhou os significados.

Quanto aos cubos, vou traçar aqui o que me lembro da construção mental do “Vazio Sexo[6]”, que é um cubo dentro de um cubo, e assim chegar à utilização dessa forma e, assim por reflexo, às outras, como a cruz e a torção. Observava os diversos buracos que existem no corpo humano, e me concentrei no cérebro, no sexo e no coração. Existe, nesses 3 locais, grande intensidade de energia e, principalmente, poesia. São espaços mais centrados nos seus vazios que nos cheios e são sintéticos, como uma abreviação de todo nosso organismo. O sexo, por exemplo, que gera o orgasmo, percebo – aliás, não só no orgasmo, mas também, no êxtase e na morte — uma extrema organização. Perfeita, plena, e dentro de uma estrutura plausível de se desorganizar, a presença de tudo o que não seja seu ou da sua natureza. São voltados para eles. Mas no sexo, o “fazer”, o contato é fundamental e ai está sua potência. Resumindo, a princípio, o sexo se faz. Estes pensamentos meio poéticos, vão se tornando matéria, à medida que você vai os incorporando, na forma, no material, no ritmo, etc., e depois, quando já na escultura em si, são permeados pela história, ou pelo espaço.

O pensamento sobre o “fazer” foi adquirindo uma posição central na obra e torceu o eixo para um dialogo com questões centrais da estrutura da arte contemporânea, mais que com o sexo, mas esta tudo ligado. Começou na forma, não queria que ela me trouxesse composição. Excluir na raiz este “gosto/não gosto”, e coisas desta ordem, era fundamental. Me pareceu bom ser uma forma dada, já existente, que apesar do ‘fazer’, carregasse nela o ‘não fazer’, por isso a forma tão marcadamente minimalista. Descobri a raiz desta forma cúbica em Leonardo da Vinci, mas presente hoje, em Sol LeWitt, aliás é por ele que ela que nos chega atualmente, mas Leonardo conviveu com ela, resumindo, uma forma sem dono.

Essa relação próxima com o minimalismo me interessou. Este ‘não fazer’ minimalista, que vinha imbuído nela era primordial. A realização dessa forma seria muito complexa, pois acrescentei mais um cubo ao seu interior: são dois cubos inteiros, sem emendas, esculpidos de um único bloco – um feito dentro do outro. Assim o fazer é que se tornou minimalista, pois todo dia repetia os mesmos gestos, dentro do mesmo procedimento, num longo e repetido processo serial, que só se alterava quando virava a face do cubo. Uma inversão, com a forma pré-estabelecida, existente, o ato de fazer a peça é que torna o seu centro, e chega à razão, ao pensamento da peça.

O olhar é mental, acredito que há olhares diferentes, mais e menos poéticos, sua sensibilidade de percepção depende muito do grau de “conhecimento” que você tem sobre o que observa. Logo, quando se sabe que não existe cola naquele objeto, você tem um outro olhar sobre ele, mas a escultura não teve nada agregado a ela. Nada lhe foi somado, ou retirado, mas a vemos diferente. Existe um salto no devir poético, e isso me interessava, há algo ai não só do fazer, mas também da natureza do orgasmo, da poesia e do sagrado.

Sempre que quero, faço o trabalho. Vejo nisso um ganho que surge da relação com o material. Sem sombra de dúvidas, a interação não é de ordem discursiva. O fazer estimula uma percepção não verbal, mas também, posso mandar fazer. Não tenho problema e não sei porque criar problema com isso. A questão contemporânea, para mim, não é se você faz ou não faz o seu trabalho, mas sim a densidade de pensamento que você coloca no circuito com o trabalho. Fazer ou não fazer diretamente o trabalho, depende do processo de cada um e, às vezes, para mim, de cada trabalho específico. Penso, até, que se você sempre menciona que nunca faz, ou mesmo, que sempre faz o trabalho, cria uma importância, um ponto relevante onde não é preciso. Gosto de desprezar teoricamente esta questão, faço quando for necessário.

Terminando, na peça torço os cubos, com um molde em prata de uma vagina, nada feito, moldado direto, uma dupla homenagem a Duchamp, novamente a história. Esse trabalho contém varias citações, dedicatórias, que se agregam ao significado.

Marisa Flórido – Nelson, seria bom falar como se inicia Cruz na América...

Nelson Felix – Certo, tínhamos combinado e eu passei direto. Cruz na América se realiza por quatro trabalhos feitos na América. As primeiras ideias começaram em 84, 85 e por acaso deu em quatro paisagens diferentes. São trabalhos, com uma relação com o tempo e escala composta por uma forma. O espaço desses trabalhos tem uma escala meio gráfica, Glória Ferreira, escreveu sobre ele. Cada um deles respondem por si, começam e acabam neles mesmos, mas ao mesmo tempo os quatro são um. O Grande Budha[7], foi o primeiro que idealizei, mas só fui instalá-lo depois do segundo trabalho, a Mesa[8]. Isto porque o compraram e teve uma distorção na proposta, depois outros problemas, e ai eu o recomprei para colocar-lo onde era, no Acre.

No Grande Budha me utilizo de uma árvore e latão, mas principalmente da ideia da floresta, do espaço da floresta… a ideia de trabalhar com árvore é porque me possibilitava não só usar o tempo, mas principalmente, como disse, o espaço da floresta, que é onde eu centrava o interesse. A árvore na floresta, cria um espaço de um igual entre vários iguais. Uma imensidão cheia, feita de iguais. Onde tudo é o mesmo, se tem uma unidade onde não existe referência, e se perde a escala. Esta perda me trazia um espaço poético, onde poderia trabalhar pontualmente, mas com a sensação desta enorme dimensão colada, cria um espaço de ordem desnorteada. Enfim, tinha ai uma poesia espacial e plástica, que me interessava. Então, é uma árvore em que eu boto umas garras e essa árvore cresce e essas garras vão se perder, como qualquer transformação que existe nas nossas realizações. Mas, o que mais me atraía, é que o centro do pensamento estava na sensação que esta árvore já estava perdida nesse lugar mesmo antes das garras, mesmo antes de eu defini-la pela coordenada como obra. É uma escala, para mim, mais mental. Duas poéticas é que direcionavam, a impossibilidade de se conviver com o trabalho, na dimensão de tempo; mil , mil e duzentos anos de formação, e a transgressões e transformações que geram as atividades estéticas e sagradas.

A Mesa no pampa, no paralelo 30º, é o contrário, o trabalho era plano. Chapa de ferro e árvores. São acasos, acasos predeterminados. Uma chapa de ferro horizontal no pampa é um plano no plano. A Mesa, como ponto oposto, na cruz com Grande Budha, destoa dele e cria com o tempo, um local no todo, uma referência no plano.

O terceiro trabalho[9] no deserto de Atacama, novamente o tempo. Um tempo mínimo, não mais o longo, de séculos. Aqui o instante, e para isto, me uso do processo fotográfico. Coloco a velocidade do ritmo do meu coração na velocidade da máquina fotográfica, vou ao ponto de coordenada preestabelecida, e tiro uma foto para cada direção dos outros trabalhos da cruz que vinha construindo. Mas, um segundo e pouco na máquina em pleno deserto – e eu ainda cheguei ao local por volta do meio dia – estouram as fotos. Quando percebi isto, a quase falta de imagem nas fotos, a princípio percebi que todo o pensamento, que havia convivido anos e que alinhava o trabalho aos outros, estava perdido.

Este processo ganhou uma dimensão maior para mim, que não é da arte em si, não se encontra no objeto gerado, na sua forma, por exemplo. Não o qualifica de melhor, nem de pior. Vem de outra natureza, do conviver, do sentir, do fazer que antecede a própria percepção do que se faz. Eu trazia conceitualmente todo o trabalho de casa; me locomover por dias, avião, carro, coordenadas, lugar exato, tempo do coração, direções das fotos, tudo estabelecido a priori, e de repente, escorre. Mas ali observei que existia no momento, uma outra potência poética, que mesmo com todo o pensamento anterior, eu ainda não a tinha comungado. Vi uma beleza nesta impossibilidade da imagem, que me deslocou a linearidade da construção de uma poesia à outra. Existe um acaso nos tempos mínimos, onde as coisas podem mudar de rumo, se deslocam por si e é só, tudo passa a ser outro… Este trabalho no deserto é um pensamento sobre o coração, onde utilizei a fotografia. Não me considero fotógrafo, a usei como pensamento.

No quarto[10], estico uma linha deste ponto do deserto ao meio da distância entre os 2 trabalhos anteriores, Grande Budha e Mesa, e a prolongo até o litoral. Coloco uma esfera de mármore com vários pinos de ferro e a deixo lá, na maré. Com o tempo, o ferro irá se expandir, pela sua oxidação, e abrir o mármore, como as fotos estouradas. Neste eixo os dois trabalhos se complementam.

Floresta, pampa, deserto e litoral, como um só trabalho.

Marisa Flórido – Cruz na América é um imenso xis no mapa. No centro dessa cruz está Camiri, na Bolívia. Apenas complementando Nelson: na mesma latitude do Camiri na Bolívia, o centro da Cruz na América, estava Vila Velha, no Espírito Santo, onde o artista expôs em 2006 no Museu Vale. Se 23 graus separavam os dois locais, a coincidência de latitude e graus os entrelaçava. (Por isso as peças escultóricas, em algumas de suas exposições seriam dispostas em 23 graus: como no Parque Lage em 2001 ou no Museu Vale. )

É a partir desse centro, Camiri, que se inicia o “Concerto” ou a “ópera” organizado, como diz o artista, em 3 atos: duas exposições (“Camiri” em 2006, no Museu Vale, e “Cavalariças” em 2009, no Parque Lage) e uma série de inserções artísticas em vários locais do mundo definidos por cruzamentos abstratos no mapa entre essas exposições.

Acontecimentos que nos recusam o contato direto, que se tramam em um arco de invisibilidade entre os dois momentos expositivos, os dois instantes de uma doação aos olhos, quando a obra/ópera efetua o movimento de seu aparecer.

Com o rebatimento da coordenada de Camiri no hemisfério norte, Nelson encontrou Anguilla e a República Dominicana, no Caribe; sua projeção para o outro lado do mundo, a ilha de Dong-sha, no mar da China, e Karratha na costa australiana; a inversão das coordenadas de Camiri, o vulcão Hekla na Islândia. Em cada um desses lugares, ele depositou uma escultura que esteve exposta no Museu Vale – devolveu-a ao mundo, portanto – realizou uma ação, ou extraiu de horas de viagem uma única fotografia, um instante conciso e circunspecto.

Cruzes, cubos, alianças, são figuras geométricas que Nelson utiliza nos seus trabalhos, são também signos de orientação e pacto convocados em meio a incessantes deslocamentos que ele empreende.

Sobre esses três signos, poderíamos dizer: a cruz supõe um tríplice acordo, do homem com sua existência corpórea e finita, com os espaços e as distâncias do mundo, com os tempos cósmicos e o ordinário das horas. Entre céu e terra, imanência e transcendência, a cruz é signo de reconciliação e ao mesmo tempo de medida.

O cubo está muito próximo dos escultores: é o monólito escultórico e a base. Como monólito — a pedra bruta que será esculpida — é uma potencialidade, um “ainda não”. Como pedestal, é o elo de passagem entre arte e mundo, uma ancoragem ao solo. O cubo é também a estrutura de representação euclidiana, as coordenadas do espaço-tempo, a naturalização do mundo, a perspectiva como forma natural de nele se inserir e perceber. O cubo é o a priori da percepção – não é à toa que os minimalistas citados há pouco por Nelson vão se utilizar do cubo (para confrontar os a priori da percepção com a contingência da experiência).

E finalmente o anel e o círculo, de onde vem o corpo do “Concerto”. O anel, por um lado, supõe uma aliança, uma re-ligação, por outro, um isolamento e uma solidão. O círculo, por sua vez, é um ponto estendido. É um ponto, como Camiri (o centro da Cruz) que se estende pelo mundo: uma distensão infinita. Sem divisões, o círculo é signo de perfeição e homogeneidade. Uma totalidade indivisível, portanto. Por seu movimento contínuo, como uma sucessão de instantes idênticos, foi o desenho do tempo para os antigos: o círculo é perfeito, imutável, sem começo e fim.

Mas Nelson toma desses signos não a potência de orientação ou de fundação de um lugar, de um sítio, de um site: ele toma desses signos a potência do entrelaçamento, aquilo que chamou de “aliança”. Mas alianças que não reconciliam, apenas tramam relações e, ao mesmo tempo, provocam desvios e deslocamentos – não por acaso ele usa os 23º, a marca de imperfeição que me referi anteriormente. Nelson, fale mais sobre esse ângulo…

Nelson Felix – Marisa, 23 graus é o ângulo que faz o eixo de rotação do Sol com o eixo de rotação da Terra. Na realidade vinte e três graus e alguns minutos. Todos os planetas rodam meio tortos em torno do Sol. Se existe alguma coisa em posição perfeita no nosso sistema solar, é o eixo do sol, todo o resto, está fora de eixo. A Terra roda numa imperfeição de 23 graus e pouco e é por esta imperfeição da rotação, que temos as estações do ano, a nossa flora, fauna, nós mesmos, etc.. Logo, a beleza veio do torto, esta beleza instintiva, que nos é próxima, a natural.

Sempre que tive que escolher como posicionar as peças no espaço as coloquei em paralelo ao eixo do Sol. No início, com um astrônomo, calculava a sua posição para o momento exato em que abriria o evento. Depois, simplifiquei, e colocava a 23º com as paredes ou com o norte, como escreveu o Ronaldo Brito: “um partido aleatório radical”. O certo para mim é que usando o ângulo, evitava a “arrumar” as peças no espaço expositivo.

Marisa Flórido – Como falava, esses signos, símbolos, são sólidos perfeitos: a esfera, o círculo, o cubo. Nelson toma desses signos sua potência de entrelaçamento, mas deslocando-os. Nesse movimento, a imperfeição não apenas é inserida ao processo, mas, de fato, o determina. Isso não supõe apenas colocar as peças em 23º, significa que todo o processo é gerado ao se derivar um trabalho de outro e o desviar, a um só tempo trazendo esses signos e distorcendo sua pretensa perfeição. Explico melhor: não habitamos um vazio onde se situam coisas e seres a partir de um centro que seria a origem e o destino das cogitações do pensamento e dos apaziguamentos do espírito. Nossa vã a tentativa de colocar o mundo em latitudes, em longitudes, em globos, em elipses, para contê-lo, para desenhá-lo. Vivemos, sim, em meio ao infinito das relações, dos cruzamentos de convenções e simbologias, de naturezas e artifícios que não se reconciliam. Por isso, quando ele coloca suas peças a 23º alinhando-as à órbita da Terra, elas entram em imediata estranheza com o local em que estão. E, no entanto, estão perfeitamente alinhadas com o cosmo, melhor, com o movimento do cosmo. Pois o que é específico não é o lugar, o site, mas essa trama de relações que define por um irrisório momento nossa posição no mundo. Tão interdependentes das vizinhanças, do que ocorre em nossa imediata proximidade, quanto dos acontecimentos mais distantes; tão sujeitas aos desenhos e símbolos arbitrários com os quais convencionamos os espaços e os tempos (como latitudes e longitudes, como o tempo em linha reta da História e o tempo circular dos Antigos), como os acidentes e as errâncias que nos extraviam e deslocam. O que existe é esta frágil e contingente posição em um Universo descentrado, oscilando entre as medidas e o incomensurável, entre a existência como um lapso (como uma distração do tempo) e as horas dilatadas dos astros. E Nelson vai operar justamente com esses espaços e tempos cósmicos, mesmo cosmogônicos, como um (re)desenho do mundo. Mas um desenho que se sabe impossível: entre os desígnios e os acasos, entre o cálculo e o imprevisível, tramam-se os tempos e as geografias íntimas e cósmicas, a rotação dos astros e a pulsação do corpo. Como, por exemplo, no Atacama. Gostaria de te ouvir um pouco sobre isto…

Nelson Felix – Quando fui fazer o trabalho no Atacama, que a Marisa nos falou agora, e já conversamos um pouco. Estava voltado para os vazios, especificadamente o do coração, e sobre um tempo mínimo e simbólico. Até então, a poesia que existia no tempo, para mim, era sempre distendida, a que pela longa duração torce a nossa noção dele. Temos noção entre 10 e 50 anos, mas a perdemos entre 400 e 700 anos, não temos muita consciência da diferença destes 300 anos que existe ai, por exemplo, não há muita percepção real. O coração me fez pensar, no momento, no tempo do pulsar, e porque não ver o tempo como um todo, o grande e o pequeno, como um objeto, ou mesmo uma entidade, e usar o mínimo, o instante, como usava o extenso. Vi uma poesia também neste infinito ao revés. E que “caberia” em mim, no meu ritmo. Fiz 2 trabalhos com este tempo, o do coração no deserto e um outro com plantas sensitivas, dormideiras, intitulado Mesas[11].

Marisa Flórido – Várias temporalidades se cruzam: o tempo da pulsação do corpo e o tempo da máquina fotográfica, o tempo dos 300, 500 anos de uma árvore engolindo as garras de bronze na Amazônia ou das árvores deformando uma mesa nos Pampas…. Esses tempos, espaços e suas simbologias se entretecem com extrema complexidade. Nelson nos coloca diante de algo que nos ultrapassa, que nos excede. Mas como não fazer da arte apenas uma passagem a uma transcendência? Passagem, aqui, não é o acesso a um supra-sensível, a algum significado transcendente, mas é a própria arte como passagem: um abismo ontológico que, a todo o momento, se abre.

Nelson dispõe dos signos, das convenções, das órbitas e dos vacilantes passos humanos para articular com tal complexidade os sentidos que inviabilize qualquer retorno à ligação simbólica ou a um significado fixo. É uma espécie de violência da indeterminação sobre o determinado (como os cálculos precisos na cartografia do mundo e o encontro casual com o que ali está), a abertura de um abismo ontológico nos desejos da forma.

Daí, desconfio que esse périplo, essa circunvolução do artista pelo mundo, para e pelo qual ele vai depositando suas esculturas, é uma dádiva (um dom), uma despesa (próximo ao vislumbrado por Bataille). Como um excesso de energia que precisa retornar ao mundo. Ao fazê-lo, Nelson se refere ao processo da tradição escultórica, em que se retira o excesso, se desbasta o mármore do bloco de pedra e joga-se fora essa sobra.

Ele faz a obra, desfazendo-a, eis a questão. Não creio que seja da ordem de uma construção formal apenas, reproduzindo essa ação clássica da escultura. O que termina então por se confundir, o que se turva e embaralha, no final das contas, é o que é o excesso e o que é síntese, o que é sobra e o que é a obra.

Por isso o que ouvimos nesse Concerto é o canto ruidoso da matéria… Esse é o encanto e a perdição da arte: orquestrar, desenhar, reinventar mundos, mesmo sabendo que eles não cabem em obras…

Certa vez escrevi um texto para Nelson em que eu citava Jean-François Lyotard. Lyotard diz que a paisagem é indiferente ao lugar; que, para ser passível à paisagem, é preciso ser impassível em relação ao lugar. O lugar é a “encruzilhada dos reinos e do Homo-sapiens. Minerais, vegetais, animais ordenam-se ao saber e este último dá-se a ele de forma espontânea”. A paisagem é apenas partida, sem destino (desorientadora, portanto). “A paisagem enquanto lugar indestinado”, que suspende “a narração e o próprio mostrar”. São como “pequenos toques ou vislumbres que cegam e anestesiam”. E observa: a paisagem é “uma queixa da matéria acerca dos limites dentro dos quais é aprisionada pelo espírito”. Ou seja, invertem-se os lamentos e as preces usuais atribuídas ao espírito: não é ele, o espírito, que se debate no interior da matéria (e como “espírito” devemos entender: sentido, forma, pensamento, etc.) É a matéria que deseja libertar-se das amarras do espírito (e como “matéria” devemos entender o inesperado, o irrepresentável, o impensado…) Há sempre uma demasia na paisagem.

É esse lamento, esse canto da matéria “queixando-se” de suas amarras que fecha o “Concerto”. Um canto ruidoso. Mas, de modo distinto de Lyotard — que crê que para ser passível em relação à paisagem era preciso ser impassível em relação a um lugar — Nelson multiplica as encruzilhadas, multiplica as relações que fazemos para delimitar ou formar um lugar, para definir ou sintetizar uma forma. Se o lugar é a encruzilhada dos reinos e dos homens, Nelson Felix opera uma hipérbole desses entrelaçamentos, multiplica ao infinito as encruzilhadas – ou seja, multiplica os significados, as simbologias, as coordenadas com os quais convencionamos os espaços e os tempos e nossa orientação no mundo. Esses vão se sobrepondo e se relacionando com tal complexidade, que em dado momento aquela hipérbole não suporta o seu próprio peso e rui. Sobredeterminação significa também sua anulação. Os momentos de aparecer da obra não são uma condensação ou uma síntese do pensamento extremo em uma forma. É o momento em que o pensamento dubiamente se exacerba e explora seus limites, exibe sua complexidade e sua falha.

Nelson Felix – Eu acho que está bom…

Marisa Flórido – Era melhor que você contasse como você montou o livro e o vídeo, porque tem a mesma extração da matéria, o mesmo processo.

Como disse, o trabalho se ergue em torno dessa invisibilidade, de sua ida pelo mundo, doando essas esculturas. Há apenas alguns momentos precisos de uma doação ao visível: as exposições nas Cavalariças e no Museu Vale. Mas “Concerto” e o livro são também modos de fazê-lo aparecer.

Às vezes você tira uma única fotografia de alguma dessas viagens, extrai apenas um momento. Poderia converter tais imagens em simples documentação, em mero relato. Mas transforma-os numa obra, em desenho e som.

Interessante também é o fato de que cada uma de suas ações é em geral uma repetição, é uma ação circular, mas não como sucessão contínua e invariável de instantes idênticos que se repetem, mas como algo que se repete se diferenciando. Algo talvez próximo ao “eterno retorno” de Nietzsche: se não há origem, se a realidade não possui fundamento ou finalidade, a combinação de forças em conflito, que compõe cada um dos instantes, em algum momento se repetirá. Por isso, vemos os eventos, os pequenos detalhes, os mínimos atos retornarem infinitamente. Por isso cada gesto deve ser realizado de tal modo que se deseje seu eterno retorno, que se deseje que ele aconteça outra vez. Um mundo de forças em incessante movimento, sem repouso ou equilíbrio. “Concerto” é também uma reflexão sobre a noção de acontecimento, ao mesmo tempo singular e repetido, que não se fecha em relações de causalidade-finalidade. A um só tempo uma subtração e um excesso.

Nelson Felix – Ou junto e não linear. A repetição, que você observa, acho que vem desta constante tentativa de fazer as coisas conversarem, elas não são iguais, elas se repetem. No fundo, em Concerto repito não o igual, mas o circular e a repetição no círculo geram um ritmo, e este é mais próximo ao tempo. É sensível para mim que quando estou concentrado, o espaço não me é extremamente necessário, quando ele está perfeito, até some, o abstraio, uso coordenadas. Mas no trabalho terminado, a compreensão do espaço gerado e o movimento feito nele adquirem na obra um sentido ímpar e sua observação é necessária. A questão do espaço na arte, do nosso último século, é um processo de fina de construção… Marisa, não dá para conversar sobre isto sem puxar a história, de como vejo esta construção do espaço na arte neste nosso último século. Vou tentar resumir o que eu sinto.

O espaço era o quadro, a escultura, por exemplo, Matisse pinta um quadro de um metro e meio por um metro e meio. Toda a sensação dele, toda a atenção dele se dá nesse quadro, tudo ali. Você pega o quadro, tira de uma parede e leva para outra, de um museu para outro, e tudo continua ali. A grosso modo e sintetizando: é centrado, não conversa muito com o entorno. Vamos escolher os ícones, Brancusi – a terceira dimensão tem uma potência – ele constrói formas poderosas, como “buracos negros”, existe nelas uma força que quando a observamos realmente, adquirem uma intensidade que de repente se perde a noção do espaço de onde se esta e ficamos, por alguns segundos, inteiramente “dentro” do objeto. Matisse tem isto também, mas senti pela primeira vez esta observação em Madalena de Donatello, e logo depois, em Brancusi. Depois creio, os surrealistas e dadaístas, colocaram mais uma estaca, trabalharam com carvão, fios, plantas, etc., no espaço de exposição, mas tudo era meio onírico. Teve um artista, que para mim é crucial, um russo-americano, Rothko, um pintor, que entrou pelo espaço, e que afinou o pensamento sobre o espaço externo à obra. Ele definia a sequência dos trabalhos, a luz necessária… Rothko foi convidado pra fazer um trabalho para um restaurante, de repente acho que gostou do trabalho e resolveu doar para Tate de Londres, porque ele admirava Turner. Resumindo, entregou o trabalho com a condição de que sempre fosse mostrado na sequência que tinha projetado, na mesma luz, na mesma dimensão espacial de sala, etc. O que é isso? Uma ambientação espacial do trabalho, aqui o espaço é também a pintura. Depois, uns 2 anos antes de morrer, faz uma capela em Houston, com pinturas praticamente monocromáticas, de uma austeridade, e com o espaço todo planejado com elas, algo anterior e meio minimalista.

Percebe o salto? O espaço não é tão necessário – o espaço some – e logo, a presença espacial é fundamental e estrutura a obra.

Nos anos 60, realmente começamos a lidar com o espaço externo novamente, depois dos antigos. Nesse momento, existia uma audácia nos artistas. A grande maioria dos museus, principalmente na América, assim como toda a situação da época, estava estruturada para construção do mercado de arte e não para uma aventura que deslocava o eixo do espaço expositivo rumo a uma exteriorização do objeto de arte. Bem, esse diálogo com espaço externo, delineou para o artista contemporâneo questões fundamentais de pensamento e, principalmente, o gosto de pensar sobre isto e sobre o próprio trabalho, que trazemos até hoje.

Mas já vivemos outro momento. O espaço externo atual é “menor”, mais dinâmico e com uma nova questão, muito informado… Esta informação chega a ser quase que matéria. É notório que qualquer objeto que colocamos no mundo hoje, sofre imediatamente uma relação.

Para pensar, ou melhor, para perceber o que fazia, comecei a abstrair este espaço, primeiro usando as coordenadas. Com elas senti que não necessito conviver com ele direto. Crio um estado de certa concentração, onde não é só o espaço que se dilui, é a sensação do pensar sobre o trabalho que volta a ser centrada só nela.

Coordenadas não existem, não tem o objeto coordenada aqui, por exemplo, mas existe este acordo, esta medição, como nas horas. Sei que existe uma linguagem, poética talvez, que é anterior mesmo a uma necessidade do dialogo. O pensar se constrói como um desenho, não tem imagem no fundo e não preciso descer até as palavras para entender. Essas questões me nortearam em determinados trabalhos, principalmente quando envolvem deslocamentos.

Às vezes, usos espaços que são mais mentais que físicos. Quando se trabalha com o tempo, 800, 900 anos, por exemplo. Como na esfera do Vazio, no litoral, que se “abrirá” com a oxidação, ritmada pelos diversos “aparecer e sumir” na areia. Você faz esse trabalho na mente o tempo inteiro, mesmo indo ao local com a esfera descoberta, se observa somente um momento do trabalho. O espaço é mental, construído na cabeça. Poderia colocar-la numa caixa d’água com sal, ao invés da praia no nordeste, também o faríamos na cabeça, com menor poesia é lógico, mas também o faríamos. É um jeito de lidar com o espaço, de não nos determos com ele, mas não o excluímos. Se constrói o trabalho no pensamento e esse pensamento termina o trabalho na mente.

Marisa Flórido – E as relações entre as exposições de Camiri e Cavalariças com os 4 Cantos no mundo, a construção do Concerto para encanto e anel?

Nelson Felix – Concerto para encanto e anel, tem uma dimensão mais estruturada, uma coisa só e sequencial. São 2 exposições e uma série de ações pelo mundo. Os deslocamentos e o movimento da natureza do espaço – da arquitetura, ao exterior e dai novamente para a arquitetura, é um veio forte na construção do trabalho.

A primeira exposição no Museu da Vale e a segunda na Cavalariça do Parque Lage, trazem uma questão com o local, que se utiliza da referência de um trabalho anterior, o centro da Cruz na América, Camiri.

Em Camiri, nunca quis fazer nada ali. Era direto demais e fecharia a obra num bloco. Deixar o centro da cruz aberto, me parecia melhor. Comecei a pensar em rebater este ponto pelo globo, para o hemisfério norte, depois a sua oposição no mundo e esta oposição para o hemisfério sul novamente. Estava sobre estes rebatimentos quando surgiu o convite do Museu da Vale. Algum tempo depois, reparei que o museu estava na mesma latitude que Camiri e a 23 graus de longitude de distância. Não me era novo o trabalho, me deslocar no globo e usar o angulo de 23º graus, e percebi que já o tinha feito. Sintetizando o processo, segui o que estava me sendo dado. Fui a Camiri, olhei para o museu, fui ao museu e olhei para a direção de Camiri. No museu coloco as vigas e as peças de mármore, ora em acordo com a arquitetura do museu, ora inclinadas no mesmo angulo do deslocamento na longitude.

Camiri, no Museu da Vale foi isto, vigas de ferro horizontais e inclinadas a 23º com a arquitetura do museu e cinco peças de mármore. As vigas na horizontal em quase todo o museu, fêz que apesar da presença da escultura você não percorria exposição, sua relação de contemplação era igual a da pintura, você olhava de 3 lugares distintos, e o trabalho se referia constantemente a um deslocamento no globo, Ronaldo observou isto.

Concerto para encanto e anel tem na construção da sua poética, uma sequência de relações com os limites dos trabalhos. Algumas coordenadas ou locais irrigam conceitualmente o espaço expositivo e definiram posições ou elementos próprios da escultura, como, forma, material, proporção, ou o ritmo.

A coordenada, rebatida de Camiri, define os locais de trabalho, não faço um trabalho para um local escolhido a priori, o trabalho foi resolvido anteriormente, eu só o coloco no lugar. Reposiciono, como num desenho no globo, as peças da primeira exposição e deixo uma única peça, um grande cilindro de mármore. Com ela retorno a expor, como um terceiro movimento de uma só obra.

Todas as peças de mármore, também trazem uma ideia de circularidade, ora na forma, ora na sua inteireza. São esculturas em um bloco, único e escavadas – dava para fazer ao contrário, aliás dava tudo, dava pra ligar para o marmorista e pedir para ele colar quatro placas. Mas aqui, no detalhe da construção deste pensamento “circular”, eu não responderia a mim, esta falta de exigência formal. Esta camada de pensamento me é necessária. Por exemplo, uso o mármore de Carrara, ou o grego, não por um meio em si, mas por uma questão conceitual. Eu não o acho mais bonito, para ser sincero eu nem escolho o bloco. O uso, porque nele existe a presença de uma tradição da nossa história escultórica; somos grego-romanos, ocidentais, e para comungar com essa tradição, uso este mármore.

Estas coisas geram uma força, como estacas no pensamento, que me ajudam a responder um sentimento poético, e assim construo uma linguagem para mim mesmo, sem razão nenhuma. O que faz o artista é gerar potência, porque no fundo, na arte, se faz o que sempre foi feito. O que nos resta, hoje, é a relação com o pensamento estrutural da obra; a forma, a cor, o material, tudo de um certo jeito já foi aberto, expandido, por diversas conquistas. Às vezes me sinto construindo idiomas, para falar, com os mesmos sentimentos.

Voltando à Cavalariça, as vigas sofrem uma rotação no espaço e ficam na posição vertical; as três posições que definem uma linha no espaço tradicional euclidiano – horizontal, inclinado e vertical. Com o Anel, fixo o espaço de exposição. Como se todo espaço fosse agora uma única escultura. Como escreveu Ronaldo, “é uma escultura que se desloca”, construída retirando partes, como qualquer outra, “mas o processo de retirar nesta construção não se subtrai, se soma”. A exposição na Cavalariça do Parque Lage tinha uma sensação de inacabada, tosca e foi uma única ação, só. Longa ou curta depende de como a olhamos.

O Concerto aparece e some, como Marisa escreveu: “entre as 2 exposições – dois momentos de uma doação aos olhos, dois instantes em que a obra efetua o movimento de seu aparecer”.

Marisa Flórido – E a Islândia, em que ano foi?

Nelson Félix – Foi em 2009, maio de 2009, dois anos atrás. Queria que o Concerto carregasse nos seus “movimentos” a presença do verso, do canto, que começa e acaba igual. Então refaço a mesma ação de me deslocar e olhar para onde expor. Inverti as coordenadas, o norte com o sul: essa aleatoriedade deu na Islândia.

Na realidade, o trabalho não foi só esse, construí uma cruz por lá, teve outras questões no deslocamento. Mas deixa, é algo que se incorpora, como Rothko, de novo, sua pintura tinha 30, 40 camadas de tinta, você já não percebe essas camadas, mas se não tivesse, acredito que não sairia o trabalho. São questões próprias da natureza de quem faz, isso acontece com a arte. Tem situações no meio do processo que você sabe que não vai gerar obra que possa ser vista, mas gera a própria obra. Não é uma ação feita para mercado, é feita pra você responder o pensamento. Esta resposta adquire presença, se posso falar assim. Sem ela, determinados trabalhos não existem. Há outras questões na relação com trabalho, que ocorre num campo mais amorfo, numa terra de embriões.

Ok, agora ficamos por aqui, agradeço novamente a Marisa pela companhia e essa imensa paciência, aos três, que estão aqui, Begué, Wanderlei e Suzy, ao pessoal da Escola do Parque Lage e ao Alberto pelo convite.

Muito obrigado.

 

[1] FELIX, Nelson.“Concerto”, 2011. Exposição Individual realizada no Espaço Oi Futuro – Ipanema. Rio de Janeiro, Brasil.

 

[2] FELIX, Nelson Tavares. Concerto para encanto e anel / Nelson Tavares Felix, Marisa Flórido Cesar, Ronaldo Brito. Rio de Janeiro: Suzy Muniz Produções, 2011. 303 p:il., 25 cm. Edição Bilíngue português/inglês.

[3] Concebido por Nelson Felix. Criação e Edição de Imagens por Begué, Nelson Felix e Luís Felipe Sá. Produzido por Suzy Muniz Produções. Brasil: 2011. 12min 19s. DVD, son., color.

[4] FELIX, Nelson. “Camiri”, 2007. Exposição individual realizada no Museu Vale. Espírito Santo, Brasil.

 

[5] FELIX, Nelson. “Cavalariças”, 2010. Exposição individual realizada nas Cavalariças da Escola de Artes Visuais do Parque Lage. Rio de Janeiro, Brasil.

[6] FELIX, Nelson. Vazio Sexo , 2004. Mármore de carrara e prata. Dimensões: 90 x 90 x 90 cm.

[7] FELIX, Nelson. Grande Budha, 1985/2000. Mogno e garras de latão. Dimensões: 0,70 x 0,70 x 0,15 m (cada garra). Estado do Acre, Seringal Nova Olinda.

 

[8] FELIX. Nelson. Mesa, 1997/1999. 22 Figueiras da Índia e chapa de aço. Dimensões: 0,80 x 2,45 x 51,00 m. Estado do Rio Grande do Sul, Uruguaiana.

[9] FELIX, Nelson. Vazio Coração / Deserto (1999-2003). 6 fotografias , com tempo de exposição definido pelos batimentos cardíacos do artista. Deserto do Atacama, Chile.

[10] FELIX, Nelson. Vazio coração / Litoral. (1999-2004). Esfera de mármore de carrara e 22 pinos de ferro, 60cm ø ,deixada na Praia Redonda com Ponta Grossa, Ceará.

[11] FELIX, Nelson. Mesas, 1995. Seis mesas de granito com 70 x 70 x 70 cm, sobre elas são colocadas peças em ferro com molde do corpo do artista e de glândulas endócrinas, azeite, e mimosas pudicas (plantas sensitivas – “dormideiras). Uma das mesas pendula sobre um tapete dessas plantas e provoca reação nos vegetais com seu movimento.

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quatro textos de marisa flórido

Marisa Flórido - 2011

texto 1

Cruzes, cubos, anéis e círculos são signos de orientação e aliança que Nelson Felix utiliza em seus últimos trabalhos. Mas o artista não toma desses signos sua potência de orientação ou de fundação de um sítio, e sim sua potência de entrelaçamentos. Pois não habitamos um espaço homogêneo onde se situariam coisas e seres a partir de um centro. Vã tentativa de conter o mundo em latitudes, meridianos ou elipses. O que há é essa tessitura sem-fim de relações que definem, por um breve instante, nossa posição no mundo.

Os sentidos do mundo não são mais que uma miragem que o artista em vão tenta fixar e deslocar. Eis o destino do artista: dispor dos signos e das convenções para multiplicar e articular seus sentidos, com tal complexidade, que inviabilize qualquer retorno à ligação simbólica ou a um significado qualquer.

 

texto 2

4 paisagens onde o artista interveio entre 1986 e 2003, relacionando-as. Em Cruz na América, interligou dois pontos no mapa, a floresta amazônica e o pampa gaúcho e, com uma perpendicular a essa reta, encontrou o litoral cearense e o deserto do Atacama. No centro da Cruz na América estava Camiri na Bolívia, na mesma latitude de Camiri, situava-se Vila Velha no Espírito Santo, onde o artista expôs em 2006 no Museu Vale. Se 23 graus separavam os dois locais, a coincidência de latitude e graus os entrelaçava.

23 graus correspondem também à angulação da eclíptica, o desvio da órbita em relação ao eixo do Sol. Por isso as peças escultóricas, em algumas de suas exposições seriam dispostas em 23 graus, como no Parque Lage em 2001 ou no Museu Vale. Se as esculturas alinhavam-se em sintonia com os movimentos cósmicos, entravam em imediata estranheza com o local específico que as acolhia.

Entre a exposição de 2006 e a de 2009 – os dois momentos de uma doação aos olhos, os dois instantes em que a obra efetua o movimento de seu aparecer – Felix realizou outra série de inserções artísticas pelo mundo, em locais definidos por cruzamentos no mapa a partir das coordenadas de Camiri: seu rebatimento no hemisfério norte desdobrou-se em Anguilla e na República Dominicana, no Caribe; sua projeção para o outro lado do mundo, levou-o à ilha de Dong-sha, no mar da China, e em Karratha na costa australiana; sua inversão, ao vulcão Hekla na Islândia. Em cada um desses lugares, o artista depositou uma escultura, realizou uma ação,

 

texto 3

Retornos. Não como o movimento cíclico de um tempo sem começo ou fim, sucessão contínua e invariável de instantes idênticos que se repetem na eternidade. Mais próximo a Nietzsche, talvez. Se não há origem, se a realidade não possui fundamento ou finalidade, a combinação de forças em conflito, que compõe cada um dos instantes, em algum momento se repetirá. Por isso vemos os eventos, os pequenos detalhes, os mínimos atos retornarem infinitamente.

Por isso cada gesto deve ser realizado de tal modo que se deseje seu eterno retorno. – “Como responder poeticamente à mesma atitude? Ao mesmo gesto? Desdobrando-o, estendendo-o circularmente. Cada ação é sempre duas. Ou mais. Os vários trabalhos decorrem dessa atitude inicial. São únicos, independentes e, ao mesmo tempo, interligados como uma só obra.” – Um mundo de forças em incessante movimento, sem repouso ou equilíbrio, circular.

 

texto 4

A paisagem? As janelas sonham em emoldurá-la, as molduras teimam em capturar-lhe a miragem, as fugas em reconduzir os olhares. Em vão. As formas são incapazes de domesticá-la, as distâncias não cedem aos caprichos dos lugares e seus gênios. Há sempre uma demasia na paisagem.

“Uma queixa da matéria (…) acerca dos limites dentro dos quais é aprisionada pelo espírito”,[1] disse Lyotard. O contrário de um lugar, insistiria o filósofo: “para ser passível da paisagem, é necessário tornar-se impassível em relação ao lugar. O lugar é natural, encruzilhada dos reinos e do Homo sapiens. Minerais, vegetais, animais ordenam-se ao saber e este último dá-se a ele de forma espontânea”. Privilégio das montanhas, planícies, florestas, a paisagem é apenas partida, sem destino. “Um abismo ontológico, a desorientação é uma condição da paisagem.”

Onde afinal ocorre uma paisagem, um lugar? Algo aqui parece inverter-se: para acolher a paisagem, esse lamento da matéria, o artista não parece impassível ao lugar. Ao contrário, o lugar nele superlativa-se, torna-se abstrato sem responder a seus caprichos Se o lugar é a encruzilhada dos reinos e dos homens, Nelson Felix opera uma hipérbole desses entrelaçamentos, multiplica ao infinito as encruzilhadas – e o infinito, como disse o filósofo, “é a reserva inesgotável exigida por uma paisagem”.

Poderíamos então propor outra imagem: a paisagem, esse abismo ontológico, é a promessa e a fuga de todos os lugares. Domínio das suspensões, a paisagem é o horizonte para onde os lugares se lançam e de onde os lugares transbordam, escapam e se extraviam.

 

[1] LYOTARD, Jean-François. Scapeland. In: O inumano/ considerações sobe o tempo. Tradução Ana Cristina Seabra e Elisabete Alexandre. Lisboa: Estampa, 1997. p. 189

 

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sem título

Marisa Flórido Cesar - 2009

Catálogo para exposição Cavalariças – 2009

 

Sopro incontido que lancina e entorpece, há sempre uma demasia na paisagem. As janelas sonham em emoldurá-la, as molduras teimam em capturar-lhe a miragem, as fugas em reconduzir os olhares. Em vão. As formas são incapazes de domesticá-la, as distâncias não cedem aos caprichos dos lugares e de seus gênios (os anfitriões que protegem e regem o loccus).

Os trabalhos não respondem aos lugares, são guiados por suas abstrações, por rebatimentos, teóricos e geográficos, de coordenadas e convenções. Um desenho no globo os determina.

Estranha arquitetura dos sopros.

A paisagem? “Uma queixa da matéria acerca dos limites dentro dos quais é aprisionada pelo espírito”1, disse Lyotard. O contrário de um lugar, insistiria o filósofo: “para ser passível da paisagem, é necessário tornar-se impassível em relação ao lugar. O lugar é natural, encruzilhada dos reinos e do Homo sapiens. Minerais, vegetais, animais ordenam-se ao saber e este último dá-se a ele de forma espontânea”. Privilégio das montanhas, planícies, florestas, a paisagem é apenas partida, sem destino. Um abismo ontológico, a desorientação é uma condição da paisagem”2.

À suave ferocidade da paisagem, a arte só poderia responder com doce violência. Como apresentar o que brutalmente nos ultrapassa?

Retorno às Cavalariças do Parque Lage após 8 anos em que ali expus. É a finalização de um processo permeado pela circularidade. O círculo está nas formas inteiriças da escultura e na volta ao mundo, no pensamento e nas ações que construíram sua poética.

Entre a exposição em 2001 e esta – os dois momentos de uma doação aos

olhos, os dois instantes em que a obra efetua o movimento de seu aparecer –
Nelson Felix realizou uma série de inserções artísticas em vários locais do mundo definidos por rebatimentos abstratos no mapa. Acontecimentos
que nos recusam o contato direto; que se tramam nesse arco de invisibilidades entre dois (e o mesmo) pontos fixos, as Cavalariças, em meio a deslocamentos
sem fim. Chegam até nós por desenhos, fotografias ou por narrativas e rumores no seu decorrer. Como relatar a circunvolução do artista pelo mundo? O périplo, os abandonos e as deposições da arte no mar do Caribe,
da China, na costa australiana ou em um vulcão na Islândia? Como receber
os acontecimentos artísticos na paisagem, como paisagem?

Como responder poeticamente à mesma atitude? Ao mesmo gesto? Desdobrando-o, estendendo-o circularmente. Cada ação é sempre duas. Ou mais. Os vários trabalhos decorrem dessa atitude inicial. São únicos, independentes e, ao mesmo tempo, interligados como uma só obra.

Já em Cruz na América, entre 86 e 2003, o artista havia relacionado 4 paisagens onde interveio por cruzamentos no mapa: a partir de dois pontos – na floresta amazônica e no pampa gaúcho – uma perpendicular à reta que os interligava encontrou o litoral cearense e o deserto do Atacama. Na mesma latitude de Camiri na Bolívia, o centro da Cruz na América, estava Vila Velha no Espírito Santo, onde o artista expôs em 2006 no Museu Vale. Se 23 graus separavam os dois locais, a coincidência de latitude e graus os entrelaçava.

23 graus correspondem também à angulação da eclíptica, o desvio da órbita em relação ao eixo do Sol. Marca de imperfeição da Terra. Por isso as peças escultóricas, em algumas de suas exposições seriam dispostas em 23 graus, como no Parque Lage em 2001 ou no Museu Vale. Se as esculturas alinhavam-se em sintonia com os movimentos cósmicos, entravam em imediata estranheza com o local específico que as acolhia. E, estendendo os desígnios circulares: o rebatimento da coordenada de Camiri no hemisfério norte encontrou Anguilla no mar do Caribe; a projeção para o outro lado do mundo, a ilha de Dong-sha, no mar da China, e Karratha na costa australiana; a inversão das coordenadas de Camiri, o vulcão Hekla na Islândia.

Na precisão dos cálculos, deparo-me com as coincidências e os acasos: os 23 graus que se repetem, a exata circularidade da ilha chinesa ou deparar-me com a cratera de um vulcão para a última foto…

Eterno retorno. Não como o movimento cíclico de um tempo sem começo
ou fim, sucessão contínua e invariável de instantes idênticos que se repetem
na eternidade. Mais próximo a Nietzsche talvez. Se não há origem, se a realidade não possui fundamento ou finalidade, a combinação de forças em conflito, que compõe cada um dos instantes, em algum momento se repetirá.
Por isso vemos os eventos, os pequenos detalhes, os mínimos atos retornarem infinitamente. Por isso cada gesto deve ser realizado de tal modo que se deseje seu eterno retorno. Um mundo de forças em incessante movimento, sem repouso ou equilíbrio, circular.

Em cada um desses lugares, o artista depositou uma escultura, realizou uma ação: olhar em direção ao Parque Lage defronte ao vulcão Hekla, depositar um anel de mármore na ilha circular chinesa e extrair das horas de viagem e espera uma única fotografia, um único instante conciso e circunspecto. Atravessar o deserto australiano para chegar à costa e efetuar um estranho exercício de composição em que as esculturas giram inquietas sobre o solo. A esfera ao norte, a linha e o plano, ao sul. Inesperada geometria.

Trata-se de jogar fora os trabalhos, como as muitas idéias. É um exercício de esvaziamento, inclusive de um certo olhar cínico.

Pura despesa e dom.

O vazio. Para algumas culturas orientais, ponto sem ponto, ponto sem lugar em meio à agitação universal de onde tudo deriva e para onde tudo retorna. Mas, sobretudo, uma disposição: o abandono do que se toma por verdadeiro, além de toda apreensão ou ausência de apreensão.

É uma atitude muito semelhante a dos aquarelistas orientais que passavam dias ou meses olhando a paisagem. Quando iam retratá-la, às vezes pintavam o que viam, um pagode, algumas árvores; em outras, um só traço ou linha bastava. Faço isso com meu próprio trabalho. As esculturas e os desenhos que apresento na Galeria H.A.P., simultaneamente à exposição no Parque Lage, são uma tentativa de realizar a obra – exposição/4 trabalhos no mundo/ exposição – novamente em uma outra linguagem. Clássica até.

Onde afinal ocorre uma paisagem, um lugar? Algo aqui parece inverter-se em relação ao que dizia Lyotard. Pois para acolher a paisagem, esse lamento da matéria, o artista não parece impassível ao lugar. Ao contrário, o lugar nele superlativa-se, torna-se abstrato sem responder a seus caprichos. Se o lugar
é a encruzilhada dos reinos e dos homens, Nelson Felix opera uma hipérbole desses entrelaçamentos, multiplica ao infinito as encruzilhadas – e o infinito, como disse o filósofo, “é a reserva inesgotável exigida por uma paisagem”. Poderíamos então propor uma outra imagem: a paisagem é promessa e fuga de todos os lugares. Ponto sem ponto de todas as suspensões para onde os lugares se dirigem e de onde os lugares transbordam, extraviam, escapam.

Cruzes, cubos, anéis e círculos são signos de orientação e aliança que o artista utiliza em seus últimos trabalhos. Mas ele não toma desses signos sua potência de orientação ou de fundação de um sítio. Toma desses signos sua potência de entrelaçamentos. Pois não habitamos um espaço homogêneo onde se situariam coisas e seres a partir de um centro, origem e destino das ponderações e dos apaziguamentos. Essa vã tentativa de conter o mundo em globos, meridianos ou elipses. Vivemos em meio ao infinito dos cruzamentos de convenções e simbologias, sem todavia reconciliá-los.

O que há de específico é essa tessitura sem fim de relações que definem, por um breve instante, nossa posição no mundo: tão sujeita aos desenhos e símbolos com os quais convencionamos os espaços e os tempos como aos acidentes e às errâncias que nos extraviam, oscilando entre as medidas e o incomensurável, entre a existência como um lapso no tempo e as horas dilatadas dos astros. Como tornar visível esse entrelaçamento entre os desenhos abstratos do mundo, como as latitudes, e as marcas que nele imprimimos?

A proporção do desenho que liga os 4 sítios no globo, o ângulo e a rotação das vigas, os novos locais das esculturas de mármore no mundo e a presença do círculo impregnam e compõem as decisões artísticas no espaço expositivo das Cavalariças. Retomo o mesmo procedimento e material da mostra inicial em outra configuração poética. O ritmo das vigas não se rompe mais por força de seu posicionamento, mas pelo peso da massa escultórica que retorna: um grande anel de mármore.

Os sentidos do mundo não são mais que uma miragem que o artista em vão tenta fixar e deslocar. Eis o destino do artista: dispor dos signos e das convenções para multiplicar e articular seus sentidos, com tal complexidade, que inviabilize qualquer retorno à ligação simbólica ou a um significado qualquer.

Após o significado do significado do significado, retornar à inteligência de um olhar quase ignorante.

Para colocar em fuga os pontos de apoio. Para encontrar a desorientação da paisagem, seu abismo ontológico, na sobredeterminação do lugar.

 

  1. lyotard, Jean-François. Scapeland. In: O inumano/ considerações sobe o tempo. Tradução Ana Cristina
    Seabra e Elisabete Alexandre. Lisboa: Estampa, 1997. p. 189
  2. Idem ibidem.
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Nelson Felix

Adolfo Montejo Navas - 2009

Revista Das artes – 2009

 

O trabalho de Nelson Felix (Rio de Janeiro, 1954) se pauta pelo desdobramento inusitado da escultura no espaço e de suas coordenadas expandidas. Com isso, frequentemente oferece experiências artísticas que vão além não só de espaço expositivo clássico, como de um entendimento estético irrestrito às meras formas. Há sempre um componente espiritual que não pode ser menosprezado nesta poética, que lida com a materialidade e a imaterialidade de forma indivisível. O mais recente exemplo disso, depois da exposição Camiri (Museu Vale, 2006) é 4 Cantos, uma intervenção feita em Portugal em 2008 que só recentemente foi notícia e ganhou exibição na H.A.P. Galeria, no Rio de Janeiro. Esta exposição mostrou uma parte simbólica, mas representativa da experiência lusa, que foge de terminologias em uso, e ampliou a sua ressonância a outros âmbitos, através de fotografias e uma instalação. No fundo, esta “ação escultórica” nãos e encaixa no ideário do site-specific. É uma “situação escultórica” mutante e cumpre a função de intervenção efêmera em locais diversos da geografia portuguesa.

No caráter nômade desta operação há um itinerário de viagem do artista que é bem físico, quase como um bóia-fria viajando num caminhão, acompanhando a matéria-prima transportada e utilizada: quatro grandes blocos de pedra de quatro ou seis toneladas cada um. Eles são levados e sedimentados em lugares diversos com a ajuda de um guindaste e a natureza acaba completando a ação artística. Não há aqui uma única realidade estética tida como absoluta: as coordenadas externas que indicam onde os blocos serão colocados existem, mas são mutáveis.

O lugar e a disposição como circunstâncias, a pregnâcia do espaço resultante, são outras semânticas que devem ser escutadas e que o desenho da obra ajuda a avivar. A potência outorgada pelo peso e pelo volume nestas peças, características que toda escultura administra, é redirecionada: nunca é obra escultórica a única matéria-prima desta poética. Como confessa o próprio artista, ele só consegue pensar previamente 40% do trabalho, até o momento de sua chegada ao local de ação. Esta referência à natureza do local é determinante, ou seja, os outros 60% nascem in situ. Ela é co-autora, na medida em que reagia aos trabalhos de land art, uma referência que ainda se respira aqui, ainda que no fundo não exista local privilegiado nos trabalhos de Nelson Felix. Aqui, não é a paisagem o x o que prima como território simbólico. É a própria escolha do ponto geográfico e, sobretudo, as dificuldades ou facilidades de sua inscrição/leitura no espaço e a maneira como as pedras falam desta cosmologia criada, não só espacial ou visual, mas também sensorial.

Pedras calcárias, de tonalidades entre creme e salmão foram retiradas da pedreira de Fátima e visitaram Bragança, depois Viana do Castelo, Sagre e Faro: os quatro pontos extremos de Portugal. Pedras em bloco, que sem corte regular, dinamitadas ou cintadas com diamante, acabam incorporando as marcas das diversas operações de sedimentação, a parte de acidente ou circunstância. Essas incorporações são algo crucial na poética de Nelson Felix, já que sempre religam a forma apurada e o informe contemplado, fazendo curto-circuito em interpretações fechadas (formalismo versus contaminações).

É curiosa, assim, a importância da livre configuração das pedras em cada ligar, onde a ação do artista e o “deixar estar” se confundem. “Você chega a um espaço poroso”, diz o artista, para definir a operação receptiva que as pedras acionam, pois são tratadas como se fossem um órgão vivo latente, maior, que ode ignorar a presença humana no começo. Em parte também porque neste trabalho o visível e o invisível delatam uma comunhão estreita, simbiótica, cuja presença fica bem evidente na função múltipla que têm os desenhos do artista, toda vez que são colocadas as pedras. Os desenhos, em sua importância nuclear, religam tudo. São a concentração do pensamento, seu movimento, como uma onda: “O trabalho é um jazz”, confessa o próprio artista. Sempre no sentido de abertura, de escuta, de fluência entre o pensado e o executado. Os desenhos de diferentes tipos, papéis e formatos são a outra parte do trabalho, seu outro ponto de equilíbrio. Eles contrastam, mas não se opõem, à alta presença das pedras, que o artista abstrai, curiosamente, da paisagem onde ficam colocadas, como de maneira oriental. Ambos, pedras e desenhos, acabam sendo vasos comunicantes de uma mesma operação estética.

Daí também a pertinência nesta obra de Nelson Felix da lírica de Sophia de Mello Breyner Andersen, que tem seus versos apropriados e materializados, com sua convergência aberta e rigorosa. A obra revela suas afinidades com uma poesia reflexiva e construtiva, mas também sensorial, nua, sempre grega e pessoa na pela importância, cotidianidade e necessidade das interrogações; O resultado é surpreendente pela transparência atingida no trabalho do artista e pela sintonia construída sobre/com os versos da poetisa portuguesa, mais especificamente o poema A casa térrea, “construíras a partir do fundamento”. Gravados na ponteiras de bronze dourado, os versos criam um campo gravitacional, de tensão com as pedras: ponteiras que entram, às vezes pela força da marreta, para dar apoio ou certa suspensão às pedras cúbicas, uma forma clássica já trabalhada pelo artista.

Já a polissemia visível do título escolhido não deixa de acrescentar mais sentidos ao âmbito do trabalho: os quatro cantos são lugar, cantos poéticos (Ezra Pound, Renascença), e também matéria (peça de arremate de construção). Um trabalho que, na verdade, escapa de si mesmo, pois a sua visualidade nunca é completa, definitiva. Sua totalidade é impossível: local, desenhos, fotos, instalação na galeria, são aproximações a um cerne originário.

A organização da Fundação Serralves (Porto) e o suporte do próprio Ministério de Turismo de Portugal foram significativos. Há uma sintonia “portuguesa” com essa outra geografia vasta, dos quatro pontos do mundo pelos quais a poética de Nelson Felix “viaja” (Caribe, Islândia, Austrália, China). Eles estão na natureza e esta incide em seu trabalho. Ainda que este mapa-mundi do artista seja relato de outra história.

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Monumento incabado

Suzana Velasco - 2009

O Globo – 2009

 

Depois de rodar o mundo deixando obras, Nelson Felix finca no Parque Lage uma nova instalação.

Para criar uma obra que fale por si só, o artista plástico Nelson Felix concebe dezenas de regras de execução, atribui a cada uma delas outras dezenas de significados e, pelo excesso, espera que, no fim, só reste a escultura.

– Meu trabalho vai criando amálgamas, parece que sempre estou criando uma obra só – diz Felix. – Vou pondo tantos significados, plásticos e conceituais, que não se chega a lugar algum. Só sobra a obra.

Felix tem um pensamento complexo, refletido, sobre a arte e seu trabalho. Mas é um homem simples. Já 30 anos, foi viver em Muri, em Nova Friburgo, a pouco mais de duas horas do Rio, mesmo com o aviso dos amigos: “Você vai sair do mapa”. Mora lá até hoje, “com três calças e dez camisas, quase sem atender o telefone, numa casa projetada por ele mesmo, que é formado em arquitetura e trabalhou como arquiteto quando ainda não ganhava dinheiro como artista. Outro dia, ouviu o curador do MAM, Luiz Camillo Osorio: “Sua casa é uma escultura”. A escada e a mesa foram desenhadas pelo artista, que, no quarto de hóspedes, tem três preciosidades penduradas nas paredes: uma de Cildo Meireles, uma de Antonio Dias e outra de Rubem Grillo. O resto dos cômodos não tem obras de arte, porque “elas foram ficando pelas casas das namoradas”.

– Para mim, o importante é ver que estou falando algo por que tenho respeito. Quero fazer um trabalho para olhar e pensar: “Bico, tá legal”. É o meu prazer, o meu luxo – diz.

Artista expõe em galeria no Jardim Botânico

O luxo de Felix, agora, são duas exposições, com inauguração na próxima sexta-dia, 27, e abertas ao público no dia seguinte: uma mostra com seis esculturas e desenhos em ouro sobre papel, na H.A.P. Galeria, na Rua Abreu Fialho, 11, no Jardim Botânico, e uma obra monumental nas Cavalariças do Parque Lage. Em 2001, ele já havia ocupado a antiga estrebaria do parque, espaço que o atrai por sua relação com o exterior e pela precariedade – um pouco como sua obra que busca deixar algo inacabado. Para Felix, não é um problema voltar ao mesmo lugar, pensar em como ocupa-lo de outra forma. Até porque ele não busca uma grande ideia para uma nova escultura:

– Uma coisa que me incomoda hoje é a arte feita de pequenas boas ideias, para certo. Os publicitários já fazem isso há anos, e muito melhor. Arte não é para dar certo – afirma. – O grande valor da arte, seja ela qual for, é gerar um pensamento. O maior desafio é construir uma linguagem que não serve para nada, que é só poética.

Felix cria a poética primeiro em sua cabeça, com suas regras. Seu trabalho usa o espaço, mas não depende dele. Mas, por vezes, o espaço pede algo, e ele não consegue dizer “não”. Nas Cavalariças, o artista deixou o imenso anel de mármores – de 2,3 metros de diâmetro e nove toneladas – cair sobre três das 60 vigas de ferro que estão espalhadas pelo espaço. Ele tinha dito para si mesmo que o círculo ficaria do jeito que caísse, ao acaso. Mas o anel parou num ângulo muito certinho e, como Felix é meio torto, teve que mudar a posição da peça.

Para o artista, a instalação nas Cavalariças é parte de uma obra que começou em 2006, no Museu Vale. Quando foi convidado, Felix se deu conta que Vila Velha, onde fica a instituição está mais ou menos na mesma latitude da cidade boliviana de Camiri, a 23 graus. Ele pensava justamente em fazer um trabalho nessa cidade, porque ela é o lugar da intersecção entre quatro locais que visou, e que formaram a obra “Cruz na América”: a Floresta Amazônica, no Acre, o litoral do Ceará, o deserto de Atacama e o pampa gaúcho. No meio, Camiri, que passou a nomear a exposição em Vila Velha.

No museu do Espírito Santo, as vigas de ferro foram inclinadas e presas às paredes a 23 graus, um ângulo que já tinha sido uma regra de obras como “Grafite”, em 1998, e “Série Árabe”, nas Cavalariças, em 2001.

Depois da exposição no Museu Vale, Felix, que não saiu do mapa, viajou. Retomou a ideia de “Cruz na América”, de soltar objetos pelo mundo, e a partir de Camiri, seguiu outras coordenadas geográficas, criando um desenho pelo globo terrestre. Foi para o Mar do Caribe, o Mar da China, a costa da Austrália e a Islândia. A cada abandono de uma obra, Felix tirava uma foto. As imagens estarão reunidas no catálogo da exposição “Cavalariças”. O artista, porém, não fez as obras pensando nos ambientes. Calculou as coordenadas e viajou com um GPS, sem saber exatamente que paisagens o esperavam.

Numa certa época, tudo na arte brasileira era site-specific, e isso me incomodava.

Para chegar à ilha de Dong-sha, em Taiwan, onde fica uma base militar, Felix teve que passar três semanas em Hong Kong, mais alguns dias em Taipei, até que saísse o avião militar que o levaria. Ele esperou lixando um anel de mármore, que seria deixado no local.

– Só parei de lixar no dia que embarquei. Era o único jeito de exprimir o tempo no mármore – conta.

Enquanto viajava, Felix se deu conta de que, depois de rodar o mundo, teria que ficar suas vigas de ferro novamente. E, ainda longe, pensou nas Cavalariças. Voltou para seu canto em Muri, para pensar nas novas regras e nos novos significados de uma nova obra. Sem atender o telefone, lendo poesia e ouvindo Miles Davis, John Coltrane, Jimi Hendrix, Dorival Caymmi e música flamenca.

– Adoro flamenco, porque a técnica é violenta, mas close

catálogo laços do olhar

Paulo Herkenhoff - 2009

Catálogo Laços do Olhar- 2009

Instituto Tomie Ohtake

 

Desde quando fez sua primeira exposição em 1980, Nelson feliz não prometeu ser um outro que não ele próprio ao citar Mircea Eliade: “ a atividade imaginária e a experiência onírica do homem moderno seguem impregnadas de símbolos, figuras e temas religiosos. Como alguns psicólogos gostam de repetir? O inconsciente religioso”. 176 Nessa ocasião, ele aduz referências específicas ao zen: “A meditação zen priva o ser, durante sua prática, do excesso de pensamento dedutivo. O aprendizado não consiste no acúmulo de conhecimento”. A arte de Nelson Félix seria então o processo de uma dupla constituição do vazio: questão interior da obra e questão no interior do sujeito. A presença de figuras do buda em algumas escrutas (e.g., sem título, 2005) são notas visualmente indexais desses fatores na obra. O artista diz que as ideias, a reflexão sobre as coisas e os conceitos se acumulam na mente, um dia se torna necessário fazer arte. Isto é, esvaziar a mente compreendida como uma ação zen.

A crítica brasileira se comporta sob uma espécie de “budafobia”, reduz a quase nada o interesse de Félix no zen, forma mental tanto quanto espiritual. É raríssimo ver críticos como Wilson Coutinho ou Glória Ferreira enfrentarem o assunto.177 Glória Ferreira apontou essa dificuldade: “ ao conjugar dimensão espiritual a seu engajamento no processo histórico da arte, Nélson Felix, sem considerar prescindíveis a cultura ou a filosofia ocidentais, recorre à filosofia oriental como abertura para questionar conceitos causais e lineares. Questão nem sempre facilmente abordada pela herança formalista presenta na história da crítica da arte.”178 Esse é o paradoxo intelectual exterior de Nelson Félix: conviver num círculo em que tocar o nome de Buda é o interdito. Não se fala, não se escuta – esse é o recalque. A “budafobia” é o modo como o formalismo brasileiro constitui sua própria pauta daquilo que é o “politicamente correto” à brasileira: negar qualquer hipótese de uma intersecção metafísica na arte contemporânea. Essa perspectiva mecanicista assim entende ser o viés intelectualmente correto à direita ou à esquerda, de Greenberg ao materialismo histórico. Ronaldo Brito expõe o nó: “independentemente da orientação espiritual de seu auto, uma poética contemporânea não se qualifica graças a esta ou àquela mitologia, sequer pelo grau maior ou menor de intensidade de seu componente mítico. Mitologias, em suma, acabam elas próprias, em laega medida, escolhas estéticas.”179 Marx e Freud tratam religiões como mitologia e superstição. Diferentemente do que muitos pensam no Brasil, o zen “não é uma religião”, não tem Deus a cultuar, ritos a cumprir, futuro a garantir, alma a cuidar, como asseverado por Daisetz Teitaro Suzuki.180 Não tem mitologia. O reducionismo é a razão para a “budafobia” brasileira. Graças a interdição similar à metafísica, a poética de Mira Schendel permanece insuficientemente compreendida. Em outra direção, Nicolas Calas e Anne Temmpkin estudam a pauta mística na obra de Barnett Newman.181 “A pintura de Newman tem uma nudez emocional sem nenhum pudor de se referir ao fator irracional, analisa Tempkin.”182 A iminência da morte o leva a relações entre arte e vida em perspectiva física, afetiva e metafísica. Suas pinturas da Estações da Cruz friccionam as ideias de isolamento entre arte e vida. “Não existe tal coisa como uma boa pintura sobre nada. (…) o assunto é crucial, e o assunto é válido apenas quando é atemporal e trágico”,183 escreve Mark Rothko, o pinto da meditativa Rothko Chapen in Houston. Newman e Rothko compõe a geração-chave para o desenvolvimento do pensamento crítico de Clement Greenberg. Rothko também considera que a arte moderna retirou de si o que era a paixão humana. Onde a arte retirou o mito, novos deuses tiveram de ser criados – “o homem tentou se deificar” – e ocorreu uma heroificação na arte.184 No artigo “Concerning the spiritual in contemporary art”, Donald Kuspitt não elide o problema, mas opta por problematizar a questão: “ a arte abstrata mais significante reflete um conflito íntimo entre o desejo encorajado socialmente pela comunicação convencional e o desejo individual pela experiência espiritual”.185 Sem essa disponibilidade crítica, o zen em Nelson Félix estaria sempre sujeito a uma espécie de retorno do recalcado. Assim, nada seria mais zen num artista do que enfrentar a elisão de seu envolvimento com o zen pela crítica como faz Nelson Félix.

Nelson Félix é como o Cézzane de Merleau-Ponty. A vida do artista não explica a arte, diz o filósofo nos prolegômenos de sua tese. Não é dela que advém o sentido da obra.186 Nada disso, no entanto, elimina de plano de a relação entre a vida e a intervenção. Merleau-Ponty fulmina e grifa no original: “la verité est qie cette peuvre à faire exigeait cette vie” (“a verdade é que esta obra a ser feita exigia esta vida”).187

Definitivamente, a arte de Nelson Félix soube evitar ser uma tediosa estetização do zen, perigo conta qual Watts advertiu ao estudante de sumi-ê, caligrafia ou haikai (p. 21). Uma das Trilogias de Félix lida com os espaços vazios na anatomia de três órgãos do corpo humano “o cérebro, o coração e o sexo”. Filho de médico, Nelson Félix entende que as três regiões que incluem o vazio em sua estrutura são justamente as que mais concentram energia no corpo humano.188 Impossível não pensar na conversão simbólica do vazio físico do cérebro no vazio zen. Uma obra de Féliz tem algo da metáfora da tigela de chá na literatura zen. A mente – a vasilha – tem de ser esvaziada para que atinja a plenitude do satori. O vazio do sexo remete imediatamente À falta constitutiva do desejo. Isso já estava no existencialismo de O ser e o nada (1943) de Jean-Paul Sartre, antes de Lacan: “Que a realidade humana seja manque (falta), a existência do desejo, como fato humano, é prova suficiente”.189 Nelson Félix não descarta o valor simbólico do coração como motor da energia afetiva. A expressão “vaso sanguíneo” remete à topologia lacaniana de oleiro (em O seminário, livro 7, A ética da psicanálise), já referida no contexto da produção de Schendel, mas que também incide surpreendentemente sobre essa obra de Félix: a obra é constituída a partir do vaso, isto é, do furo. “O corpo se apoia nos extravios do espírito, e os olhos sobre as distorções da visão”, diz Miyamoto Musashi sobre o zen.190 Nelson Félix diz que em sua obra “Tem tudo isso. Vazio pleno, vazio budista”.191

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Entrevista com iracema Barbosa

Iracema Barbosa - 2009

Entrevista realizada em agosto de 2009, no atelier de Nelson Felix, por Iracema Barbosa. Entrevista inscrita na pesquisa de doutorado Poétiques de la Répétition – defendida na Université Rennes 2, França, em novembro de 2012.

 

Iracema Barbosa – Como você vê a relação dos seus trabalhos com os lugares, que não são sites specifics nem plácidos lugares de instalação da escultura ? Expresso minha sensação da força de sua ação nos “espaços”. De uma força que resulta de gestos como: empurrar, fincar, ondular, esculpir e até abandonar o trabalho, conjugando tais gestos à propria resistência dos materiais: as vigas, o mármore, os pinos, as placas e as árvores.

 

Nelson Félix – O trabalho mostra aos olhos várias questões, que se sucedem e se misturam, e que se tornam visíveis no próprio trabalho. Elas estão ali, é um exercício de calar a boca. É difícil falar de uma coisa sem falar de outra. São vários significados que vão se transformando em outros significados, são tantos significados que eles se anulam. É um horizonte construído que retorna ao olhar, e se torna horizonte de novo.

Houve um momento em que tudo era site specific. Era também uma circunstância do mercado de arte. O curador dizia, ‘você vem aqui e faz um trabalho’, o que facilitava tudo. Isso começou a me incomodar. Me parecia que ali estava havendo um erro. Mas a conquista do site specific foi um dos acontecimentos mais interessantes do século passado (XX), a recuperação de uma coisa antiquissíma… Os druidas faziam isso, os gregos faziam isso, os romanos faziam isso. Foi incrível aquele pessoal dos anos 1960/70 nos Estados Unidos, mas depois virou um feijão com arroz, uma coisa banal. E aí o artista chegava lá no lugar e compunha no espaço, do mesmo modo como se compõe uma pintura numa tela, um desenho num papel. Vi que a questão da não composição me interessava.

E esta exposição em Paris[i] me incomoda porque, diante das circunstâncias, utilizei o máximo da minha capacidade compositiva.

 

Iracema Barbosa – Mas Matisse trabalhou muito com a composição.

 

Nelson Félix – Mas a grande diferença é que, no momento de Matisse, ninguém compunha assim, ele foi um desbravador, um novo pensamento de arte, uma nova maneira de se fazer arte, que foi a arte moderna. Eles foram colando abaixo questões acadêmicas, relativas à forma, à cor, e foram reconstruindo de outra maneira, como no cubismo, no fauvismo…

Mas hoje não tem mais isto, compor num site specific não é mais desbravar nada. Então fui descobrindo que poderia criar situações para “passar a perna” na composição, o que também não é uma coisa nova, pois foi o que fizeram os minimalistas, criar objetos seriados, não construir com a mão. Percebi que estava me deslocando muito pelo mundo e havia uma coisa abstrata, que é a coordenada, que na realidade é um acordo. Um lugar que não existe, que é mental. Utilizando o sistema de coordenadas eu me liberava da composição, eu não tinha mais que escolher onde ia colocar o trabalho.

 

Iracema Barbosa – De uma certa maneira, foi assim como os construtivistas se serviram da geometria para se liberarem das relações fundo-figura e das antigas normas de proporção.

 

Nelson Félix – Penso que esta maneira de proceder (através do acaso da escolha do lugar) é como pensar uma pintura, ela pode estar em qualquer lugar, o trabalho é centrado nele mesmo.

É, foi por implicância com a composição e com o site specific que comecei a trabalhar assim e a viajar ainda mais pelo mundo. Mas não tem jeito, a gente sempre vai estar compondo. Mesmo que eu esteja inconsciente disso, minha própria ação pode ser lida como composição.

 

Iracema Barbosa – A composição tem a ver com uma certa organização que a gente quer dar ao mundo.

 

Nelson Félix – E se a gente dá ou não dá, de qualquer maneira vai ser lido assim. É igual à morte, é igual a respirar. Posso estar ciente ou não, mas todo mundo vai saber que respiro, não vou brigar. Há duas maneiras de você fazer face a uma situação: ou você se harmoniza com ela ou vai de encontro a ela. Quando elas são maiores que você, o único jeito é você se harmonizar a ela. Faz parte da minha condição de artista, assim como faz parte da minha condição de ser humano morrer e respirar.

Pensando sobre esta questão da composição e do lugar, considerei que, se existe um lugar perfeito no universo, anterior a qualquer ser humano, é o eixo do sol e da Terra. Daí pensei em colocar uma peça na posição do eixo do sol, escolhendo uma posição que é anterior a qualquer existência e que é perfeitamente alinhada ao sol. Foi a partir dessa experiência que comecei a reparar nos 23°, que é o ângulo de inclinação da eclíptica, ou seja, da inclinação do eixo da Terra em relação ao sol, graças ao qual a gente tem todas as belezas da natureza: as estações do ano, as safras, as frutas, as diversidades da natureza que criam uma beleza, talvez a beleza primeira da Terra. Como o Ronaldo Brito escreveu: corrigindo pelo erro, ou seja, graças a este erro que a Terra tem em relação ao sol é que a beleza acontece.

O mais incrível é que depois eu li um trabalho sobre um povo primitivo africano que sabia que as cruzes – as cruzes são símbolos poderosíssimos de marcação e de predestinação, se marca um lugar com um X – eles sabiam que a cruz aparecia na Terra e no céu, neste deslocamento de eixos. Esse povo acreditava que todo o trabalho do ser era de se torcer para se equilibrar em relação à posição do sol.

Miró dizia que não era surrealista, mas ninguém ouvia. Como esse trabalho, que eu não chamo de instalação, mas não adianta, todo mundo se refere a ele como instalação.

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Nelson Félix – A cruz origina o quadrado, o quadrado são cruzes. Eu tinha um desconforto com a cruz, sei lá, por pertencer a um mundo católico. Assim como, se eu fosse oriental, talvez não tivesse trabalhado com a imagem do Budha. Eu olhava a cruz com muito sofrimento, o que é uma coisa muito católica. E, na realidade, tenho hoje em dia uma visão completamente diferente em relação à própria crucificação do Cristo. Penso que é um ponto culminante de uma religião, uma sublimação. E Ele, como um verdeiro yogue, nem sentiu dor, simplesmente ocorreu uma transmutação. Demorei muito a entender as coisas desse jeito. O que veio também da relação que percebi entre a cruz e o quadrado, pela forma. Isto não é arte em si, mas é daí que sai muita coisa.

 

Iracema Barbosa – Percebo que seu trabalho provoca um questionamento sobre aquilo que está dentro e aquilo que está fora. Como o Grande Budha, você não sabe se é a floresta que está fora do trabalho ou se é a árvore que, com sua intervenção, sai da floresta.

 

Nelson Félix – Esta foi uma ideia presente na realização desse trabalho, que surgiu em 1986 e só aconteceu em 2000. Eu dizia transgressão, por levar de um ambiente para outro, pelas ações, como você falou, de furar, penetrar fincar, uma aparente agressividade.

É uma longa história, e nem sei se é o caso trazê-la aqui, pois pode reduzir a compreensão ao invés de ampliá-la. Mas há algo que existe na gente, como uma vela que pode ou não se acender. Não gosto de chamar isso de talento, porque vai além disso. Por exemplo, na espiritualidade que me foi oferecida pela família havia algo que me era desconfortável, mas um dia percebi uma relação maior com a espirtualidade. A espiritualidade era uma coisa corriqueira, tratar bem o vizinho, desenvolver seu próprio caráter, procurar um sentido em seu próprio processo interior. Essas questões começaram a me perseguir e comecei a procurá-las sem preconceito. Comecei a ver que meus amigos dificilmente entendiam isso, ou entendiam e não respeitavam, isso com 15 anos. Aí fui viajar, morar numa comunidade e me deparei com o pensamento oriental. Até então minha espiritualidade era meio amorfa, seguia no sentido de aguçar as percepções. Aí percebi que a espiritualidade não era ficar ‘quietinho bonitinho’, era sim um profundo embate com você mesmo, você vencer determinadas coisas de que não gostava em você e cultivar coisas que gostava, mas isto era muito difícil, pois facilmente você caí em vícios de linguagem, vícios de comportamento. E isso é fascinante, fazer arte nesta intensidade e trabalhar a mim mesmo nesta intensidade, isto é desafio, nisto vale a pena colocar a vida. E um leva ao outro, porque, no mundo de hoje, levar a arte nesta intensidade é difícil. Percebi que ‘o cara pode estar quietinho, mas o pau estar comendo ali dentro’. É por isto que os trabalhos são assim. Acredito que, na beleza, na beleza estética, filosófica, o pau tá sempre comendo. Não há beleza sem uma transgressão, uma total reorganização de tudo. E reorganizar coisas não é fácil, mudar as estruturas não é fácil. Para mim, isto é espiritualidade: esta ação forte sobre você mesmo. O Grande Budha se originou daí, dessa transgressão. Percebi que as duas coisas que minha vida tocava, a espiritualidade e a arte, eram onde havia as maiores transgressões. Observei como os povos tratavam o corpos nas diferentes culturas religiosas, como os índios australianos cortavam o corpo, as mulheres da Birmânia colocando coisas nos pescoço, as japonesas diminuido os pés.

No Grande Budha, aquela árvore vai crescer e comer aquelas garras todas, ela vai voltar a ser árvore. Assim acontece que, desde o início, esta ação está perdida, assim como uma árvore está perdida no meio de uma floresta, é uma experiência de perder o que já está perdido. É se definir pelo que não está definido, como em Fernado Pessoa, “eu sou aquele que eu não fui”, como a arte moderna, que frequentemente se definiu por aquilo que ela não queria que fosse.

Esta árvore é um mogno. Como disse, é um significado dentro de um significado, dentro de um significado. Originalmente pensei em fazer com jequitibá, que é uma das maiores árvores da floresta daqui, mas, quando cheguei na Amazônia, fui informado que o mogno era como o leão na savana, a mais bonita e que não podia mais ser cortada, de jeito nenhum, porque está em extinção.

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Iracema Barbosa – Você falou do sol, da floresta, dos pampas, do deserto, da praia, mas essa valorização da paisagem não é da ordem da contemplação nem da representação. O seu trabalho, pelo que percebo, opera à escuta de certos processos que a gente percebe na natureza e também nos materiais. Assunto que encantou os artistas de todos os tempos. Não sei se estou certa ou não, mas o que gostaria de saber é como você percebe esta relação com a natureza-natural.

 

Nelson Félix – Não é uma coisa a priori para o trabalho, mas se eu falar que não existe relação, estaria errado. Uma vez me contaram que Mondrian comia de costas para a janela, portanto muitos trabalhos dele foram inspirados em árvores. Me parece uma coisa natural.

Mas, por exemplo, o Grande Budha está inserido num trabalho maior, que é a Cruz na América, onde se inscrevem: Grande Budha, no Acre; Mesa, no Rio Grande do Sul, e os dois trabalhos do Vazio no Coração. Um na floresta amazônica, outro nos pampas, outro no deserto e outro na praia. Ali trabalhei com quatro paisagens diferentes. Mas me considero um artista abstrato, profudamente abstrato. Porque as questões vieram das coordenadas. Eu trabalho com formas que já existem, não estou criando formas. Mas no fundo eu acredito que é tudo o mesmo pensamento, se vai pra lá ou pra cá, tanto faz trabalhar com a forma de um cubo, círculo ou um calcanhar, uma glândula, ou nariz. Na realidade, o jeito de lidar com aquilo é que é abstrato. Me sinto de uma família de artistas do início do século XX. Porque, quando parto para o mundo, parto com coordenadas, para situações onde a forma vai se explodir ou se quebrar, que já é um segundo procedimento de lidar com a forma abstrata.

 

Iracema Barbosa – Mas no Grande Budha, o trabalho comprende o crescimento daquele mogno, assim como na Mesa, envolve o crescimento das figueiras.

Nelson Félix – Entendo, mas cheguei aí por que precisava do tempo! Queria um elemento que fosse maior do que nossa compreensão visual. No fundo é tudo poesia moderna. Ou seja, se você for lá na Amazônia para ver o Grande Budha, você não vai ver a obra! Porque o tempo dela é maior do que você. Voltamos a Fernando Pessoa ” eu sou aquele que não fui “. Ou seja, o tempo é tão grande que a gente fica ínfimo. O crescimento do mogno normal dura 400 anos, mas a árvore pode viver de 800 a 1200 anos. Então cheguei aí por um pensamento abstrato da poesia moderna. Para mim, a arte moderna lançou questões fundamentais que ainda estão aí para serem tratadas, sobretudo quando se junta poesia com artes plásticas, como foi o caso no Dadaísmo, no Surrealismo. Me abstraio das coisas e acabo encontrando elementos formais, porque sou escultor, fascinando pelo desenho e pela criação de um objeto.

 

Iracema Barbosa – Vejo também uma relação com o tempo e com o ritmo nesses seus trabalhos.

 

Nelson Félix – Há sim, uma relação com o ritmo no meu trabalho, pouca gente vê isto. Toquei bateria, fui percussionista. E, no espaço, ou você domina o espaço, pensa ele, introjeta ele, ou se harmoniza com ele. Os dois procedimentos se misturam e eu uso muito o ritmo. A repetição não veio pelo minimalismo, mas pela música. Aliás, todas as minhas questões vieram da música, foi muito depois que veio a arte. Foi a simplicidade do Caymmi que me apaixonou muito mais, a transgressão de um Jimi Hendrix, isto chegou muito antes para mim, só muito depois fui conhecer Joseph Beuys.

 

Iracema Barbosa – Também me interesso por essas questões de escalas de tempo. Da duração dos materiais que, ao ultrapassarem o da vida humana, se associam à noção de infinito.

 

Nelson Félix – É, hoje penso que existem infinitos dentro de infinitos, são regiões de pensamento muito doidas.

 

Iracema Barbosa – É importante que a gente fale delas, pois são essas regiões que apresentam afinidades com a matemática, a física. A arte moderna deixou a gente assim: vamos falar só de arte. E hoje a gente está num momento que é o contrário.

 

Nelson Félix – Mas aqui[ii] o que me move não é a natureza, é o tempo. Ele pode ser contínuo, não há interferências. Me lembro quando vim para cá, há uns 30 anos, quando comecei e assumi ser artista, as pessoas falavam que era perfeito para um artista. Mas eu queria um atelier, naquele momento eu achava que podia fazer o trabalho em qualquer lugar. Mas hoje, de uns tempos pra cá, este local é fundamental para o trabalho, menos pela questão espacial, e mais pela questão temporal e mental que ele possibilita. A sensação de isolamento é fundamental, e há a sensação de que o tempo tem aqui uma outra dimensão. Nós, como artistas, não fazemos outra coisa senão decidir. Temos todas as opções e, todo dia, a gente tem que tomar decisões, e a arte moderna ajuda muito, pois ajuda a ver o que não se quer. A arte moderna foi um grande exercício que a gente inventou para nos liberar da subjugação ao mundo físico (intestino, cabeça, olho, bicho, planta). A gente começou a jogar tudo fora, e aí sobrou pouca coisa. A partir daí, você tem que fazer novas escolhas e ver tudo de novo, ou seja você vai se definindo por aquilo que você não é. O Grande Budha é uma espécie de canto a isto, a tudo aquilo que não pode ser… tudo que se perde.

 

Iracema Barbosa – Já que você está falando desta condição de isolamento para a criação e consistência do trabalho, uma questão que tem e não tem a ver com o seu trabalho: como é que um artista como você consegue administrar o trabalho daqui, fora de todos os centros (pois o Rio de Janeiro já não é o centro), localizado a três horas do Rio, e ainda com dificuldades de comunicação.

Nelson Félix – O início foi muito complicado. Mas eu trabalhava assim: fazia um trabalho que tinha uma repercussão e me isolava. Isso fez com que eu criasse um tutano, mas era difícil de lidar até interiormente. Era difícil construir uma carreira, era como se estivesse sempre começando. As pessoas me conheciam mas não sabiam como era meu rosto ou até a cara do trabalho. Por outro lado, hoje adoro aquele momento, por ter me dado um certo isolamento, uma relação diferente com a arte. Tem uma hora que o sujeito esbarra na arte e esta é a hora da carreira. A carreira é quando o indivíduo se junta ao artista. Mas, desde os anos 1990, os artistas associaram um pensamento publicitário à arte, ou seja, o artista percebeu como se ‘coloca um produto na praça’, tudo ficou movido por pequenas grandes ideias, ou seja, uma boa ideia atrás da outra, como na publicidade. Muitos artistas não constroem mais um trabalho, não há mais densidade, não há mais poesia. Tem-se uma boa ideia atrás da outra, e atrás da outra, e o artista fica sempre na superfície da água e em evidência. Talvez, depois de 20 anos assim, pode ser que o artista consiga construir um trabalho, e há estudos sobre isto, é assim que opera a publicidade. Mas acho que tem um outro jeito, que é muito clássico, que é o ato poético, quando os trabalhos vão se tornando um só trabalho. É com esta criação que me identifico. Voltamos à história sobre a relação com o tempo. Se torna difícil falar de uma parte do trabalho sem tocar em outra, ou seja, vai-se criando um amálgama, vai-se criando um sistema de significados. Uma vez estava lendo uma entrevista daquela pintora americana Agnès Martin, e li uma coisa com a qual não concordo muito, mas que entendo. Ela disse: “eu desconfio das ideias, não gosto muito de ter ideias, porque as ideias às vezes atrapalham o meu processo”. Não chego a este ponto, porque acho que a ideia pode ser refeita e refeita e refeita, mas entendo profundamente essa densidade dela. Acho muito interessante esse processo de adensar, não conseguiria ver a arte sem esse processo poético, a arte se auto-inaugura nela mesma. Os publicitários, que também podem ser geniais, são os homens das ideias. Mas existe ainda mais genialidade em se jogar uma ideia fora, ou deixar ela aparecer o mínimo necessário para que a poesia volte, acho que é isso o que eu busco. Mas construir uma carreira é uma coisa muito simples, é como um jogo de 7 e meio, ou você pede carta ou você blefa… Se tiver as oportunidades, você vai construindo. Mas fazer a arte mesmo, em si, é muito mais complicado, não se sabe aonde ela está te levando. Mas, na carreira, quando você diz não a uma situação que não te corresponde, você tem que criar uma outra situação para você, e isto é matéria, é dinheiro, se você diz não a um valor para pagar um catálogo, você vai ter que arrumar este valor em outro lugar. Isso é administrável. Mas você fazer arte com intensidade, aí já é diferente, é lapidar, não é uma escolha de uma profissão, mas de uma vocação. Não dava para fazer outra coisa que não aquilo. Num jogo, você simplesmente aprende a jogar. Nós, artistas plásticos, talvez sejamos os mais caretas dos artistas, porque a gente cria objetos. Pior, só a arquitetura. É claro que há as experiências de criações imateriais na arte.

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Nelson Félix – Havia o trabalho Cruz na América, e havia um ponto central que eu nunca tinha pensado em fazer nada com ele. Foi nesse momento que veio o convite do Museu da Vale do Rio Doce e, ao mesmo tempo, um convite do Ronaldo Brito para fazermos um trabalho juntos. Achei que havia algo mágico. Havia os quatro trabalhos, feitos nesta sequência: o primeiro, Mesa (1997-1999), construído com chapas de aço e figueiras; o segundo, o Grande Budha (1985-2000), que é o da árvore na Amazônia ; o terceiro, o Vazio Coração/ Deserto (1999-2003), a fotografia superexposta, tomada no deserto do Atacama, Chile e, por último, Vazio Coração (1999-2004), a bola de mármore colocada na praia Redonda, em Pontagrossa, no Ceará. E havia este ponto central que dava numa cidade chamada Camiri na Bolívia. Foi então que pensei em rebater este ponto para o Polo Norte e também para o outro lado do globo.

Trabalhar com o Ronaldo Brito é algo excepcional, porque ele entra no trabalho como um artista e entende o que a gente está querendo ou não. E eu estava saindo de um longo trabalho com a Glorinha (Glória Ferreira), do livro das entrevistas, cuja elaboração durou mais de 6 anos, depois de montar a exposição do Paço Imperial quase sozinho, foi barra pesada. Não estava com vontade de encarar nenhum espaço barra pesada, e aí eu estava adiando o compromisso com o museu, até que aperceu o Ronaldo e comecei a me animar. E aí, quando vi que o Museu da Vale do Rio Doce ficava a 23°, no mesmo paralelo daquele ponto central em Camiri, isto me deu o trabalho ! Então pensei no deslocamento de 23° nas peças dentro do Museu da Vale do Rio Doce. Como as coordenadas são uma coisa que não existe, eu inverti aleatoriamente um número com o outro, o polo norte e o polo sul, e caiu neste ponto aqui, nas Cavalariças. O que eu fiz foi construir um desenho no mundo, o trabalho é um desenho. Porque construo e me desfaço, e a única peça que sobrou foi um anel de mármore enorme. O trabalho será muito simples, mas a montagem é complicada, vai ser complicado colocar este anel lá nas Cavalariças do Parque Lage. Você pode olhar cada trabalho separadamente, como numa exposição, mas para mim é um trabalho só. Ele pode responder individualmente, mas pode responder no contexto todo. E aí o trabalho vai se amarrando no próprio trabalho. E um trabalho que começou com cruz foi se tornando um trabalho de pontos, de uniões, de ligações, de alianças. De uma certa maneira, o trabalho que fiz em Portugal é meio uma síntese desse trabalho todo. Há algo que me lembra os aquarelistas orientais, que passavam anos olhando uma paisagem e, às vezes, num só instante, com traços sintéticos eles definiam aquela paisagem. É como se estivesse fazendo todo aquele trabalho e, de repente, surgisse uma única forma que me passava a sensação deste todo. Por isso as coisas são interligadas, as formas são únicas. Aquela forma de dois cubos, um dentro do outro, não me saía da cabeça. E tive vontade de fixar e apareceram os pregos. E são esses quadrados e desenhos, que sintetizam minha sensação sobre a experiência das viagens, que pretendo mostrar na galeria. Igual aos aquarelistas. Você olha a paisagem, olha a paisagem e faz um desenho. É muito difícil fazer desenho e escultura hoje em dia, muito já foi feito e continua sendo feito. O único jeito que consegui foi fazer o trabalho como um todo, mergulhado no próprio trabalho.

 

[i] Exposição realizada no Carré du Temple, em Paris, em 2005, na ocasião do ano do Brasil na França. Nelson Félix participou com o trabalho, Língua, de 1990, feito em madeira e sustentado por pequenas esculturas metálicas do Buda.

 

[ii] Nelson Félix está falando do lugar onde vive, só, no meio da floresta, na montanha.

 

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Nelson Felix - homenagem ao olhar

Fernanda Lopes - 2007

Revista Bien’Art – 2007

 

Entrar na exposição Camiri, que o escultor Nelson Felix apresenta no Museu Vale do Rio Doce, em Vila Velha (ES), é ver o resultado de mais de 20 anos de intenso trabalho. “É a solidificação do pensamento em vários anos que, em vez de se traduzir em quinhentas mil palavras, transformei em uma grande escultura para um espaço de quase 800 metros quadrados”, explica o artista, um dos mais representativos da sua geração, vencedor na categoria Conjunto da Obra da primeira edição do Prêmio das Artes Plásticas Marcantonio Vilaça, promovido pela Funarte.

A obra de mais de 30 toneladas é composta por 40 vigas de ferro e três peças de mármore de Carrara: dois cubos vazados, esculpidos pelo artista em seu ateliê, em Nova Friburgo, região serrana do Rio, e um anel com 2,30m de diâmetro, feito a partir de um único bloco de mármore. As vigas cortam o espaço do museu: nas duas primeiras salas estão em paralelas, de parede a parede; nas última, ocupam todo o espaço obedecendo à inclinação de 23 graus. Essa angulação é a mesma do alinhamento do eixo do Sol em relação à Terra, utilizada pelo artista em outras obras.

Acostumado a trabalhar a partir de coordenadas aleatórias, Felix encontrou Camiri, depois de traçar linhas que ligavam quatro inciativas feitas nos últimos oito anos na América do Sul. O ponto em comum entre eles apontou para a aldeia no interior da Bolívia, que dá nome à exposição: Camiri. “Eu não fiz nada, só achei”, brinca.

A exposição também comemora os oito anos do Museu Vale do Rio Doce, que, nesse período, recebeu 650 mil visitantes, sendo 65% deles das classes C e D.

O grande foco do museu é o programa de arte-educação, com uma proposta de inclusão social, desenvolvido com 3.500 crianças por mês a partir de exposições apresentadas no galpão. “Hoje, vejo a arte ligada a essa função social mesmo. Cada vez mais acredito que ela pode oferecer cidadania, respeito e possibilidades”, aponta Ronaldo Barbosa, diretor do museu. A seguir, a entrevista exclusiva de Nelson Felix à Bien’Art.

Camiri é um projeto que você vem alimentando há algum tempo, não é?

– Em 1999, fiz um trabalho chamado Mesa, em Uruguaiana, no sul do País. Em 2000, fiz Grande Budha no interior da floresta do Acre. Em 2004, fiz dois da série Vazio Coração, um no litoral do Ceará e outro no Deserto do Atacama, no norte do Chile. Traçando duas linhas, uma ligando os trabalhos no norte e no sul, e outra ligando-os no leste e no oeste, achei um ponto no mapa. Comecei a pensar em agir ali, mas fiquei com receio de fechar os outros. Ao mesmo tempo é impossível não passar pela cabeça fazer algo ali (risos).

É quase uma seta.

– Por incrível que pareça, esse ponto bate em uma aldeia no interior da Bolívia chama Camiri. Depois que recebi o convite para a exposição no Museu Vale do Rio Doce, reparei que a cidade de Vitória está na mesma latitude de Camiri, a 23 graus em direção a oeste. Pensei: “Aí é demais!” Todo esse processo está nos 24 desenhos apresentados no edifício sede do museu.

Você usou em outros trabalhos esse deslocamento de 23 graus. O que te interessa nesse número?

– Nessa exposição tem pensamento que estão vindo comigo desde 1985, 1986. Eu tinha uma implicância com a composição, com a idéia de “fazer bonitinho”. É uma implicância porque, sendo artista, você sempre vai ter de lidar com a composição. Comecei a pensar sobre isso e cheguei à conclusão de que, se tem algo bem posicionado em todo o sistema solar, é o Sol. Todo o resto está errado. A posição perfeita é a do eixo do Sol. Já usei essa referência em dois trabalhos. Em 1988 fiz Grafite, em que uma peça de grafite ficava posicionada de acordo com o eixo do astro. O resultado é que, em relação a seu eixo, ela estava perfeitamente posicionada, mas em relação ao espaço onde estava, ficava torta. Depois, em 2001, fiz a Série Árabe, nas Cavalariças do Parque Lage, no Rio: alinhei todas as peças com a arquitetura do espaço e depois desloquei todas 23 graus. A partir daí, para caber naquele mesmo espaço, as peças atravessavam as paredes ou tinha sua forma distorcida. Aqui, no museu, é a terceira vez que eu toco nessa questão. Estou muito satisfeito. A visualidade que ele gera é muito próxima da que eu gostaria de ter obtido em vários trabalhos que fiz.

Tem uma relação quase espiritual também. As vigas que eleva o nível do chão acabam te aproximando do teto.

– Interessante. Eu tinha pensando em desnivelar o chão, ou ignorar o desnível desse espaço, mas não nessa questão de elevação. Fico contente com sua observação pois todo mundo fala do “Nelson espiritual” [Nelson é budista], que me incomoda um pouco, mas acho que a arte é da categoria do sublime. Duas vertentes que erram constantemente e trabalham com a certeza, são a religião e a ciência. A religião vive falando como são as coisas, assim como a ciência, e cada vez que as coisas mudam, elas se estrepam. A arte nunca trabalha com a certeza. Ela tem essa preocupação do sublime, ou seja, ela nunca diz o que é. Não está preocupada em acertar mas em elevar. E se você perceber, o sublime não é o bonitinho, harmonioso e si a mudança, o processo de aperfeiçoamento. Essa exposição e um canto à perfeição, um canto a essa inclinação de 23 graus que gerou toda essa beleza: estações do ano, o dia e anoite, a vida… Mas a questão do sublime é árdua e essa exposição espelha isso: ela entala o museu, entra com violência, furando as paredes. Ao mesmo tempo ela acaricia o olho. É esse o respeito que tenho com a forma, com a tradição da escultura.

As esculturas são grandes peças de mármore de Carrara, um material clássico dessa técnica. Você usa peças inteiras, retirando o que não te interessa, descobrindo a forma que está ali dentro. Michelangelo tinha uma relação parecida com o mármore.

– Uma vez o Sérgio Camargo [escultor] me explicou que ele usava o mármore de Carrara por causa da luz. Eu uso por uma questão conceitual, em respeito à tradição de escultura que vem dos gregos e dos romanos. Quando olho um trabalho em mármore, vejo 800 anos de história. Assim como quando vejo uma pintura, enxergo 500 anos de história. Me interessa que essas camadas de olhar existam no meu trabalho, que elas sejam fortes. Sempre me interessou. Esse mármore, por exemplo, é vendido em placas. Eu poderia ter comprado por telefone quatro placas, pedido para o marmorista fazer um cubo com elas usando cola, e, no mesmo dia, de tarde, peça a peça ponta. Mas outra questão é fazer isso escavado, com eu fiz essas peças da exposição. A forma não muda, mas quando você sabe desse processo, sua compreensão da forma é alterada. Seu olhar mudar. É uma brincadeira com o olho: você está olhando a mesma coisa, mas você compreendeu diferente, compreendeu um processo. A exposição é também uma homenagem ao olhar.

Grande Budha foi o primeiro trabalho que você fez fora do espaço de um museu?

– Na verdade tem um projeto anterior, de 1982, que até hoje não fiz, mas acho que agora vai dar certo. É o último trabalho desse projeto. Estou até com medo de fazer, porque vai fechar um ciclo muito grande (risos). Você sabe como a pérola é gerada? Um corpo estranho entra na ostra, geralmente um grão de areia, e a ostra não consegue colocar pra fora. Então ela vai criando uma espécie de capa que envolve aquele corpo para que ele não a arranhe. É isso que gera a pérola. É incrível. De algo extremamente incomodo é gerada uma beleza. Há muitos anos, uma grande joalheria convidava artistas para fazer jóias. Me convidaram e eu disse que jóia não ia fazer, mas pensei nesse projeto que seria colocar um diamante dentro de uma ostra, gerando uma pérola com um diamante dentro. Não toparam, lógico. Acharam que a coisa estava maluca, que era melhor chamar outro artista que fizesse um brinco (risos).

E provavelmente fez.

– É. Mas achei essa idéia muito bonita e fiquei com esse projeto guardado. Agora, ele tem um conceito extremamente amarrado, que desce em um objeto já pronto. Essa passagem da idéia para a forma é, hoje em dia, mais difícil. Onde a idéia vira arte? Porque, até então, um bom conceito se for só um conceito, é quase um movimento publicitário: uma idéia boa atrás da outra. Mas um publicitário não é um artista. Arte exige outras questões que estão além de uma boa relação intelectual com ela. Tem um pulo do gato ali, uma viagem, que é inexplicável, que transforma o objeto em objeto de arte. Então, às vezes, a gente vai a bienais e é uma festa. Brinquedo para cá, para lá. E a gente, que sabe da coisa fica pensando: “O cara parou na metade!” Ou nem chegou na metade. Ou então tem a questão do bom gosto, do bom artesanato, onde você resolve tão bem a forma, que você espreme aquilo e não sai nada. Aí você se pergunta: “Cadê o pensamento disso?”

E onde você vai fazer o trabalho com as perólas?

– Eu não sei como são os lugares, porque trabalhei a partir de coordenadas. Peguei a coordenada de Camiri e rebati: procurei a oposição dela no globo e, depois, transformei em norte-sul. Cheguei à San Juan de Por Rico, ao Mar da China e à costa da Austrália. Depois inverti o sul com o norte, inverti os números e achei o quarto ponto na Islândia. Vou fazer três pérolas dessa – em um processo que leva dois anos – e devolvê-las ao mar. E tudo o que está aqui no museu, vai ser colocado em outro lugar. São quatro ações pelo mundo. A relação de escultura clássica vai se pulverizar novamente e aí morre, acaba tudo. Fica só pensamento, que é o que sempre foi.

Serviço

Museu Vale do Rio Doce

Antiga Estação Pedro Nolasco, s/n – Argolas – Vila Velha (ES). Tel: (27)3333-2484.

De terça a domingo, das 10h às 18h; às sextas , das 12h às 20h. Até 11 de fevereiro. Grátis.

[“A passagem da idéia para a forma, é hoje em dia, mais difícil. Onde a idéia vira arte?”]

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Ronaldo Brito - 2006

Texto para a exposição Camiri – Museu da Vale – 2006
e o livro Concerto para Encanto e Anel – Editora Casa 11 – 2011

 

A forma da exposição é a conjunção imponderável de dois fatores mais que diversos. De imediato, há a seqüência de vigas de ferro que sustentam um tanto precariamente dois cubos e um grande anel de mármore de Carrara, a tomar o galpão do Museu Vale do Rio Doce. À falta de um verbo adequado, digamos, soma-se a isso o deslocamento do artista até Camiri, pequena aldeia no interior da Bolívia, em função de sua (quase) perfeita correspondência com a situação geográfica do museu em Vila Velha: encontram-se a 23 graus um do outro, sobre a mesma latitude no globo, os mesmos 23 graus de inclinação em que a Terra gira ao redor do eixo do Sol. A operação escultórica, bastante concreta, que envolve o espaço do museu e a viagem casual mas esteticamente compulsória do artista, deslocando-se a Camiri, constituem, portanto, a forma aberta do trabalho.A notória dificuldade do texto crítico consiste em achar palavras para descrever e qualificar semelhante forma, tão material quanto intangível. A tendência natural é acumular negativas, constatar a inoperância do nosso vocabulário ao lidar com essa espécie de ação escultórica contemporânea. Temos de assumir desde logo, por exemplo, que uma dimensão invisível seja parte integrante da forma. E, de fato, não pode ser diferente, ou o artista não elegeria ìCamiriî o título da exposição. No entanto, é evidente que a formidável ação material dentro do galpão não visa apenas ilustrar uma idéia poética ñ ela é o que é ñ, o que inclui as graves decisões técnicas e estéticas de sua realização. Por outro lado, como dar a medida crítica exata à ida do artista a Camiri? Está bem claro, não se trata de turismo afetivo. Chamá-la aventura existencial, porém, parece-me um pouco forçado, anacrônico, convocar uma alta espiritualidade e uma exigência de liberdade a essa altura descabidas. Sem dúvida, alguma coisa dessa ordem investe-se na ética de trabalho do artista. Receio, contudo, que tanto aventura quanto existencial sejam termos culturalmente saturados.

Já a eventual solução mítica não é solução porque é parte do problema.
Qual o estatuto de mitologias pessoais no universo onipotente da ciência? Ainda que se suponha inerradicável certa dimensão mítica, básica, da sociedade humana, sobra inteira a questão de sua relevância para o processo estético contemporâneo. Independentemente da orientação espiritual de seu autor, uma poética contemporânea não se qualifica graças a esta ou aquela mitologia, sequer pelo grau maior ou menor de intensidade de seu componente mítico. Mitologias, em suma, acabam elas próprias, em larga medida, escolhas estéticas.

Sempre se pode, é verdade, recorrer à máxima duchampiana: não há solução porque não há problema. A frase é boa e tem sua parcela de verdade, mas emprega uma noção estrita, matemática, de problema. Porque, nesse sentido, um texto crítico não visa propriamente resolver o problema do trabalho (seria o equivalente a esterilizá-lo) e sim fazê-lo vibrar, propagá-lo no curso da linguagem verbal. A sua decodificação imprescindível, e sempre relativa, é inseparável de uma determinada estratégia expressiva.

O desafio é sustentar, no plano da razão crítica, a tensão específica desse enigma poético a envolver duas instâncias tão díspares. Tentar descobrir pontos de contato ali onde eventualmente elas se cruzem e se interpenetrem ou, quem sabe, atravessem uma o caminho da outra. Senão vejamos. Uma das principais características da instalação (reabilitemos por ora esse vocábulo um tanto desmoralizado) é impedir quase por completo a livre circulação num local onde ela seria natural e fluente. Mas, não. Com seus elementos pesados, a misturar o rude e o artístico, o cotidiano e o histórico, e apesar de seu trato arriscado com a lei da gravidade, a instalação curiosamente resulta, à primeira vista, bem pictórica: só podemos contemplá-la a partir de duas áreas restritas, não há como percorrê-la. E, no entanto, o artista viaja, toma um e mais
outro vôo até chegar a uma remota vila no interior da Bolívia. De lá, fotografa sucintamente o que está à sua frente. A foto vai se juntar à sua correspondente, também tirada sem maiores pretensões, num ponto preciso nas cercanias do museu em Vila Velha. Os dois cliques fecham o arco imaginário, a parábola de deslocamento que o trabalho descreve.

Porque, do contrário, nos alongaríamos ao infinito, deixemos somente registrado que o evento atual, no Museu Vale do Rio Doce, inscreve-se num plano poético mais amplo que prevê a realização de outros trabalhos, também a exigir o deslocamento do artista a meridianos predestinados do planeta. Sem intenções polêmicas, que teriam aqui uma escala social risível, devemos observar, contudo, que semelhante trajeto artístico é inversamente proporcional ao fenômeno da globalização cultural – trata-se de um projeto discreto e fragmentário de subjetivação, entre o ético e o estético, a empenhar certo modo de comportamento. O essencial é desde logo compreender que, hoje em dia, muito mais do que pela criação de obras e situações inusitadas, a arte contemporânea distingue-se pela qualidade singular de sua experiência de produção. De novo, para a crítica, a árdua tarefa é caracterizar tal experiência sem diluí-la em retóricas culturais mais ou menos politicamente corretas.

Essa experiência singular de produção determinou, há um tempo, que o desvio de 23 graus da órbita da Terra em relação ao eixo do Sol adquirisse, para o artista, o estatuto de Princípio de Composição. Colocando o dilema em termos escolares: depois do all-over de Jackson Pollock e do site-specific minimalista, respostas últimas, pós-cubistas, ao esquema composicional da perspectiva renascentista, o que fazer? A saída providencial do artista foi, partindo da planaridade e da serialidade antiilusionistas do minimalismo, recusá-las como padrão definitivo. Tudo afinal é composição, ele argumenta, nenhum sítio será assim tão específico que consiga abstrair o resto do planeta. Comovido por uma meditação dos antigos persas, que enxergavam no desvio de 23 graus da Terra em relação ao eixo do Sol a razão da errância cósmica do homem, Nelson Felix adota um partido aleatório radical – tudo o que fizesse, dali em diante, viria predeterminado por esse deslocamento. Eis aí, a meu ver, uma simpática variante pouco ortodoxa de perfeccionismo moral: corrigir o erro pelo erro.

Para efeitos produtivos, que é o que conta, a decisão intempestiva concede ao artista ampla margem de manobra. Todo acaso, todas as circunstâncias vitais e formais encontram um denominador comum, um agente poético catalisador. Extrapolando um pouco, o que seria, pelo visto, o próprio do humano, considero a idéia dessa errância cósmica um bom sólido geométrico imaginário – cubos e cruzes, vigas e anéis, todo o repertório formal do artista enfim passa a ter um núcleo de referência, passa a girar na órbita de influência desse sólido errante imaginário. Só por causa desse Princípio, dessa arché composicional, Nelson Felix pôde contar agora com a sorte: a latitude quase perfeita (segundo a lógica do erro genérico) do Museu Vale do Rio Doce, praticamente, lhe cai
do céu. O que de pronto, como pude acompanhar de perto, o levou a
visualizar, quase como uma fatalidade, a presente instalação. Ao cortar de lado a lado o galpão pronunciadamente longitudinal, uma seqüência de vigas paralelas, à altura e intervalos regulares (1,40 m), termina (ou começa, depende do ponto de vista) por atravessar os dois cubos de mármore (90 cm) que se situam, digamos, em ligeira conjunção; no outro extremo da sala, numa outra seqüência das mesmas vigas, agora transversais, inclinadas a 23 graus, a primeira delas ergue o grande anel de mármore (2,30 m de diâmetro).
A mesma força que move o artista a pôr literalmente mãos à obra, ao tornear ele próprio os dois cubos de mármore ñ um mais, outro menos vazado ñ,
o impulsiona até Camiri. Nada existe aí de heróico ou glamoroso ñ dispor-se a cumprir, na íntegra, a demanda do trabalho gera um estado de mobilização poética que, por sua vez, estimula o ânimo vital.

Uma considerável materialidade e uma certa invisibilidade compõem juntas o conteúdo da exposição. Muito esquematicamente, eu diria que, feita a experiência física da instalação, somos induzidos a percorrer o espaço imaginativo de suas ilações poéticas. Não estivesse a aura da palavra “viagem” tão degradada, sempre a figurar o pseudo-delírio ou o mero equívoco, poderíamos desfrutá-la mais à vontade. De fato, a viagem a Camiri é um componente material, embora oculto, da escultura da exposição, outra de suas vigas, associada aos dois cubos e, naturalmente, à emblemática forma circular do anel. O artista fez efetivamente a viagem, e com um propósito bem definido. Não é o caso de dramatizá-la; ela foi o que foi, isto é, parte constitutiva do processo do trabalho. Sem o deslocamento do artista a Camiri, vigas, cubos e anel ficariam,quem sabe, sem sustentação. Ou, ao contrário, talvez ficassem presos, estáticos, esquecidos do mundo da vida. Mas tudo isso só nos ocorre depois: como se apresenta concretamente, fazendo vibrar sua presença no espaço do museu, essa escultura aberta, expansiva, não conhece nostalgia.

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gravidade é um mistério do corpo

Nuno Faria em conversa com Nelson Felix - 2006

Ateliê do artista, Mury – Rio de Janeiro

Catálogo exposição Camiri – Museu Vale do Rio Doce

 

[Contrariamente a todas as regras, esta conversa não é conduzida. A conversa é um encontro, uma afinação de duas vozes, de dois tons. Surge ainda muito desafinada, estridente, mesmo, é afinal um conjunto de interstícios que encaixam melhor ou pior uns nos outros. De certa forma, participa de um processo de conhecimento longe do seu termo. Quisemos, eu e o Nelson, gravar estas palavras e deixá-las tal qual surgiram, quase sem edição. É, como o leitor (o ouvinte?) não deixará de notar, uma verdadeira conversa, sem outro protocolo que não seja o da curiosidade e da partilha.

Neste momento da nossa conversa, as palavras e todas as aflorações que elas trazem (as hesitações, as repetições, a gaguez) ainda soam necessárias. Falamos porque não nos conhecemos. Com o tempo, os intervalos serão forçosamente mais longos e o diálogo não poderá senão encaminhar- se para o silêncio.]

 

NUNO FARIA Nelson, eu diria que esta é uma exposição singular porque não é o corolário de vim processo, constituindo-se antes como abertura, como começo de um projeto. A esse propósito eu penso que poderia ser interessante que partíssemos do próprio convite da exposição como início de conversa.

 

NELSON FELIX Acho boa a sua proposta de abrirmos esta conversa com a idéia do próprio convite impresso. Porque ele é uma marca clara de todo este projeto, que começa com esta exposição e, ao mesmo tempo, ele traz alguma coisa dos trabalhos antigos, no caso Cruz na América. O convite é o seguinte: são duas fotos, numa eu estou no museu olhando para a direção oeste, a máquina está atrás de mim, também “olhando” para a mesma direção e tiro a foto. Depois, eu me desloco na Terra, na direção que olhava, sobre a mesma latitude a um ponto a 23 graus do museu, posiciono a máquina atrás de mim, novamente olho para leste e tiro outra foto. Então, eu estou a 2 3 graus do museu olhando para ele e depois no museu olhando para o lugar onde estive a 23 graus. A escolha deste grau é uma coisa antiga que sempre permeou o trabalho. E esse ponto a 23 graus do museu deu numa cidade que se chama Camíri, na Bolívia, e é o título da exposição. É o único momento em que fica claro esse meu deslocamento: no nome da exposição. Isso formou um pensamento que norteou todo o processo. No museu vão ser expostas duas esculturas que, juntas, são como uma, um único trabalho, e esse movimento meu fora dele. O museu é um “charuto” de aproximadamente 80 metros de comprimento por 10 de largura, um espaço bem próprio, onde eu entro praticamente com uma idéia. Essa idéia são vigas de ferro e cinco peças de mármore de Carrara que sofrem um deslocamento de 23 graus. Tudo no museu tem a direção que é determinada pela arquitetura e que em determinado momento sofre uma torção de 23 graus e a esquece. E como se você estivesse lidando com espaço e depois ignora o próprio espaço e passa para um local em que a questão é mais mental, onde ela se transforma, ou seja, eu me desloco. Então tem todos esses mármores, vigas, pesos, formas, as proporções, questões clássicas da escultura, etc. e esse deslocamento na Terra que eqüivale e soma a isto.

 

NUNO FARIA Pegando essa idéia de deslocamento, que é uma idéia que norteia a exposição e de certa forma os projetos que você vem fazendo nos últimos anos, eu diria que ela é muito próxima do desenho como campo expandido, a um tempo mental e operativo, projeção e materialização. Esse deslocamento é feito de vazios, de imaterialidades, de deslocamentos geográficos e de sentido, que são ligados à própria noção e à própria idéia de desenho; sua própria idéia de que há uma grande estrutura que é invisível, que é imaterial, que é abstrata, que desenha um conjunto de linhas e de pontos no globo que pode ser ligado a um conjunto de posicionamentos, de vontades, de projeções. Eu queria que você explicasse de forma sucinta esses pontos e essa estrutura, de forma que podemos entender depois de que natureza é o deslocamento. Por que chegar a esse número que são os 23 graus? Que é aparentemente subjetivo mas que é extremamente preciso.

 

NELSON FELIX É de natureza mental e subjetivo. Mas é rígido, ele volta constantemente no trabalho, e tem uma coisa que é anterior a qualquer escolha. Este ângulo é importante para o globo terrestre, é a angulação da eclíptica, inclinação do eixo da Terra com o do Sol. E levando em consideração que no sistema solar a posição de eixo “mais perfeito” seria o do Sol, e como a Terra tem essa inclinação, ela estaria, de um certo jeito, imperfeita 23 graus perante o Sol. Na verdade, não são 23 graus, têm pequenos movimentos que mudam a cada dois mil e poucos anos, etc., mas hoje são 23 graus e 27 minutos. Então eu resolvi usar 23 graus como uma marca dessa imperfeição que, na realidade, não é uma imperfeição, é uma beleza. Porque dessa imperfeição que gera tudo, as quatro estações do ano, o fato de a Terra ter sol, chuva, neve e desertos, ou seja, tudo. Então é uma feliz imperfeição, e um dia comecei a pensar: entre a feliz imperfeição e a perfeição pura, qual seria a distância onde isso daria. Os chineses têm uma coisa muito interessante, eles desenhavam muito com aquarela e nanquim. Quando eles achavam que a pintura estava extremamente perfeita eles faziam um erro, deixavam cair um pingo, faziam um traço propositadamente errado. Achavam que a perfeição total” não era correta, mais do que isso, achavam que a perfeição total não era da natureza do ser humano. Quando eles olhavam alguma coisa e ela estava extremamente perfeita os incomodava. Eu acho que isso não é só dos chineses, é da alma humana. Mesmo quando você passa por uma arte fascista ou uma arte, assim, escatológica, de certa forma é aquele jeito do artista de ver aquela perfeição na escatologia. E quando você chega e vê que tocou num trabalho que não tem nenhum erro, você faz um erro. A exposição tem um círculo, um aro, uma peça de mármore, que eu acho que traz um pouco dessa marca também. E uma peça de mármore grande, cerca de 10 toneladas, dois metros e 30 de diâmetro; teve que ser feita fora do país para que ela fosse de um bloco único, milhões de dificuldades que o tamanho da peça criou. Ela é simples, o manusear dela que é complicado. Mas o seu espaço interno é tão perfeito, há uma situação no círculo que existe no seu interior que mentalmente foi difícil conviver com ele antes de sua realização. A exposição fala um pouco disso e desse deslocamento em 23 graus, que é isso também. Você está aqui comigo em Mury, em casa, e logicamente quem chegar aqui sente que um dos melhores prazeres que uma pessoa pode ter aqui é o tempo ser interrupto. Então, os trabalhos saem muito disso, pequenos pensamentos que vão se plastificando e evaporam e vão ficando objetos plásticos. Eu acho que esta exposição talvez seja um dos momentos em que agarrei isso com mais força, porque estou lidando com um espaço impositivo, onde existe só uma idéia,, como se afunilasse o pensamento. Na realidade, a primeira vez que eu toquei neste deslocamento foi em 1989 com as peças de grafite. E a solidificação deste pensamento em vários anos, e que em vez de falar quinhentas mil palavras, virou um trabalho só para um espaço de quase 800 metros quadrados.

 

NUNO FARIA Você costuma afirmar que há sempre uma mesma idéia que, no fundo, é resolvida ou formalizada de formas diferentes. No fundo, aqui temos duas coisas: uma exposição, um espaço concreto resolvido de forma muito específica, muito precisa, e depois temos outro espaço, mais amplo, que é meta-representado por aquele elemento simples que é o convite, que enuncia que dois pontos num espaço definem uma distância, uma abertura, um espaço abstrato. De que forma esses dois momentos agem um sobre o outro, e de que forma um pode representar o outro e vice-versa?

 

NELSON FELIX Interessante isso. Por acaso a gente estava conversando ontem vindo para cá e você me fez uma pergunta que eu ainda não tinha pensado e que é essa a questão. Conversamos sobre três pontos, três momentos, um é o próprio espaço do museu, a exposição no próprio espaço do museu, onde existe toda essa coisa dos pesos, dos volumes, da materialidade, do material, que são muito próprios das esculturas e é a linguagem clássica dela. Todas as linguagens clássicas da arte adquiriram um saber no pensar e no fazer do mundo contemporâneo de alto grau de refinamento e ficaram ainda mais densas. O artista, hoje, tem muito claro a sua “localização” no mundo. Comungo com isto, uso Carrara por isso, e busco uma sutilidade e uma adversidade entre a tradição das peças de mármore e o ferro, de elas serem objetos feitos de blocos únicos, uma linguagem muito própria da escultura. O Cubo não foi colado, ele foi escavado, assim como foi escavada qualquer estátua. Depois tem também a questão do museu, e que é resolvida com uma obra. Desloco as peças 23 graus uma das outras, aí eu também me desloco, os mesmos 23 graus para criar uma ligação com elas, mas assim saio desse espaço; acho até que eu o amplio, e levo o espaço do museu e a forma das peças para outra coisa; este deslocamento, para mim, existe e é tão material quanto elas. Em nenhum momento na exposição, eu tenho uma foto sobre isso, eu não tenho nada sobre isso além do título da exposição.

 

Duas situações ímpares, que estão ligadas pelo ato de se deslocar no mesmo ângulo. É aquilo que eu estava lendo outro dia em Merleau-Ponty e ele citava um outro autor, que não me lembro, que era sobre os deslocamentos horizontais. É aí onde estamos acostumados a perceber nossos deslocamentos, onde temos a idéia total das distâncias, dos tamanhos, das proporções. Ele dava o exemplo da Lua, quando nasce no horizonte, parece enorme e aí vai para o meio do céu e parece pequena. Por quê? Ele falava que o deslocamento vertical não é da nossa natureza, ele é de natureza mais mental. Quando olhamos a Lua e vemos uma árvore, uma montanha, temos uma noção melhor da Lua. Então, são esses dois deslocamentos das peças e meu e mais essa coisa, sem foto, sem nada, que ficam presentes mas que evito a integrar no olhar da exposição. Esse deslocamento vai ficar puramente mental e mentalmente impregnar a forma. É nessa presença evitada no espaço que a forma ganha algo.

 

O museu tem dois níveis de piso; tem um salão e um outro espaço menor com um piso que fica a uns 60 centímetros acima. A sequencia das vigas vai ignorar esse desnível; foi um ganho; de repente, observei: quando você pega o seu horizonte, que está no nível do chão, e o levanta a 1 metro e 20, você traz o seu horizonte até mais para o horizonte, porque ele vai estar quase à altura do olho e evidencia mais a presença de deslocamento no museu; o deslocamento físico é extremamente evidente, mas impedido pelas próprias vigas, e tem o outro, o do espaço externo Camiri-Vitória. Essa dicotomia me parece tão adversa que, no futuro, quando se sabe dessas informações, elas se juntam, se completam.

 

NUNO FARIA Uma das informações que tenho acerca desse projeto é aquela que ele coloca: a complexidade acerca do lugar de um modo geral e do lugar do museu de modo particular. O que acontece e que é enunciado de uma forma elíptica no convite da exposição, que é o primeiro sinal que o público recebe sobre a exposição, é uma ligação entre dois ou mais espaços, neste caso entre dois espaços. Depois, o título da exposição situa-nos num lugar específico, precisando a noção de distância que existe entre esses dois espaços, e ajuda-nos a perceber que a exposição se passa num âmbito mais alargado que o estrito espaço físico do museu. Aquilo que eu queria que você nos

ajudasse a clarificar é a natureza dessa distância, a natureza deste lugar extenso, deste lugar que você define com esta exposição, ou seja, o espaço que se estende entre o ponto geográfico do museu e o ponto definido pelo título da exposição que se refere a uma cidade na Bolívia.

 

NELSON FELIX Vamos começar pelo nome. O título “Camiri” é o nome da cidade que está na mesma latitude que Vitória, no Espírito Santo, a 23 graus em direção a oeste. Esse ponto, na realidade, já existia no meu trabalho. Quando houve o convite para expor, eu já estava pensando em fazer um trabalho em Camiri. Em 85, idealizei o Grande Budha, para o Acre; nos anos 90, veio a Mesa, o implantei no final de 99, depois fiz os dois trabalhos do Vazio coração, um no deserto do Atacama e outro no Ceará. Esses quatro trabalhos geraram uma cruz, que é um trabalho do qual a Glória Ferreira e eu conversamos muito, Cruz na América. É formada por esses trabalhos, que são individuais, mas ao mesmo tempo, são como se fosse um só. O centro dessa cruz é próximo a essa cidade chamada Camiri, ou seja, há alguns anos existe esse ponto no meu trabalho e sempre pensei em fazer alguma coisa lá. Em um determinado momento achei que não ia fazer nada, porque se fizesse ficaria muito óbvio e fecharia a cruz. Quando surgiu o convite para Vitória, eu conversava com o Ronaldo Brito e falava que em Vitória acontecia sempre algo novo. Um dia percebi que Vitória e Camiri ficavam sobre a mesma latitude e eqüidistantes na mesma angulação que eu sempre usei. Foi aí que surgiu o trabalho mesmo, que é ir lá em Vitória e fazer uma exposição de escultura e ao mesmo tempo ir a esse ponto. Outro dia, estava falando com o Ronaldo que, na realidade, não me desloquei para esse ponto, já estava nele, já estava em Camiri quando Vitória me apareceu. Então, pensando sobre essas duas questões, me ocorreu esse conceito, onde nós vamos ter um trabalho feito especificamente para um museu, que poderia ser cunhado de site speciãc, mas, na realidade, vou para um trabalho que já existe, antigo. E uma atitude que eu posso fazer com qualquer trabalho que eu venha a realizar no futuro; traz outra dimensão ao espaço do museu, coisa mais mental, mas é uma exposição de esculturas. E os 23 graus também já estava presente no trabalho, na “Série Árabe”, no Grafite. O trabalho, sem que eu queira, está sendo realizado sobre trabalhos anteriores, realmente eu não fiz nada, eu só achei. Se eu não me engano, acho que é o Cildo que fala que o artista garimpa aquilo que já conhece.

 

NUNO FARIA Trata-se de um projeto vivido que é difícil de descrever, de verter em palavras. Eu diria que a sutilidade do projeto está precisamente em que o seu modo operativo se baseia na repetição.

 

NELSON FELIX É, as coisas voltam, diferentes, mas voltam.

 

NUNO FARIA E isso leva-nos àquela sua idéia de que não fazemos mais do que reestruturar, redefinir, reformalizar uma idéia que volta sempre e com a qual nos debatemos.

 

NELSON FELIX As vezes pode ser escultura, às vezes eu posso me enfiar no meio do mato, às vezes eu posso fazer operação num cachorro. A idéia, ela volta sempre, o processo de fazer é que é diferente, é onde estaria a criação, é como se eu desde cedo soubesse o que fazer. Eu só fui me certificando.

 

NUNO FARIA Certo. Mas apesar de tudo, e voltando à questão da repetição, ela não se define de forma alguma pela ausência de risco. Ao contrário. Eu gostaria que você retomasse as duas obras de que falou em que essa questão do deslocamento dos 23 graus se coloca e, a partir delas, falasse da questão de como as formas se definem a partir do vazio, de como os percursos se definem pela distância que é o intervalo entre dois pontos, de como a escultura é tanto a corporização de uma ausência como define de uma forma muito clara uma espécie de ação do corpo e da mente — uma espécie de percurso, um gesto. Acho que podíamos voltar um pouco a essas duas obras que são agora retomadas, são refeitas, são reconfiguradas, digamos.

 

NELSON FELIX Eu acho que em 1988-1989 realizei o Grafite. Fiz ele por uma certa implicância com a composição e um incômodo que a imposição do site specific estava dando. Eu lembro que uma vez teve uma Bienal, e a curadora- adjunta me ligou e falou: “Você vem aqui e vai fazer um trabalho que é um site specific”, eu falei para ela que era um prazer receber o convite do curador da mostra, que uma pessoa extremamente importante na minha vida, etc. e tal, mas que levaria esculturas. Aqui houve um momento de fazer instalação, outro de site specifícs, até de pintura já houve, e acho que a arte não é da natureza da certeza. E quando uma linguagem se sobrepõe à outra, cria-se uma certeza, e essa certeza se dilui num futuro próximo. Em arte, se há alguma facilidade… é melhor que não haja. Essa certeza me incomodava, e comecei a me perguntar por que me incomodava. Aí eu me lembrei da conquista do pessoal dos anos 60, 70, a coisa do establishment americano, a solidificação que tinha o mercado americano, a solidificação que já estavam tendo os museus e a necessidade de esses artistas saírem porque aquilo estava sufocando a boa arte. Então eles foram para o campo, etc. Hoje em dia, isso é fácil de fazer. E virou uma composição, você olha para a paisagem, você realiza um trabalho para aquela paisagem, para um museu, uma galeria e faz um trabalho específico para aquele lugar. Sem o drama daqueles anos; você somente compõe um trabalho para aquele espaço. Acho que o diálogo no espaço é um outro diálogo, a composição às vezes prejudica, amortece. O diálogo com o espaço não é só físico, ele é de origem extremamente sensível. E aí não pode ter muita teoria que o cerceie ou o alimente; ele é uma linguagem mais da relação de sensibilidade, é uma linguagem do desenho. No fundo, a relação com o espaço é a mesma relação do desenho, não há distância entre o ato mental e a mão, no desenho não há essa distância. Você começa a desenhar e sabe tudo o que vai fazer, uma figura aqui, um quadrado ali, etc., e começa a desenhar a figura aqui, o quadrado ali, mas tem um momento em que você começa a desenhar mesmo, é quando já não está mais preocupado no que vai fazer. Aí, a mão e a cabeça se tornam uma coisa só. Essa é a mesma relação, inclusive, da escultura com o espaço. Alguns artistas, como Brancusi, tiveram isso com uma potência enorme; várias esculturas de Brancusi são tão densas que, pelo contrário, comem o espaço. Você começa a observar aquele objeto e você já não percebe mais o espaço, você só olha o objeto, só o objeto. Esquece, mais ou menos, onde é que você está. A relação com o espaço, de um certo jeito, pode ser essa. Pensando sobre isso: às vezes quando você tem alguma coisa para compor pode prejudicar. Agora, é impossível, como artista, não fazer composição, no sentido conceituai, qualquer ato de escolha que fizer é uma composição. Percebi a impossibilidade, no conceito, mas não no plano sensível, é como se quisesse viver e resolvesse deixar de respirar.

 

Bem, fiz esse trabalho em 88; era exatamente para me obrigar a fazer uma peça em que a idéia era composicional. A instalação dela no espaço seria onde eu “achasse” melhor. São duas hastes de grafite e uma delas é colocada exatamente na posição do eixo do Sol. Eu calculava – não era nem eu, era um astrônomo do Observatório Nacional que me ajudava; no momento em que abrisse a exposição ele calculava onde estaria o eixo do Sol. Porque depois a Terra também giraria e essa posição saía, e eu instalava essa peça, ela ficava totalmente díspar no espaço, torta; sendo paralela ao eixo do Sol, para mim ela estava certa, o espaço que era torto. A outra haste colocava para compor essa peça com o espaço. Foi um bom exercício.

 

Depois, em 2001, fiz uma exposição nas Cavalariças do Parque Lage, chamada “Série Árabe”, quando eu voltei novamente a essa questão dos 23 graus. A arquitetura das Cavalariças é extremamente imponente; ou me harmonizava ou ignorava essa arquitetura. Queria que fosse uma exposição de escultura, no caso foram três esculturas, não queria instalação. Acho que esta exposição agora em Vitória tem muito da “Série Árabe” – peguei as três esculturas, para evitar qualquer arrumação com o espaço, as alinhei e as torci 23 graus. Quando eu as torci, elas não couberam mais no espaço, houve peça que tive que furar a parede para que permanecesse ainda no espaço, e as de ferro se deformaram pelo deslocamento do peso na nova posição. Foi o segundo trabalho que eu fiz sobre os 23 graus. E agora, no museu, é o terceiro, e eu acho que é o mais abstrato de todos eles.

 

NUNO FARIA Quando você fala em composição eu responderia com articulação – articular, num sentido muito preciso. Aquilo que você faz com o seu trabalho, que não é de certa forma diferente da sua vida, é romper com uma certa ilusão entre, digamos, unidades. Nada é único. E daí, julgo eu, o interesse pelos espaços vazios, espaços no cérebro, os vazios do cérebro. Não há, jamais, no seu trabalho, um ponto único, temos sempre a convergência de dois pontos, existe sempre uma simetria: a mão esquerda, a mão direita, os membros, o coração que se divide em dois. Há uma espécie de rompimento com a unidade, um rompimento com a univocidade da vida e da existência; e isso tem implicações diretas sobre a forma como você descobre, explica, age sobre as coisas no mundo. Ora, eu acho que no seu trabalho há um desejo, uma necessidade de articulação e é pelo desenho que essa articulação é operacionalizada.

 

O desenho traz consigo uma espécie de clarividência não estruturada (etimologicamente desenho é desígnio), uma intuição imemorial, inata ao ser humano, que lhe permite ligar as coisas. E depois é algo materializado ou que está nesse constante vai-e-vem entre a materialização na folha ou no pensamento ou depois no seu desaparecimento, quando deixa de haver necessidade de ter uma marca, quando as coisas já são claras.

 

Assim sendo, eu acho que no seu trabalho não há composição no sentido clássico da palavra, há uma articulação entre diversos elementos. Isso é o que o torna a um tempo tão simples e tão complexo. Simples na sua presença, no seu aparecimento, e complexo na sua verbalização. Como pôr em linguagem outra linguagem? E daí que acho que a palavra é um meio privilegiado, a palavra falada mais do que a escrita, para podermos tentar uma aproximação ao seu trabalho. Desse ponto de vista talvez fosse interessante conseguirmos entender as várias formas de desenho, as várias formalizações de desenho que temos neste projeto, o que eqüivale a dizer no seu trabalho em geral. E isso dá-nos diferentes escalas, diferentes naturezas, dá- nos a reflexão e dá-nos a ação, dá-nos o percurso concreto na natureza e dá-nos o espaço abstrato representado pelo globo terrestre. Dá-nos o traçado de percursos sobre o mapa. Dá-nos escultura e dá- nos o desenho. E um conjunto, há um vai-e-vem entre diferentes escalas que é sempre mediado pelo corpo e depois o duplo desse corpo, que é o corpo de quem faz a experiência da obra. Concorda que é no desenho que esses elementos confluem ou é dele que emanam?

 

NELSON FELIX Cada encontro de pessoas desperta situações. Este nosso encontro está me despertando duas coisas. Uma foi agora, neste exato momento, quando você fala da composição e da articulação. Acho que você está mais próximo. Realmente não é tanto a composição. Existe esse emaranhado, essa trama em que o trabalho foi se construindo, que também precisa de um tempo, tinha que ter pelo menos uns 15 anos para que você tivesse uma quantidade de trabalho para que eles possam se articular. É uma amálgama de trabalhos. E que se você for ver a implicância com a composição, na realidade, é essa articulação que depois viria a gerar isso. Este encontro está valioso nesse sentido, muitas vezes passa tempo pensando uma coisa e de repente você vê um detalhe a mais, e esse detalhe a mais norteia toda uma visão. Por isso foi, por um lado e por outro, que sempre me achei desenhista; meu jeito de pensar e ver o mundo, meu processo de pensar não é um processo discursivo, verbal. E um processo plástico e, acima de tudo, de desenho. E espacial, mas é um espaço feito com linhas, cordas, fios. O espaço é tangido por quase nada, por linhas, onde tudo se liga. Então, esbarrar com você, que vem estudando desenho há tempo, é para mim um bom encontro, preciso.

 

NUNO FARIA A estrutura do seu trabalho usa determinadas figuras de linguagem para criar uma malha discursiva, um conjunto de meta- discursos. Há uma primeira dimensão, que seria uma dimensão global, que tem a ver com seu lugar no mundo (os pontos que você determina no mapa), e uma outra que se detém sobre o pormenor, sobre as possíveis e necessárias ligações entre esses pontos, que é de ordem relacionai (a pormenorização propiciada pelo desenho, pela passagem da linha). Há um vai-e-vem constante, uma constante mudança de plano perceptivo e de escala física e simbólica. Aquilo que foi vertido em linguagem puramente plástica e que podemos experienciar na exposição é, por sua vez, retomado num plano puramente abstrato, ou seja, através da delineação de uma malha de coordenadas que vai de uma certa forma estruturando e possibilitando o aparecimento de um discurso. Por complexa que a pergunta pareça, a minha tentativa é de tentarmos mapear esse conjunto de relações que o seu trabalho propõe e de que o seu trabalho se alimenta.

 

NELSON FELIX Como assim? No sentido específico deste trabalho novo ou no sentido mais genérico de como eu lido com esse pensamento e materializo, é isso?

 

NUNO FARIA Nos dois. Um nasce do outro e vice-versa.

 

NELSON FELIX Exatamente isso. Um se alimenta do outro e às vezes eu não sei por onde começar.

 

NUNO FARIA Eu acho que poderia ser interessante que fôssemos da generalidade do processo para o projeto final.

 

NELSON FELIX Quanto a isso, às vezes eu não sei como começa. As vezes, eu olho uma coisa, me deparo com uma coisa e essa coisa… Para começar, acredito em inspiração, acredito em musa, acredito em tudo isso. Sou quase que um grego, eu acho que nasci um pouco fora do mundo contemporâneo, mas busco me encaixar nele e por este esforço, o amo, mas musa para

mim é sine qua non, elas sentam do nosso lado o dia inteiro. Eu as invoco constantemente. Por exemplo, os trabalhos dos “Vazios”, que começou pelo Vazio cérebro. Quando eu me deparei que o cérebro é cheio de buracos, isso me ficou na cabeça. E às vezes surge pelo lado plástico, de observações plásticas. As vezes posso estar usando órgãos, ossos, que no caso são cópias, são retratos do real, mas o jeito de articulá-los no espaço é um pensamento concreto. No fundo, se a linguagem não for plástica, realmente não me interessa. E o peso do desenho, o peso da relação com o espaço, quando o desenho se torna escultórico, é fundamental para mim.

 

NUNO FARIA Precisamente entre a corporização do seu trabalho e a enunciação do discurso, existe um intervalo, um vazio, que é um dilema. Também esse lapso, esse intervalo de 23 graus que se formaliza a partir daquilo que você dizia ser a relação do eixo da Terra com o eixo do Sol. Este projeto é uma coisa claramente assumida como o exato intervalo em que se concretiza o seu discurso e é precisamente este espaço que eu gostaria que nós explorássemos, por ser precisamente esse espaço que está entre o lugar do museu e o lugar em que você se desloca para fotografar o museu, exatamente neste instante.

 

NELSON FELIX É aí que está o trabalho. Foi uma pergunta muito precisa. Aí está tudo que faço, acho que você definiu o momento, mas não vamos conseguir definir o processo.

 

NUNO FARIA Não, não vamos.

 

NELSON FELIX Não vamos. E tem mais: se eu começar a teorizar muito, ele perde. E igual tentar agarrar um sabonete: cada hora você o segura melhor, mas tem uma hora que ele vai acabar, porque acabou o sabonete de tanto você tentar agarrá-lo. Ele acabou e ficou no ar e ficou todo o percurso de tentar agarrá-lo e você nunca o agarrou.

 

NUNO FARIA Como tentar descrever o movimento do vento na árvore ou a folha caindo.

 

NELSON FELIX A gente pode conversar sobre ela, tocá-la e deixar o espaço para que isso aconteça no outro e na gente mesmo. Como a passagem do desenho, mesmo se você tentar definir o que está acontecendo na sua cabeça, o que está acontecendo na sua mão, você pára de desenhar. Você não pode ficar pensando, a sua cabeça está vazia nesse momento. E você tocou num momento do trabalho que é por aí, não é realmente verbalizável, é visual, é de percepção abstrata, outro princípio inteligente.

 

NUNO FARIA Nelson, você há pouco, no decurso da nossa conversa, se referiu aos quatro pontos, os quatro projetos que constituem o Cruz na América, que, de certa forma, configuram um conjunto de coordenadas no espaço, no mapa, no globo, que depois dão origem a um ponto central aos quatro. E é a partir da descoberta desse ponto, desse lugar de confluência, que começa todo o projeto no museu em Vitória e que se estrutura já aquilo que se seguirá posteriormente. E portanto dessa conceituação de pontos que eu queria que você falasse.

 

NELSON FELIX Foi uma coisa assim, como te disse antes, eu tinha feito esses quatro trabalhos da Cruz na América. Convivendo com as coordenadas do ponto central desta cruz, vieram-me duas atitudes; uma física, busquei a oposição dele no globo, e outra mental, onde eu modifiquei o sul para o norte. Nisso construí quatro pontos no globo, e estava nesse processo quando me veio o convite para expor no museu; afinei o que já estava concluindo e surgiu toda aquela história de fazer este trabalho no museu — por ter esse deslocamento e por ter essa interferência forte dentro do museu no sentido escultórico do termo, quase que uma instalação, quase que um site speciâc e de um certo modo de um espaço que é meio ampliado, a partir do momento que eu saio. Vitória e Bolívia dão a síntese de todo o projeto futuro. Tem dois pontos que eu me desloco, faço trabalhos duplos, emaranhados, que são esses da América do Sul, Bolívia e Vitória, e na América Central, México e no mar, cerca de San Juan de Porto Rico; e outros dois pontos opostos, que são no Mar da China e na costa da Austrália. Depois, achei que, como as coordenadas são espaços abstratos, nelas não existe a paisagem, poderia então seguir este conceito até o fim e buscar algo totalmente aleatório. Modifiquei sul com norte, modifiquei os números, deu na Islândia. Comecei a desenvolver este trabalho, buscar a poesia nestas gratuidades de ações, de atos, em contrapartida com o rigor das decisões na formalização das esculturas que fosse desenvolver. Talvez a única coisa que não esteja dentro dessa primeira atitude agora em Vitória é o ato de as peças se tornarem quase que perdidas, “abandonadas”. Quando eu as coloco no mar, por exemplo, quando eu tenho a atitude de ficar fazendo uma escultura, cortá-la, lixá-la, quatro, cinco, seis meses e aí depois vou a um determinado lugar que nem conheço como é, e a deixo. Gosto disso, vejo uma poesia quase tão simples como sentimentos, palavras e papel, agora de outra natureza, mais densa, pela presença da matéria. E engraçado, as coisas são muito simples, as peças muito simples, mas o processo mental que foi norteando começa a ficar extremamente complexo.

 

NUNO FARIA Mais uma vez esse gesto, essa ação de jogar a escultura no mar, é meta-representativo do próprio processo. Esse gesto, que é o culminar do fazer artístico, do fazer a peça, é o gesto que paradoxalmente a traz mais claramente para o campo da visibilidade – visibilidade entendida como um tema mais abrangente do que o próprio olhar.

 

NELSON FELIX De um certo jeito, é exatamente esse mesmo conceito resolvido pelo fazer. Porque o cubo, do Vazio sexo por exemplo, teve um fazer enorme, foram cinco meses de trabalho constante. É um fazer interessante, porque ele tem uma visualidade minimalista, depois, o ato de ficar realizando o cubo com as mãos, cortando, lixando, etc., não tem nada a ver com o minimalismo, mas é extremamente repetitivo, digamos, minimalista. O processo de corte é rígido, apesar de manual, é rígido e repetitivo. Então, todo dia, durante cinco meses, eu fazia a mesma coisa que eu tinha feito no dia anterior, era rara a diferença. Eu cortava, virava o cubo, cortava, cortava outro lado… esse fazer tinha que ficar impregnado nele, esta peça necessitava disto, o ato de fazer era um conceito dela, necessário nesta exposição. Deparei-me com o quanto isso teve valor para mim. Por exemplo, a escultura renascentista. E lógico que houve ganhos conceituais, Donatello faz aquela passagem toda do gótico e faz a ligação com a Renascença, ele traz um movimento conceituai de noção de espaço, noção humanitária, até a própria figura começar a ganhar uma expressão, deixar de ser comprida. Depois Michelangelo pega Donatello e segue, mas uma grande coisa ali era a beleza constituída no tratar da pedra, no tratar do bronze, no tratar da madeira. Quer dizer, tem toda uma questão conceituai nova de como lidar com própria estatuária, com o próprio espaço, nesse momento das navegações, do mundo redondo, etc., mas o fazer ficou. Depois, outros dão uma “chutada neste balde” e os dadaístas colocam uma pá de cal. Aprendi aí, lá e cá, é o nosso tempo, o pensamento como valor. Cheguei a um ponto em que o próprio conceito do fazer teve valor, um fazer que não aparece porque a forma é simples, mas me envolveu todos os dias, cinco meses, acho interessante. Agora, neste projeto, o ato de realizar e depois abdicar é poesia, é vida; uma poesia que não vem dos contemporâneos, talvez venha dos modernos. Não é bem um abandono, é um encontro, onde fica a essência. Quando você tem algo plenamente, você sabe que nunca vai perdê- lo, pois ele já é seu, está no seu íntimo. Isso me veio da poesia, não de um processo conceituai, puro. Eu aprendi com os poetas. Tem o próprio Klein, os imateriais do Klein, de um certo jeito tem uma certa harmonia com isso, mas acho que isso traz para o fazer a própria matéria no sentido clássico de um objeto plástico, clássico mesmo, mais do que clássico – mármore, e mármore de Carrara, e aqui neste trabalho o mármore é escolhido propositadamente como elemento conceituai, quer dizer, é o mármore que contém uma tradição. Nossa experiência escultórica vem dos gregos e dos romanos. Então tudo isso, todos esses pensamentos vão se juntando nesses objetos, e aí você os abandona?

 

NUNO FARIA De uma certa forma é curioso que haja tantos lugares, tanta precisão na forma de criar o lugar, de defini-lo, e que, ao mesmo tempo, no seu trabalho haja uma atopia constante, não é?

 

NELSON FELIX Se abstrai.

 

NUNO FARIA Qual é o lugar do seu trabalho?

 

NELSON FELIX Exatamente é esse abandono. Na realidade, não é bem um abandono. E quando você se torna totalmente um com aquilo, onde

a presença física já não é mais o centro. Voltando a Donatello, eu não vejo muito bem aquele David, a Madalena; vejo eles e todo um processo de pensamento que ele detonou ali, toda uma mudança de mundo do qual ele fazia parte, toda a mudança de noção do espaço, um espaço anterior a um espaço descartiano. Todo o mundo se abrindo, está tudo ali em Donatello. Assim como hoje entramos em um espaço com trezentas mil novas dimensões, situações extremamente mentais. Há uma revolução no espaço, a compreensão do espaço hoje é incrível, o mundo é extremamente pequeno ou enorme, lidamos com isso, quase tudo que olhamos é exatamente o contrário ou mais profundo. Esse é o mundo em que vivemos. São esses espaços e essas informações entrando e culminam em atitudes quase que clássicas e que se pulverizam, que terminam num pensamento, que é o que sempre ficou. O objeto só acaricia o olho, mas como acaricia.

 

NUNO FARIA Há uma parte muito importante desta exposição: um conjunto de desenhos que você fez a partir de uma série de gravuras antigas, de sua autoria. Esses desenhos esboçam e documentam, embora não documentem propriamente nada, as várias etapas do processo, o movimento do pensamento, eu diria, que conduziu à exposição. Quero falar um pouco sobre esses desenhos, sobre esse processo mais ou menos híbrido entre dois planos, o plano da gravura e o plano da extensão, das várias matérias físicas e simbólicas que usa nos desenhos.

 

NELSON FELIX De certo modo não foi muito pensado, foi natural o surgimento desses desenhos. A coisa mais óbvia possível; estava em casa sem papel para desenhar e utilizei os papéis dessas gravuras, porque elas eram muito brancas. Quando comecei já estava imbuído da formação desse projeto, a idéia da exposição já estava firmada. Foi meio que desenhando, meio que querendo anotar o que eu pensava, que eles nasceram. Tinha dias que me dava vontade de transformar o desenho em desenho mesmo, olhar para ele como um desenho para ser olhado, e tinha dias que era pura anotação, alguma idéia que queria guardar. De uma certa maneira foi diferente de tudo que tenho feito, nunca anotei nada, pois parto da idéia que se o que estou realizando tem força não esqueço. Lógico, por ser várias coisas acontecendo ao mesmo tempo, senti necessidade disso e eles foram se formalizando. Me deram muito prazer.

 

Apesar de a vida toda eu ter sempre desenhado, mas como não pensava em mostrá-los, desenhava muito livre . E essa coisa de ir e voltar e como o desenho não exige esforço físico, como nas esculturas, então os dias tinham uma concentração ininterrupta, própria daqui, que não sentia tão intensa há algum tempo, essa coisa de sentir os dias longos, com a cabeça meio vazia. Olhar algo para ver se ele está sendo olhado, estes desenhos são isso.

 

NUNO FARIA Na minha opinião, os desenhos têm duas coisas que detêm o olhar e sobre as quais se deve meditar. Por um lado, você usa um papel de uma série de gravuras que você tinha feito e que tinha em casa, não é? Portanto, por necessidade. Não encontrou outro papel e usou aquele que tinha. Isso dá logo toda uma história, configura logo uma memória para aqueles desenhos. Aqueles desenhos não se desenvolvem a partir da folha branca, imaculada. Quando são feitos, há a memória das várias camadas de tempo, das decisões tomadas, dos erros, dos arrependimentos, das afirmações. Não são só o tempo do desenho, são já essa camada de cera na superfície, uma superfície que já foi, digamos, impressa, que já tem uma história. E essa história, por outro lado, é uma história que tem um corpo. Aquilo que se encontra impresso sob os desenhos são órgãos e, portanto, existe já registrada na superfície essa memória do corpo, essa coisa orgânica. São, então, desenhos feitos sobre uma superfície com vida e, ao mesmo tempo, sobre um trabalho passado que se transforma em uma coisa outra. E, por cima disso tudo, alguns deles caminham dessa organicidade para uma dimensão sexuada, digamos assim, os órgãos que já lá se encontravam gravados como que ganham relevo, como que se corporizam. Redundantemente ganham um corpo. E essa corporização, em alguns dos desenhos, é dada por objetos em prata, que considero muito misteriosos e muito belos, que são moldes de partes do corpo, e que surgem do desenho como uma excrescência, dando relevo ao lado gráfico que já existia neles.

 

NELSON FELIX É como se fosse uma superposição de corpos, órgãos sobre órgãos.

 

NUNO FARIA Para mim é extremamente misteriosa essa superposição, essa convivência de tantos tempos, de tantas camadas e de tantas representações, essa representação dessa parte de corpo, dessa parte da consciência. Quer falar um pouco sobre essa dimensão?

 

NELSON FELIX Quando eu coloquei os objetos houve uma escolha antes de os colar, mas não tinha reparado, não tinha me tornado consciente que antes de colar esses objetos, com exceção da palma da mão – que é parte do corpo também —, são órgãos, e ossos… Eu não tinha reparado nessa superposição. A gravura feita de órgãos e os moldes feitos de órgãos. E bom quando a gente descobre por outra pessoa algo que a gente não percebeu. Fazia muito tempo que não desenhava com uma sensação de liberdade tão grande.

 

NUNO FARIA De prazer físico, talvez.

 

NELSON FELIX Lembro que antes me perguntavam o que fazia, onde morava, etc. e por ser artista achavam perfeito eu viver no campo. Eu pensava, “gozado dos momentos no ateliê, mas posso trabalhar em qualquer lugar”, morar aqui ou não morar aqui não interfere no trabalho. E acontece que este projeto de agora não teria nascido se eu não vivesse aqui. A sensação de quase não fazer nada e ao mesmo tempo estar fazendo era intensa, é própria da sedimentação destes últimos anos aqui só. Esses desenhos foram frutos desses dias, vazios num sentido e totalmente contínuos num outro. Esculturas, desenhos, ações, viagens, vigas, pesos, etc., uma amálgama de situações que eu me propus a viver ao mesmo tempo, desde de um papel ao espaço de uma exposição, ao espaço no globo, onde tudo acontecia ao mesmo tempo na cabeça.

NUNO FARIA Isso é muito curioso. Penso que seria ilusório julgar que esses desenhos dão informação inteligível, ordenada, sobre o projeto. Por outro lado, eles dão toda informação sobre o projeto, mas mais do ponto de vista metafórico, ou meta-informativo, concreto, diria mesmo. O desenho, enquanto projeção, tem neste projeto um lugar para lá da exposição ou que está aquém da exposição. No próprio processo, esses desenhos surgem por acaso, surgem como necessidade, eles não têm, aliás, um qualquer tipo de função definida, eu diria que eles corporizam qualquer coisa que não é dizível, que não é representável, que não é nomeável. Penso que, de certa forma, se trata de uma transferência, apesar de tudo, corrente na relação obra-espectador mas que é, neste caso, no caso deste projeto, no caso do seu trabalho, algo que tem uma dimensão que eu diria cósmica, uma espécie de como colocar, através dessa sua ação, o centro do pensamento deste projeto no espectador e não mais no ator, deslocando-a de você mesmo. Como deslocar a pessoa que convive com as obras na exposição 23 graus para o espaço físico, mas ainda assim imaterial, que é o centro do projeto. Como colocar alguém num sítio onde ele não está? Eu diria que neste caso há nestes desenhos todo um conjunto de sinais que são propositivos e que simultaneamente enunciam a sua dimensão enigmática.

 

NELSON FELIX Na minha cabeça é uma coisa histórica, são reflexos de um jeito de pensar uma coisa, tudo ao mesmo tempo. Tirar a pessoa do lugar que ela está e levar para outro é da natureza da arte, da poesia, do mundo espiritual…

 

NUNO FARIA Mas eu não queria fazer nenhum tipo de subjetividade. Uma coisa é a minha apreciação sobre as coisas, outra é aquilo que eu acho que pode ser um papel mais profundo que determinados elementos na exposição possam propor discursivamente. Ou seja, como um espaço simbólico pode induzir a uma experiência do vivido? A dimensão sexual destes desenhos, de que falávamos há pouco, pode ser assimilada ao espaço do sagrado, no sentido em que Georges Bataille entendia o termo.

 

Para mim é misteriosa esta dimensão, como é que um espaço divino se torna um espaço comum e ainda assim…

 

NELSON FELIX Ainda concentra uma atenção…

 

NUNO FARIA …enquanto experiência. Há um lugar que você toca de forma muito justa com este conjunto de desenhos que é o espaço da intimidade. É um espaço muito difícil de mostrar, muito delicado, irrepresentável. O espaço da intimidade é um espaço único de cada um. Ao dar corpo a esse espaço, aquilo que você faz é projetar o lugar da exposição no espaço da experiência interior de cada espectador. E, assim, em última instância, esse lugar só é completado na consciência e na percepção de quem vê na exposição.

 

NELSON FELIX Os desenhos tentam tatear esse espaço da intimidade. E, na realidade, a exposição também. Só que são dois momentos ímpares: essa exposição tateia essa intimidade e a inverte. Espero que ela tenha um diálogo. Porque a ação dentro do museu é uma série de objetos que se tornam um único e o entala. Na verdade, todo esse processo de construção da instalação é um processo da minha intimidade, desse deslocamento. Mas tem um momento em que se cria um espetáculo com essa intimidade, ou seja, a toma e a inverte totalmente. E os desenhos, eles continuam nessa intimidade, é da natureza deles.

 

NUNO FARIA Os desenhos projetam-nos em um espaço interior, é uma voz interior aquilo que ouvimos, não é? E o que é uma voz interior? A voz interior é a voz da mãe. E a voz que o feto ouve. E o que ele ouve é irrepresentável, é aquilo que nunca vai ter nome, aquilo que não tem forma. De certa maneira, e eu acho isso muito bonito, você nos coloca perante dois espaços análogos

que se formalizam de maneira distinta: o espaço do desenho (o desenho não é um disciplina como a pintura ou a escultura, por exemplo; é por definição uma indisciplina, uma afasia, aquilo que desaprendemos, aquilo que vem antes da linguagem) e o espaço da intimidade. Ambos demandam a origem das coisas, é essa a sua natureza.

 

NELSO FELIX Os desenhos teimam e continuam querendo essa intimidade. Enquanto o outro espaço é da ação, do deslocamento. O desenho, apesar de nascer dessa indisciplina, se torna quase ditatorial, ele é sempre ele.

 

NUNO FARIA Por um lado, temos tudo aquilo que no desenho são excrescências, emanações, e que é da ordem da interioridade: é o interior do cérebro, o interior da vagina, o osso do calcanhar, a palma da mão, que abrimos para ler o futuro. Por outro lado, o lacre, aquilo que encerra algo, e que é obviamente uma matéria simbólica muito poderosa. Posto isto, estes desenhos são uma espécie de corporização de uma interioridade. E nesse sentido são simbólicos de todo o processo. Há uma experiência que é individual, intransmissível, que é a experiência da viagem, da deslocação, que não é mais, talvez, do que o desenvolvimento do pensamento, do seu pensamento. Enfim, esses desenhos são a não visibilidade e, no fundo, são a representação daquilo que não pode ser visto. E aí é que eu acho que o espaço do desenho é o espaço da abertura, e aí o desenho está no mesmo lugar que a linguagem. Então ele é a linguagem. E daí toda esta amálgama de sensações que sinto perante estes desenhos leva a julgar que estes desenhos estão para lá da superfície, não é? Não estamos no puro plano do visível. Neste caso, o que nos é dado a ver é pela profundidade, pela abertura que essas figuras configuram. Eventualmente, o espectador, aquele que se confronta com a obra, perceberá que esse espaço é uma exteriorização do seu pensamento, da sua consciência e em última instância do seu interior, não é?

 

NELSON FELIX Saiba que isso é uma teoria clássica da arte chinesa, e depois a psicologia moderna foi lá e “descobriu” de outro jeito. Para eles o observador tem tanto valor quanto a pessoa que faz. Os artistas chineses ficavam dias, meses, olhando uma determinada paisagem, por exemplo, e quando eles iam pintar abstraíam a tal ponto que o objeto real, sua forma, etc., tudo mais não era retratado. Por isso que eles foram muito anteriores a nós à arte abstrata. E eles queriam que o observador não visse exatamente a paisagem e sim o sentimento gerado por essa paisagem. Transportá-lo para outro espaço, isso é de toda boa arte, seja oriental ou ocidental.

 

* Título inspirado em letra de música do cantor e compositor Otto, que extraiu o verso do texto de Machado de Assis “Teoria do medalhão”, em Papéis avulsos.

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leveza do ferro e do mármore

Cleusa Maria - 2005

Nelson Felix exibe pela primeira vez uma síntese de suas ‘Trilogias’, no Paço Imperial

Jornal do Brasil – 2005

O ar de leveza da figura de Nelson Felix, de longa barba grisalha e serenos olhos azuis, contrasta com a escala e o peso (literal e artístico) das 11 obras da mostra Trilogias, que o artista plástico inaugura quarta-feira, em noite para convidados, no Paço Imperial, no Centro, nas comemorações dos 20 anos de atividades da instituição. Entre peças em ferro e outras em mármore carrara, cerca de 20 toneladas estão distribuídas pelas seis salas que abrigam a exposição. Tanto que, como conta a galerista Heloísa Amaral Peixoto -, tiveram de checar a estrutura das salas para saber se comportavam 400 toneladas por metro quadrado, como pediam as esculturas.

Mas em todas elas, como vem acontecendo na trajetória do premiado artista, está claramente expressa a busca pelo equilíbrio das forças que movem a vida. Assim, utilizando os blocos de mármore ou vigas de ferro, Nelson Felix imprime às suas esculturas a suavidade com que transpõe os pensamentos para o fazer artístico.

– Eu sou um daqueles artistas para quem arte e vida são a mesma coisa. Isso é o que estou querendo fazer aqui, transformar tudo em uma coisa só – diz Nelson, durante uma pausa na trabalhosa montagem que envolveu o transporte de esculturas monumentais e frágeis que obrigou o artista a inventar até um elevador especial para guinchar uma delas ao segundo andar do histórico prédio carioca.

Nelson Tavares Felix, ex-aluno de pintura de Ivan Serpa, nos anos 70 arquiteto formado em 1977, filho e neto de médicos que desmaia quando vê sangue, fez sua primeira individual em 1980 na Galeria Jean Boghici, no Rio. Agora, depois de 25 anos de percurso artístico, ele divide a curadoria da mostra atual com Glória Ferreira. A exposição no Paço é a primeira montagem com tais dimensões que o artista, às vésperas de completar 51 anos de idade, realiza na cidade. É a primeira vez também que estão reunidas, enfim, as três Trilogias (do Vazio, do Tempo e da Cruz) que ele vem desenvolvendo ao longo dos últimos 20 anos. Mas a palavra desenvolver no peculiar vocabulário do artista não significa necessariamente produzir.

– Algumas eu comecei a perceber quando tinha cinco anos de arte, por volta de 1985, e vi que o tema do tempo voltava sempre. Meu trabalho é todo mental, sem precisar escrever ou desenhar. Acho que seu eu me esquecer é porque a idéia não era importante. Só desenho quando estou quase realizando o trabalho e surgem dúvidas quanto à dimensão ou ao material – explica.

Esse processo mental nem sempre é fácil de ser entendido, em um meio onde realizar significa produzir. Ele mesmo se diverte lembrando que sua primeira mulher, uma farmacêutica com que esteve casado por 25 anos e com quem teve dois filhos, não entendia suas jornadas de trabalho.

– Eu atuo muito com a cabeça, e ela achava que eu não estava fazendo nada – brinca ele, que agora está casado em casas separadas com a arquiteta Adriana.

Mas para quem é do ramo, como a historiadora da arte Sônia Salzstein, esta relação se explica com um verso simples. No ensaio que escreveu para o chamado “livro verde”, que a editora Casa da Palavra dedicou ao trabalho do artista, em 2002, ela inicia o texto intitulado Lavoura de pensamentos, reproduzindo Lupicínio Rodrigues: “O pensamento parece uma coisa à toa, mas como é que a gente voa quando começa a pensar?”

A capacidade de voar ou de se concentrar nos pensamentos, de certa forma, está ligada a uma prática diária que o artista mantém ao longo de quase 30 anos. A hata ioga ocupa uma hora cheia de seu dia, sempre antes do almoço, no bucólico sítio onde ele mora em Muri, perto de Friburgo. Ali, instalou seu ateliê auxiliado pelo ajudante Leôncio, na produção das obras, nos cuidados com os cães e o jardim.

– Quando se começa a praticar a ioga, a gente aprende a relaxar, ouve passarinhos, acha tudo uma maravilha. Depois de uns quatro anos fica maçante e, ao contrário dos cigarros que se briga para deixar, a gente briga para não fazer. Mas passada esta fase, a ioga entra no sangue e vai te lapidando para você ser o que tinha de ser mesmo – diz. – A ioga foi um caminho que me ajudou na sensibilidade e na concentração.

E nesse trajeto as três Trilogias mostradas no Paço Imperial foram sendo desenvolvidas de forma interligada. Um dos primeiros trabalhos realizados, que se insere na Trilogia do Tempo, foi o Grande Budha, no Acre, quando uma muda de mogno ganhou garras de latão que a árvore irá absorver em um tempo além desta existência. O artista diz que só “decidiu assumir” a Trilogia da Cruz, quando realizou a interferência nas Cavalariças do Parque Lage, em 2002, rompendo as paredes com uma viga de ferro e causando impacto nos visitantes.

[TRILOGIAS uma das esferas da série do vazio do coração (alto); a remontagem da escultura com viga de ferro de aço e lâmina de mármore da intervenção nas Cavalariças do parque Lage (centro); e o cubo vazado (à dir.) nascido de um bloco de mármore maciço para falar do vazio do sexo.

O artista busca o equilíbrio das forças que movem a vida]

Os vazios do cérebro, sexo e coração

[continuação da página B1]

Este trabalho também está representado na mostra do Paço, que inclui esculturas da Trilogia dos Vazios.

-Estudando livros de anatomia e lendo Descartes ao mesmo tempo comecei a perceber os vazios do organismo. O filósofo francês diz que “a morada da alma” é um lugar no meio do cérebro. Descobri que esses vazios era mais interessantes que os cheis – diz Nelson, que a partir dali iniciava mais uma Trilogia, a dos vazios do cérebro, do sexo e do coração.

Foi nesta época que surgiu o convite para participar da Bienal de São Paulo de 1996 e também a idéia de criar uma escultura monumental em mármore. E Nelson só trabalha com o de carrara ou o grego importados, pela tradição escultórica que eles mantêm ao longo dos séculos:

-Nós, artistas contemporâneos, pulverizamos tudo o que veio antes. A única coisa que se preservou e até se aperfeiçoou foi o conceito do trabalho. Portanto, foi uma decisão conceitual a de trabalhar só com o mármore carrara ou grego.

E foi assim que, depois de quatro meses de trabalho a céu aberto em Jacarepaguá, usando ferramentas que ele mesmo, inventou como uma lixa com pó de diamante, surgiu um bloco de mármore de sete toneladas, o Vazio do Cérebro. Premiada na Bienal, a escultura recebeu nova versão para a mostra do Paço.

-O problema não está no fazer ou não fazer, mas no pensamento que se coloca no que faz – reflete o artista.

Ainda nesta trilogia, na série do vazio do sexo, a mostra exibe o cubo de leveza, rigor formal, e domínio tecnológico impressionantes quando se sabe que foi esculpido, em cinco meses, a partir de um bloco de carrara de 2,7 toneladas, reduzidas a 400 quilos. E uma outra sala é ocupada pelos trabalhos do vazio do coração ( outro segmento da mesma trilogia) composto por registro fotográficos do deserto do Atacama, no Chile e duas gigantescas esferas de mármore, uma outra for lançada na maré de um praia do litoral cearense. O artista lembra que o registro fotográfico alude ao instante e as esferas à eternidade, dois lados que compõe o órgão mais simbólico do corpo.

– No meu caso arte não é moleza, não. Ou você pira de vez ou fica lúcido demais. Só depois de eu ter queimado um pouco de hormônio, ter conseguido parar, a minha vida depois dos 38 ficou muito mais interessante. Minha relação com o mundo e minhas próprias idéias começaram a conversar – analisa o artista, lembrando que a mostra do Paço fecha as suas Trilogias.

O que vem depois? O lançamento do terceiro livro do artista, antes de encerrar sua temporada no Paço, em 22 de maio:

– O texto é uma extensa entrevista que a Glória Ferreira fez comigo durante seis anos seguido.

Agenda especial de aniversário

Com 429 mostras realizadas e um público que já soma 1.608.492 milhão de visitantes, o Paço Imperial festeja os seus 20 anos de atividades como um dos principais centros culturais do país. Neste primeiro bloco comemorativo, além da exposição de Nelson Felix, a instituição inaugura na mesma noite de quarta-feira cinco individuais. São elas: Speculatio, reunindo obras gráficas inéditas do carioca Amadore Perez; Koans, instalação interativa de Valéria Costa Pinto. As instalações Memórias, Sonhos e Reflexões, de Marcelo lago, e Vai-se uma parte do fogo, de José Maurício Vieira com fotografias e trabalhos feitos a partir de intervenções em jornais.

Além delas, apresenta a produção recente de Adrianna eu (é o nome da artista) e Carlos Contente, que fazem a primeira individual. As exposições serão encerradas em 22 de maio.

Inaugurado em 6 de março de 1985, O Paço Imperial terá durante todo este ano outras mostrar comemorativas. Deu direto Lauro Cavalcanti, destaca entre muitas, a retrospectiva de Henry Moore, a primeira no Brasil dedicada ao escultor inglês.

{Paço Imperial. Praça XV de Novembro, nº 48. Centro – Rio de Janeiro, tel.}

[a decisão de só usar mármore de carrara ou grego é conceitual]

[A ESFERA em mármore com pinos de prata lançada numa praia do Ceará, vai expandir em tempo que não se sabe qual]

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REMISSÕES

Glória Ferreira - 2005

Trilogias – Conversas entre Nelson Felix e Glória Ferreira – editora PinaKotheke – 2005

Com os riscos, vícios e repetições inerentes à troca de idéias, essas conversas com Nelson Felix foram gravadas em 10 encontros, no Rio de Janeiro e em seu ateliê, em Friburgo.

Iniciam-se em 199, um pouco após Mesa realizada em Uruguaiana, no Âmbito do Projeto Fronteiras, do Itaú Cultural, que reuniu um conjunto expressivo de artistas – Carmela Gross (1946), Carlos Fajardo (1941), Angelo Venosa (1954), José Resende (1945), Arthur Brio (1945), entre outros – e se constitui em um marco de atuação no espaço não museológico no Brasil. Desenvolvidas, de certo modo, como um “processo” sem objetivo definido de futura publicação, acompanharam o próprio processo do artista na idealização de trabalhos extremamente significativos e em sua realização, por vezes solitária, na floresta amazônica ou no deserto – por exemplo, em 2000, no Acre, Nelson Felix finaliza Grande Budha, iniciado em 1985 e apresentado, ainda como projeto, em diversas ocasiões – e concluem-se por ocasião do Vazio Coração, que completa a Trilogia do Vazio e que também faz parte da Cruz na América.

Distinto de um ato de avaliação, “Concentrações mentais” centra-se na fala do artista sobre o desenvolvimento de seu processo de trabalho, enfim, sobre as intenções e exterioridade de sua prática artística. Ao delinear-se a possiblidade de publicação, as conversas, sobretudo no último período, foram adquirindo o tom de entrevista. E, se a entrevista está relacionada a seu aspecto jornalístico, sobretudo em sua origem, torna-se, enquanto declaração na primeira pessoa, uma fonte de informação direta do artista, com grande expansão a partir dos anos de 1950, em especial desde a Pop Art, com o declínio dos manifestos ou programas artísticos. As questões aqui abordadas estão presentes em suas notas e comentários dos projetos, em mapas ou em textos e entrevistas, como, por exemplo, em “O que me interessa é essa coisa indefinidamente sugestiva… Uma conversa de Nelson Felix com José Resende, Lygya Pape, Nuno Ramos e Rodrigo naves”.

Questões que, de certa maneira, também perpassam o conjunto de textos críticos aqui reproduzidos, nos quais a pluralidade de vozes pontua momentos de sua trajetória.

A começar por “Da cor amarelo” introduz-nos ao universo de suas reflexões, opções éticas, espirituais e estéticas, que até hoje informam sua práxis. Neste longo depoimento atual há uma densa imersão em seus interesses e constructos ficcionais, os quais permeiam e qualificam a especificidade de sua ação. Sua edição aproxima temas abordados em diferentes ocasiões, estabelecendo cruzamentos diversos.

A cruz, com seu amplo universo de significações e simbologias declina-se em uma série sempre renovada de remissões na obra de Nelson Felix, sendo sua maior expressão, Cruz na América, no qual cintilam uma travessia do espaço cósmico e a impossibilidade do acesso direto às coisas. As coordenadas, que localizam com precisão cada uma das obras, são os únicos elementos estáveis. Impossível documentá-la em sua totalidade mesmo por satélite: incorpora imagens, como as do deserto de Atacama, ou perde-se na floresta, como o grande Budha. Evoca e dialoga com a extensa história da representação da cruz na arte e na arquitetura. Em A Crucificação de São Pedro, por exemplo, um dos últimos afrescos de Michelangelo, uma imensa cruz, invertida, estrutura o espaço de toda a composição, remetendo a sua significação mais primitiva de demarcação espacial além de sua simbologia religiosa. Questões igualmente presentes na arte do século XX, apesar do eclipse, enquanto tema, da arte cristã, mas não de significações espirituais, como em Mondriam, por exemplo. Ou em Beyus, ou ainda, no colossal Double Negative, 1969-1970, de Michel Heizer, e no efêmero Cross, de 1969, de Walter de Maria, ambos em Nevada.

Utilizar-se de cruzamentos entre diferentes simbologias e referências sejam orgânicas ou científicas, enquanto “acasos predeterminados” que precisam o lugar, tem sido uma estratégia de Nelson Felix para demarcar-se do site specific e dos efeitos de composição ao mesmo tempo em que incorpora o hibridismo e a transgressão, como em sua particular relação com a escultura e sua tradição. De maneira surpreendente e por vezes estonteante, entrecruza trabalhos que se irrigam uns aos outros, como constelações móveis (a leitura jamais é linear, mas diagonal, vertical, em rotação, talvez), e que ainda permitem outras correspondências, por acaso, entre a Cruz na América e a constelação do Cruzeiro do Sul, ambas à deriva, em seus deslocamentos e transformações.

Quiçá subjugadas à atração que a simbologia da cruz – de maneira indefinida, segundo o artista – sempre exerceu sobre ele, essas conversas retomam questões sempre em outras abordagens, desvelando os compromissos existenciais de sua poética. Ao conjugar dimensão espiritual a seu engajamento no processo histórico da arte, Nelson Felix, sem considerar prescindíveis a cultura ou a filosofia ocidentais, recorre à filosofia oriental como abertura para questionar conceitos causais e lineares. Questão nem sempre facilmente abordada pela herança formalista presente na história e crítica da arte.

 

Glória Ferreira, março de 2005

 

CONCENTRAÇÕES MENTAIS

20.03.2004

Espaços de passagem

GLÓRIA FERREIRA. Seu projeto atual é apresentar, em exposição e livro, as três trilogias, e assim, tomando uma certa distância em relação a seu trabalho, tornar público seu desenvolvimento e as questões que o sustentam. Como se articulam as trilogias?

NELSON FELIX. Percebi que estava fazendo algumas trilogias em 1995, e que elas sustentavam as principais coisas que eu pensava sobre o trabalho, sobre a vida. Isso começou com os vazios. Quando fiz Vazio, 1992¹, comecei a reparar nos espaços ocos que existiam no interior do corpo humano e me deparei com o fato de que todo o sistema nervoso, digamos, se estrutura em cima de espaços vazio. Achei interessante. Por ocasião do convite para Bienal de São Paulo, 1996, estava com essa coisa na cabeça… não só o vazio do cérebro, até por haver feito a peça de fundição, de ferro. Pensei, então, seguir por aí e buscar outros espaços vazios que pudessem ser mais interessantes do que a coisa cheia. Três espaços vazios no corpo humano começaram a me interessar muito: o do cérebro, que já havia de um certo jeito tocado; os espaços vazios do coração, que é um lugar de força simbólica, uma força de vida; e o do sexo. São três pontos principais da matéria do ser humano. Comecei a compreender que o inexistente nesses três lugares é a mais importante do que o que existe, ou que está cercado de ambientes de grande energia. Na verdade, este interesse começou um pouquinho antes disso, ao pensar num feto em formação, em que cada célula vai construir uma série de novas células, gerando o tecido em uma cadeia, que forma os órgãos. Existe uma estrutura tão precisa nessa formação, que essa célula deveria ter uma certa inteligência, para uma célula do pé não se formar na cabeça, e vice-versa.

Da mesma maneira existiria também, uma inteligência, de qualidade diversa, que formasse o coração, e outra, o sexo, que é o poder do organismo. Existem alguns lugares que são extremamente fortes. Como as cidades, por exemplo. Há uma quantidade muito grande de energia em Nova York, mais do que, digamos, em Governador Valadares.

Vendo esses três trabalhos, pensei em apresentá-los na Bienal, mas resolvi que não.

Naquele espetáculo todo, acabaria criando uma situação sem conseguir passar nada, nem o visual, nem sentir prazer no que estava fazendo. Então, voltei a trabalhar com o espaço do cérebro de um jeito mais profundo do que havia trabalhado na primeira vez: todas as formas presentes na sala não existem na cabeça. Quando percebi o conceito dessa frase, parti para fazer o trabalho.

17.05.2002

Vão, o trabalho da Bienal, estaria ligado à pineal, glândula pela qual você tem grande interesse e que também está localizada no plexo cavernoso?

É exatamente esse espaço central: o cérebro não é maciço. A percepção disso foi uma doideira, submundo do pensamento… por exemplo, a descoberta desse espaço e a relação com o próprio nome de plexo cavernoso… é dessa fascinação que nascem os trabalho.

Em Vão, o bloco de mármore suspenso tem a forma de todo o espaço vazio que se tem bem no cérebro: o plexo cavernoso, aumentado 111 vezes, que é a Trindade.

Esses buracos existentes no sistema nervosos, que na realidade estão cheio de líquidos, pareceram-me interessantes, pois a percepção do mundo em algumas filosofias, principalmente as orientais, está ligada à criação de espaços vazios mentais. Em Vão o que fiz foi centralizar esse espaço. A peça que ficou no chão diz respeito aos outros espaços do cérebro (ventrículos). A forma tinha de ser de mármore. Não poderia nem ser mármore nacional.

Se tivesse dinheiro, compraria o grego; como não tinha, comprei o italiano, pelo menos.

Tudo isso faz parte do meu trabalho… uma pedra com três mil anos de pensamento em cima. Isso entra como questão conceitual no trabalho. Uma visão formalista diria que aquilo era pura forma. Aí é que vem a puxada de tapete: é uma forma, sim, mas não é minha; então, não se pode discutir beleza aí. Não tem a composição, não fiz o furo mais para cá ou mais para lá, ou por gosto; ele existe ali e a escala, como disse é de 111 vezes.

 

E o azeite, como entra no trabalho?

… sai do container um bloco de cinco toneladas, de quase 3 metros de altura, com quase 5 metros de comprimento; você olha e diz: “Como vou fazer isso…”. Fico até arrepiado.

Você olha um bloco daquele e vem três mil anos nas suas costas, vem Leonardo Da Vinci, Michelangelo, Donatelo, vem todo o mundo… Pesa. Fui ao encontro da tradição, mas, na hora em que se vê que é peso demais nas costas, dá uma desestruturada. O único jeito era começar a brigar com a tradição. E qual era a briga? Exatamente a coisa mais óbvia possível. Não chegue para um marmorista com uma lata de graxa ou com uma lata de óleo! Se eu usar esse material, pensei, vou conseguir fazer algumas coisa minha… por ali tem um caminho.

Foi a primeira vez que você juntou mármore com esses materiais…

Foi uma das primeiras saídas. Esse pensamento voltava, pois já havia feito umas duas peças de mármore. Conversando com um artesão, eu o vi cobrindo o guindaste para não pingar a graxa e me toquei. Mas confesso que foi essa porrada. O trabalho não poderia ser só a forma, não, apesar de ter total consciência e de saber que esse dado não seria divulgado na Bienal. Apenas duas, três ou quatro pessoas ficariam sabendo. Rasguei o chão todo… e daí, acho, vem a Laje, 1997, e também os trabalhos que estou fazendo agora. Na realidade, as coisas têm um tempo longo.

 

Em seu trabalho há a junção do orgânico, do espiritual simbólico e de uma formalização poderosa, sem que essa seja uma representação do orgânico. Seria, talvez, devido a essa seiva espiritual…

Outro dia estava pensando… convivi muito com o pessoal um pessoal um pouco mais velho, principalmente Tunga, Zé [Resende], embora fosse o patinho feio, sem o cacife que eles começavam a ter. Conversava-se sobre tudo, idéias, mercado etc. O meu trabalho demorava mais a surgir… o fato de ter a forma na minha cabeça, algo clássico da escultura e, mesmo, do espaço. Por exemplo, eu comungo muito com o Sergio [Camargo], o Amílcar [de Castro]… Adoro o Amílcar, mas ele não erra mais, e o Sergio erra, mas quando acerta é estupendo! Ninguém acerta como ele. Nessa paixão do erro, da forma, eu comungava com o Sergio, e tenho isso na minha alma. Assim, quando meu trabalho saía, saía mais pela forma ou era lido pela forma. Muitas vezes eu nem falava; era quase como xingar a mãe, caso houvesse outra questão além da questão formal.

As idéias que estruturavam o trabalho “sujavam” sua visualidade e a importância que o fazer tem pra mim, gerava um preconceito.

 

Além da relação com o vazio existente na cabeça, há também uma relação com a concepção do vazio pleno?

Tem tudo isso. Vazio pleno, vazio budista… Não acho que seja uma questão central desse trabalho. Ele tem uma coisa da forma, isso me emociona. Tinha que ser de mármore, justamente por essa questão, mas o que me motivou a pensar sobre isso foi ter percebido que existia fisicamente um vazio na cabeça e os caras falavam de criar um vazio mental para romper o ciclo de pensamento… isso ficou martelando…

 

20.03.2004

Os espaços vazios, acho, com exceção do coração, são os trabalhos mais materiais de todas as trilogias. Os outros são mais mentais. Percebi então que havia feito uma de longas distâncias. O Grande Budha, Mesa e os dois trabalhos do Vazio Coração formam uma Cruz na América. O Grafite, a Série Árabe, a Laje e o Pilar guardam para mim, num sentido muito próprio, uma relação com a cruz. Talvez por ser de um país cristão, apesar de todo mundo, n aminha casa, não se ligar à religião, essa coisa da cruz, de sofrimento, sempre foi um grilo, desde pequeno, não sei bem o por quê. O Grafite mexe com o fato de assumir e, ao mesmo tempo, tentar matar a morte, no sentido de tentar matar o que não se mata, ou seja, tentar matar a composição dentro da arte, algo quase impossível, embora se possa arranhá-la. E, ao mesmo tempo, como não se consegue, trata-se de assumi-la. No Grafite, uma das peças está no espaço dirigida por coordenadas e alinhada pelo eixo do sol, ficando “torta” no espaço (aliás, podemos pensar que seja o espaço que está torto em relação a ela); a outra, assumidamente dirigida para compor com a arquitetura. Quando se toma uma atitude ou se nega, ou assume-se. Dos dois jeitos você está matando a composição; negando-a, um jeito de matar mais óbvio; e quando se assume é que você a domina e faz presente…

Percebi que era a cruz, mas, depois de ter fundido um crucifixo e aquela história toda, fiquei na minha. Na Série Árabe, 2001, tratava-se de botar o trabalho linear mesmo e de fazê-lo girar, alinhado com o sol e ignorando a arquitetura de sua apresentação nas cavalariças do Parque Lage. Ali, realmente vi que estava fazendo a cruz e não tinha mais jeito. Foi uma crucificação… bons cabelos brancos ali nasceram. Foi muito difícil fazer e, ao mesmo tempo, muito próximo. Assumi então estar fazendo um trabalho sobre a cruz. Desses dois, veio a Trilogia. Faltavam alguns, e algumas ainda estão faltando até agora, mas comecei a perceber estar fazendo uma série de trabalho que guardam relação entre si e que são de natureza… existem por si mesmos, mas só ganhariam corpo quando fossem três. Já que era a trilogia dos vazios, quis fazer o vazio do sexo, o vazio do coração. Foi muito tempo tateando, para não os amarrar. Por ter ficado muito preso à coisa do mármore no vazio do cérebro, quis repetir, fazer um objeto de mármore. Durante muito tempo ficava catando por ali. Um dia comecei a ver que o coração talvez fosse mais espiritual, mais imaterial de todos eles, e foi isso que gerou esse trabalho. Apenas de ser um objeto como é uma foto. Na verdade não é bem a foto, mas a questão que a foto traz, ou seja, a percepção naquele momento, e essa percepção não faz parte do discurso. O único discurso que eu podia fazer era mostrar a foto estourada. E ela estoura porque coloco o ritmo do meu coração; mesmo assim, o ritmo também nada diz…

 

Fale mais sobre o ritmo…

Medi a velocidade do meu coração, naquela situação, e essa velocidade seria a da máquina controlando a abertura para conseguir ver o máximo que a máquina suportaria, porque a luz, no deserto é muito intensa. Quando vi que o tempo de exposição seria de um segundo e pouco, pensei: “as fotos não vão sair, mas tudo bem”. Não era para sair mesmo, estava lidando com outra questão. Utilizei o processo tradicional da foto, mas não se vê foto. Acho até que é um trabalho de processo e, ao mesmo tempo, é um trabalho sobre o tempo, com esse produto final. As fotos estouram e somem com um tempo, só fica a relação. Não usei o cybrachrome, quis o processo normal. É um trabalho-processo em que se reúnem os quatro trabalhos da Cruz da América. É também o único sobre o instante: o Grande Budha e a Mesa referem-se a milênios; a esfera, no Ceará vai levar milênios igualmente para estourar. Mas esse é o instante, era o que estava sentindo naquele momento e algum trabalho tinha que ser sobre o instante. Embora existam trabalhos com outras questões, comecei a perceber os vazios e as trilogias, por isso a vontade de fazer essa exposição, com as três questões que estão há muito presentes no meu trabalho e na minha vida.

 

Você se refere ao vazio como algo de ordem mais orgânica, humana até, embora, por sua proximidade com a filosofia oriental, o vazio esteja repleto de outras significações. Como se dá essa relação entre o cheio e o vazio?

Tenho dois sentimentos sobre o vazio: um no sentido clássico, de não existir nada – vazio – como se usa na linguagem corriqueira; o outro é o vazio que nem a percepção da percepção existiria, não é nem vazio. Como se poderia tocar isso? Nem a percepção dessa percepção poderia existir.

 

Algo ligado à experiência da meditação?

A meditação da linha budista leva a criar vazios mentais. Romper a ciranda dos pensamentos, controlar a cirando dos pensamentos a partir do momento em que não se pensa nada. Acho muito interessante que dentro da nossa cabeça, dentro do cérebro, existam espaços sem massa, como dizem. Esse foi um dos motivos pelos quais coloquei aquelas imagens de Buda no Vazio Cérebro; com essas imagens senti a necessidade de sustentar os vazios. Na realidade, as usei pela primeira vez no Grafite, quando precisei emendá-lo. Não queria que essa escultura do Vazio tocasse o chão, então está sustentada por Buda – criar um vazio mental que existe no meio da cabeça. De fato, o cérebro não é vazio, está cheio de plasma, de líquidos, mas são buracos dentro da massa cefálica que descem pelo sistema nervoso. No centro da medula tem um buraco suja seção tem a forma de um “H”. É superbonito.

 

Esses vazios do corpo não seriam espaços de passagens?

Nessas passagens acontece a grande energia da situação. Por exemplo, o coração, aquele coisa de bombear. Fala-se sempre do coração, as o grande barato é exatamente o que passa o tempo inteiro por ali. É a mesma coisa com o sexo, que é um lugar de tanta força, tanta energia, que você consegue nesse lugar gerar um outro ser. Logicamente há diferença entre essa situação e uma unha.

 

Voltando ao seu projeto atual? Diferente de seu último livro (Nelson Felix, Casa da Palavra, 2002), no qual você reuniu um conjunto determinado de trabalhos, nessa exposição em preparação, você parece querer um distanciamento do que seria o seu próprio trabalho. As trilogias se situariam como um conjunto de trabalhos reunindo questões que perpassam suas preocupações ou que, pelo menos, indicariam certos caminhos que você vem trilhando?

Existem trabalhos, fora das trilogias, pelos quais tenho o maior carinho. Por exemplo, Beijo em Madalena. É tanto ligado à história da arte quanto ao que aprendi com outros artistas, e tem aquela coisa de olhar, o olho ficar grudado. Na última exposição, na Galeria HAP [Rio de Janeiro] em 2003, resolvi fazer um auto-retrato tão assumido, creio, que o espaço gerado na galeria é que seria realmente a minha sensação de auto-retrato. Gosto muito dessa idéia, de botar na galeria uma porção de coisas, umas muito pesadas, como o cubo, e outras extremamente trabalhadas no mármore que atraem o olho e constroem. Era o auto-retrato, não é bem o que se está vendo, não são as peças separadas, é mais o que gera, ou seja, o auto-retrato era o sentimento que passava, gerado naquele espaço, com as duas peças presentes, e não de cada peça em si. Como se você precisasse colocar coisas para gerar o sentimento. Na realidade, queria representar a vida entre o calcanhar e o parietal.

Em relação à cruz, tinha receio… Para o Grande Budha conheci, no Acre, os índios, e foi algo muito gozado, porque a relação deles com o tempo é outra, poderia ser uma semana depois, ou duas, ou três… e eu, logicamente, com aquela idéia de fazer o trabalho, já com os materiais chegando etc. Para eles, por exemplo, ir até outra cidade só exigiria seis dias de caminhada. Esse ritmo assustou, mas ao mesmo tempo criou uma identificação enorme, porque o meu jeito de resolver o trabalho, de resolver minhas coisas comigo mesmo é assim? São pensamentos enormes. Percebi que a relação com o tempo era muito importante nas minhas soluções, na minha vida. E disso, tinham que sair alguns trabalhos. E o vazio está presente em todos os trabalhos. Acho até que é o que mais me explica mentalmente.

É impossível falar sobre espaços vazio e não falar sobre filosofia, sobre o corpo humano… impossível. Mesmo que se queira falar anatomicamente, sempre entram essas questões. Outra coisa que me deu alegria… por vezes se fica meio saturado de fazer uma exposição na galeria, outra no museu, receber um convite aqui outro ali para fazer um parque de escultura, ou como na Bienal do Mercosul, quando o convite estipula: “Você vai fazer um site specific”. Não é bem assim. Você começa a desejar fazer as coisas que você quer. Senti necessidade… fui-me dando a liberdade nesses anos de poder, ao mesmo tempo, fazer o meu trabalho, pensar o meu trabalho; alguns são complexos, de realização manual extremamente complexa; outros, sem realização manual alguma; tem trabalhos que mando fazer. Aliás, o problema não está em fazê-lo ou não fazê-lo, mas na quantidade de pensamento gerado e na liberdade de deixar a matéria ser ela mesma. Quando é necessário você faz, quando não, você não faz, não há problema. Comecei a gostar desse tipo de coisa… fazer uma escultura de mármore ou mostrar um trabalho que é só pensamento, mostrar a relação com o mapa ou com um desenho… Quer dizer, fui criando uma rede de ações que foi me dando liberdade. Logicamente há cobranças… fazer um trabalho mais mental ou, às vezes, no meio do processo, precisar de uma peça de madeira extremamente bem feita. Herdei alguns preconceitos dos quais, de certo jeito, me libertei e abri um caminho. Essa exposição foi mudando isso, pela primeira vez conseguir mostrar esse tipo de coisas… A Série Genesis, por exemplo, que é um trabalho com moral, fala sobre o tempo, sobre uma série de coisas, em nada ali eu meti a mão, foi uma organização mental do processo, da mesma maneira que posso fazer essa escultura. Pensar nessa exposição atual me deu isso e foi me dando alegria. Ao mesmo tempo, tenho uma birra muito grande com retrospectiva; mais interessante é fazer um livro. Fica-se velho antes do tempo… Hoje, estava pensando em um trabalho, como o Vazio Coração, que está de certa forma, calcado em um outro, pensado em 1986.

A questão está há tanto tempo na sua cabeça, que está viva, você só sabe pela data

Por exemplo, poderia pensar no Grande Budha hoje, assim como nasceu o Vazio Coração, mas o pensei em 1986. Estou com vontade de mostrar que existe um amálgama, um pensamento, por exemplo, entre o Grande Budha e o Pilar, apesar de um estar na arquitetura, em um certo processo, e o outro, em outro… Essa exposição das trilogias é um jeito de poder lidar com trabalho que têm várias datas, sem mexer com retrospectiva. É mais uma idéia centrada em torno do trabalho. Continuo vivo…

 

27.05.2004

Ainda sobre o vazio, pois seus trabalhos atuais, a Trilogia do Vazio, giram em torno dessa questão… vazio figurado, mas também, como dizem os chineses, enquanto interação e transmutação.

Não vim pensando assim, mas em algo muito prático, como é que foi feito e tal.

Mas é bom falar sobre isso. Realmente o vazio é algo muito oriental, a presença do pensamento sobre o vazio; mas acredito também que está presente no pensamento menos conclusivo, seja ele de qualquer origem, oriental ou ocidental. Acho que quando o ser humano começa a pensar, sente a vida num prisma mais espiritual e se defronta com a sensação de vazio ou começa a perceber a faculdade das coisas, a sutilizar as coisas, sutilizar os pensamentos, começa a explodir a matéria. Não sei em o porquê, mas, quando penso no sentido mais abstrato do vazio, me vem o infinito. Da relação entre finito e infinito. Não relação que tenho com o vazio, ele é sempre cercado de cheios. Nunca é totalmente pleno, tem um limite, mesmo que esse limite seja infinito. Tenho essa sensação. Todas as coisas têm limite, tudo acaba e muda. Por exemplo, penso a idéia do infinito no sentido físico das quatro direções, ou melhor, das seis direções: os quatro pais mais o Zenite e o Nadir, quer dizer, a idéia de infinito, do espaço físico. Há também os infinitos de percepção, espaços onde não haja percepção, mas sua ausência. Mais até do que isso – espaço das direções, espaço dessa ausência de percepções e espaço onde não existe nem ausência de percepção. Total ausência de tudo. Se você tem uma ausência de percepção, existe ainda a sensação do negativo, da ausência.

 

Uma suspensão dos sentidos…

Até a conscientização dessa total falta de sentido, também é uma percepção. Então, nem ela existe. Essa é uma idéia de infinito profundo; e esse infinito é, para mim, um vazio. Talvez seja a noção de palavra mais possível para vazio. Esse é o meu sentimento. Quando comecei a pensar o vazio foi em decorrência da questão plástica; mesmo antes do trabalho plástico, ele aconteceu; e ficou na nuca, no vácuo. Era a experiência minha com o processo da Yoga. Fui lendo textos orientais sobre a idéia de vazio budista, a idéia de criar um vácuo no pensamento, o rompimento de uma cadeia de pensamento e a possibilidade de criar um vazio no sentido mental. Isso foi ficando, ficando, aglomerando e sai arte. Depois que sai o trabalho de arte, se começa a pensar mais sério, a conviver não se sabe nem por que, mas aquilo vai se sedimentando em sua alma, vai se identificando e vira seu. Esse trabalho do vazio saiu assim, como saem todas as coisas. Comecei a pensar muito sobre o vazio e veio uma relação gozada, e um dia conversando, deparei-me com o fato de que havia espaços vazios em todo o sistema nervoso central, principalmente no centro da medula, que não está vazia, mas achei a de plasma e etc., mas não tem carne. Se passar um corte nesse vazio, surge a forma de um “H”, com já disse, com significações, até por ser uma letra que não tem som. Para os antigos, entre os sons, havia um som que era a falta de som, e esse som eles dedicaram a expressar o lado divino das coisas, no sentido de… tem uma palavra chave para isso: chama-se Demiurgo, que é o deus mais próximo da natureza. A letra “H” expressa a sua presença perante a grandeza da natureza. Quando reparei que havia um espaço vazio na medula, com letra “H” e que se estendia para todo o sistema nervoso, me veio novamente à idéia do budismo, de criar um vazio mental.

Há um busca mental de criar um vazio e, fisicamente, há o vazio. Para mim, já é um trabalho. Essas relações entre a sensação de fazer e de existir no seu físico… então a idéia era só juntar os dois. Aí surgiu aquele trabalho de ferro [Vazio, 1992], no qual moldei todo o sistema nervoso. A idéia, novamente, de não ter composição, porque a forma já existia. E nada dele toca o chão, ele se sustenta sobre imagens de Buda, ou seja, são imagens que o sustentam. Todos os trabalhos gerados a partir do Vazio Cérebro são, de um certo jeito, muito físicos, escultóricos: a versão para a Bienal, por exemplo, são blocos imensos de mármore, como, agora, o do calcanhar. É diferente do Vazio Coração, que é muito mental, apesar de ter ação; não tem em nenhum momento a forma física do coração. O Vazio Sexo, por exemplo, tem pequenos objetos de prata, (essa relação de prata e ouro é importante, pois, visa também sacralizar o objeto. Há um porquê nisso). São moldes diretos, quer dizer, formas que também existem. As formas em mármore, embora extremamente escultóricas, são abstratas. Os vazios do cérebro são muito reais; os do coração, são extremamente abstratos e que em nenhum momento quiseram ter uma relação imediata com a realidade.

É uma relação puramente mental. São ações, a foto estoura. É uma esfera, os pinos de ferro, é exatamente a quantidade, o volume do espaço vazio do coração. Mas esse volume é abstrato, porque são pinos.

 

O Vazio Cérebro seriam vazios tornados substância, quase presença…

Quase retratos do volume que não há. São retratos.

O Vazio Coração é conceitualmente abstrato; e o Vazio Sexo é mais real, seria isso?…

Sim, abstrato, mas abstrato no sentido formal. O do sexo tem uma… as formas são geométricas, extremamente rígidas. O sexo é a loucura extrema, por vezes acho super-racional. O sexo é próximo dessa área, é exatamente ao contrario do que a gente pode perceber; o sexo e o êxtase são momentos às vezes muito plácidos. São atos divinos. E nesses momentos de êxtase, há pensamentos muito racionais, muito procurados. Tem esse barato, penso. Estava falando da forma, da medula. Nesse passo, o Vazio Cérebro é bem literal, com o molde de todo o sistema nervoso central. O ser humano se forma no ventre; são nesses espaços vazios que os seres são gerados. É engraçado porque eles são justamente ao contrário: tem que ter um átomo, que é o cheio, para gerar o entorno, que é esse espaço vazio. Esses três lugares são interessantes. Comecei a pensar no corpo humano, os lugares de maior importância, e, em todos eles, os buracos são mais relevantes do que os espaços cheios. Percebi que eram três trabalhos sobre os três espaços vazios… Comecei então a me aprofundar e a ver que havia outros lugares de espaços vazios, como o átomo, semente desses três lugares. É engraçado, esses pensamentos vêm aos borbotões, depois se organizam em palavras, ou não.

Concentrações mentais

30.05.2000

Na arte contemporânea, grosso modo, o sublime foi retomado pela representação do irrepresentável. O que, em seu trabalho, remete ao sublime, creio, particularmente no caso da Mesa, 1997/1999, mas também no Grande Budha, 1985/2000 e nas Lajes, 1996/1997, é a questão temporal, a questão da finitude. Constantemente você tratado do incomensurável, do que será realizado daqui a 500 ou 1000 anos. Com nossa incapacidade atual de prever o futuro, até mesmo pela erosão da idéia de progresso, que nem mais a ficção cientifica assegura, o que estará acontecendo daqui a 500 anos? Todas as galáxias estarão conectadas… a Terra ainda existirá? Vive-se um certo presente perpétuo e com isso a dificuldade de encarar a morte. Como é pensar um trabalho que remete à finitude humana, a um limite?

É, e o futuro chegou muito rápido. Na minha adolescência ainda havia a idéia de futuro. A palavra sublime me persegue muito, mas nunca parei para pensar como o fiz para outras coisas; é como se você contasse uma história que estou a fim de ouvir; me persegue, mas a palavra me basta.

 

Isso se liga também a outras questões presente em seu trabalho, por exemplo, à relação entre a questão espiritual e a presença da dor. A dor é um elemento básico do sublime, o delight, que é a dor no interior do prazer. Não estaria ligada à idéia da finitude? Até porque a questão da espiritualidade vai além da harmonia entre as coisas, além da harmonia entre as faculdades, é outro estado. Como se relacionam para você a contemplação e a espiritualidade?

Para mim, a idéia de harmonia é pouco para a espiritualidade, é apenas um dos aspectos, por exemplo, como a forma para a parte visual. A forma é um barato, mas é pouco, conhece-la não resolve as coisas, ainda mais hoje em dia. Da harmonia tenho até certa desconfiança, pois o caminho espiritual é mais árdua e de certo jeito mais desarmônico do que harmônico. No final, talvez, exista um certa harmonia, mas o processo… Um mestre venezuelano falava que as coisas vivem juntas, em “atrito”. O que, para mim, tem um significado muito grande. Sem o provocar, não se chega lá. O caminho espiritual é para se descobrir e se transformar, não pode ser suave, pelo contrário, é extremamente intenso, violento. Mais do que a harmonia, a sublimação da dor me interessa muito mais. A sublimação dos obstáculos, a transformação de si mesmo. Pode-se, querendo, ser qualquer coisa, depende do tempo envolvido e do tempo que se é o que se escolher ser. Vendo, historicamente, a vida de seres que se dedicaram inteiramente ao caminho espiritual, percebe-se que são vidas muito intensas. É como lapidar um diamante, tem que arrancar pedaços.

A idéia de contemplação está em questão, assim como a concepção de autonomia da arte; daí, aliás, a ênfase na participação do espectador. Em seu trabalho podemos pensar em outro nível de contemplação. Você propõe uma contemplação que implica visualizar mentalmente o desenvolvimento do trabalho ao longo de 500 anos, como em Mesa. É absolutamente mental. É igualmente de ordem conceitual. E o conceitual liga-se ao místico…

É, existe uma idéia de contemplação, embora não esta: o sublime pela contemplação. Aliás, eu não sou budista, mas você tocou em dois assuntos centrais na experiência de budismo: a transmutação da dor e a contemplação. Tem uma alavanca interessante entre concentração e a contemplação, em abas as situações o mundo fica meio passivo e meio olho. A contemplação é o início, para que, depois desse ato, haja a concentração: a perda da noção do entorno fazer cair num espaço interior. Acontece muito na arte; por exemplo, no Grande Budha, quando eu detono o tempo, igualmente na Mesa, quando você a esquece… O trabalho pode ser apenas contado, a pessoa o faz na cabeça e tem uma experiência. Se ela estiver presente, também o faze na cabeça e esquece que está lá. O espaço, de certa maneira, pode ser ignorado. Na Laje, a sensação de ruptura na arquitetura, a sensação de um prédio que foi calculado para ser de um jeito não é mais, também faz isso, você sai da situação, começa a pensar o peso. Mas a presença no local faz ter a consciência do espaço, do peso do espaço.

 

23.05.2000

Essa concentração profunda é um espaço mental. É exatamente uma concentração da não-objetividade; é do não pensar, mais do que do pensar.

Acho que os dois. Você fica numa onda de percepção, de extrema contemplação, que, aliás, tem muito a ver com a arte oriental. A representação para o oriental é uma alavanca na descoberta de que nada é aquilo que parece. A representação em si não é o princípio da coisa e sim só um fator de contemplação. Então eles fazem um desenho, um objeto ou o que seja, no sentido de contemplá-lo. A representação não é o final, é um objeto ou o que seja, no sentido de contemplá-lo. A representação não é o final, é simplesmente o início desse processo de contemplação. Fazer arte é produzir concentrações; concentrações mentais. E se você exercita sua capacidade de concentração, aumenta a percepção do que se quer fazer e passar… como vai ser lido, as possibilidades de leitura… Quanto maior a concentração existente no objeto, ou em sua capacidade, melhor você o faz. Isso é regra fundamental. Eu aprendi com a Yoga, me concentrando. Ficar “altera” para alguns barulhos, igual mãe dormindo, desconcentrada de tudo, mas não do filho. O ato de se concentrar no espaço tem um pouco isso. Você pode esquecer lacunas de espaços externos…

 

Os grandes artistas conceituais ou abstratos tocam a questão espiritual, no entanto há um recalque disso… Basta pensar na dificuldade de se falar sobre o aspecto místico de Mondiar ou de Kandinsky; toda a leitura de seus trabalhos tende a se reduzir aos aspectos formais. É raro encontrar outro tipo de leitura. Talvez seja esse espaço mental que você propõe… Seu trabalho é altamente conceitual, “biologicamente conceitual”. Um conceitual biológico, arrisco dizer, pois inclui a transformação das coisas, dos acontecimentos, sendo absolutamente contemplativo.

Algumas coisas foram gratuitas, no sentido de terem sido achadas e depois compreendidas; outras eu forcei mesmo a acontecerem. Concentrei-me porque aquilo me interessava. Quando caímos numa situação nova, demoramos a percebê-la, e quando a percebemos demoramos a atuar, até estarmos seguros do que queremos, e passarmos pelas dúvidas que os outros vão colocar… Muitas dessas situações vieram de graça e eu as vi depois; e há as que eu provoquei. Foram árduas. Geralmente é árduo. O que gerou o Grande Budha foi a percepção de dois atos: um ato cultural, de tendência estética; e um ato sagrado, de tendência mística. Quando se mexe nesses dois fatores, em quase todas as civilizações, existe um transgressão da natureza, embora esta seja ignorada, de tão normal. Por exemplo, uma operação plástica é uma violência que a pessoa faz contra si; ela se propõe a receber anestesia e ser rasgada, costurada, porque ela e a sociedade acham que isso a tornará mais bonita. Ela se propõe a sentir dores por um ato estético. Os índios, por exemplo, também se perfuram, ou, ainda, os africanos com seus cortes para marcar o corpo, e aquilo dói. Em todas as civilizações as pessoas sofrem por isso. São pequenos atos que terminamos por ignorar. No entanto, quando o cara chega a um nível muito grande de realização, controla a dor, embora até lá doa mesmo. Por isso o nome Grande Budha. O Gautama ignora qualquer problema com o corpo físico porque busca algo transcendental, maior; busca encontrar-se com Deus, e por isso ele ignora se vai passar fome, sede, se vai pegar um resfriado, se vai chover. Ele senta debaixo da árvore e diz: “Só levanto daqui quando encontrar Deus.” Essa ação sempre me emocionou e fez gerar esse trabalho. Aquilo é uma árvore, qualquer árvore; a partir do momento em que crio as garras, aquilo deixa de ser uma árvore e passa a ser um objeto cultural. Quando interfiro nessa árvore, crio uma escultura. Depois vem a questão do tempo, da localização e todas as outras. Esse pensamento de transgressão da natureza, que existe tanto no ato cultural quanto no ato místico, foi o que gerou o Grande Budha.

 

O ato místico também como ato cultural…

Vendo cultura no sentido de culto, cultual, lugar cultivado, sim; no sentido da palavra, normal, corriqueiro, tem um ato místico e um ato estético.

 

Visando ao belo…

Acho que tudo está visando ao elo. Para os antigos era uma idéia até de sublime…

 

Seria isso o clássico em seu trabalho? A busca do belo, do rendo, da harmonia?

É uma certa arrogância achar que se vai fazer isso, mas toda arte é uma profunda arrogância do ser humano. No fundo é uma atitude prepotente. Quando eu dou aula sempre falo: o grande barato é o criar, ficar pensando. Esse é o grande barato da vida, porque, quando se acredita ter criado alguma coisa, você se sente próximo de Deus, porque o ato de criar é um ato divino. O único que cria, se existe, é Deus… E gerou pequenas criações que foram gerando tudo, como uma água se expandindo.

 

Quando nos submetemos ao ato de criar, de um certo jeito, conversamos com Deus… a sensação de criar – não só em arte, estou falando em tudo. A única coisa que explica Deus – para mim, é a criação.

 

Usando esses conceitos, como conviver com a idéia de Deus que está em questão?

Não há acordo quanto ao que é Deus…

Logicamente não é o Deus cristão.

 

Mas é um Deus, e quando falamos criar, é criar a partir do nada. A criação não seria particular. Diferente, por exemplo, do pensamento grego, do surgimento a partir do caos. E o caos é diferente do nada…

Esse pensamento em relação ao nada é mais ligado ao pensamento oriental. Geralmente a minha idéia, o meu jeito, a minha primeira sensação do universo é mais oriental. Comungo nas grandes questões, com a idéia de deus, de criação, com o pensamento oriental. Muitas experiências que tive em arte, mas também místicas, aconteciam antes na cabeça, meio amorfas; sabia mais ou menos como estava pensando, mas não estava claro, porque talvez ainda não as tivesse percebido em sua totalidade. Muitas vezes lia coisas que comungavam com essa sensação amorfa, que me dava a sensação de já conviver com aquilo que eu estava lendo. Antes de terminar a página sabia como aquele pensamento ia terminar. Isso não foi nunca com uma experiência cristã ou agnóstica, de tendência ocidental. Apesar disso, minha idéia de Deus, hoje, está calçada no pensamento hebraico. Tem muita contemplação/concentração no meu trabalho. A contemplação é para dar essa seqüência. Em alguns casos imediatos, como o Grande Budha, você põe o tempo na cabeça como um filme e imediatamente vai pensando outras questões. O sagrado pode dar em outras questões. Não há um ser humano que olhe o Grande Budha e não o continue na cabeça. Isso é que me interessa nele. É uma contemplação com uma seqüência imediata.

 

A arte conceitual também é uma forma de a arte existir só na cabeça…

Por isso que todo artista conceitual se não tem um dado místico, pelo menos tem uma identidade, um respeito profundo. Trabalha com o mundo da idéia, pode ser até o mundo das idéias, como em Platão… É mais além do que se está vendo.

 

Você se compreenderia ascético?

Nunca parei par apensar, quando era jovem talvez. Havia duas questões: primeiro, um profundo respeito pelo comunismo, sobretudo por uma certa influência à distância de um tio comunista, que eu respeitava. Mas o grande fio era o fato de esse tio ser poeta. Eu achava que lendo poesia poderia encontrar Deus em dois minutos. Era o momento esperado. Quando li e não aconteceu nada… Você, pequeno, ouve seu pai falar, aquilo vai fazendo sua cabeça Lembro-me quando peguei o primeiro livro de poesia na mão do Rilke, que já conhecia de nome, mas nunca havia lido. Lembro-me, também, perfeitamente do primeiro dia em que o li, como alguém que viu o mar pela primeira vez depois de velho. Eu tinha uns 11 anos e não vi Deus…

 

27.05.2004

Voltando às trilogias. Como surge a idéia? Não exatamente a genealogia dessa idéia, mas como essa Trilogia se inscreve em seu trabalho, em sua trajetória?

Percebi que era uma trilogia na proposta para a Bienal. Na ocasião pensei: “vou fazer esse trabalho.” Esse conceito me emociona, ainda mais com aquela sensação dada pelo mármore. Não sabia ainda que faria os outros, mas alguns temas voltavam. O vazio já estava estruturado, e percebi que eram três trabalhos, sem pensar em uma trilogia. Os trabalhos sobre o tempo, como o Grande Budha, por exemplo, já existiam… Além dos espaços mais abstratos, percebi que trabalhava muito com a questão do tempo, ora em sua dimensão ilimitada, como em Mesa, no Sul, ora em volta do instante, por exemplo, na dormideira [Mesas, 1995]. Mas nunca considerei resolvido o problema do instante. Com o Vazio Coração, com as fotos, acho que resolvi o lance do instante a partir do princípio da foto, que é fotografar o momento. Senti-me satisfeito. Gosto quando se vai direto no óbvio, não no sentido de o destruir, mas de botá-lo todo para fora. Quando acontece isso, acho que está certo. Quando se faz uma coisa e outras vão acontecendo do seu lado, vai te confirmando. Por exemplo, no Vazio Coração: quando vejo, a coordenada escolhida cai ao lado de uma mina de cobre, que se chama “Tesouro”. Por isso apelidei o trabalho de “Tesouro’”. O cobre é um metal que os antigos relacionavam com o coração. O chumbo, por exemplo, está relacionado com as coisas mais sexuais, com as glândulas supra-renais, e o timo com o cobre e com o coração. É uma sensação meio xamanística.

 

É sua atenção à coisa simbólica…

É puro simbolismo! Essa conversa com Deus (numa linguagem mais plástica), essa conversa com a criação é extremamente simbólica. Manda-se uma, e ela responde em simbolismo constantemente, e você tem que ler. É igual a ler sonho, mas não só no sonho.

 

E transformar em representação esse simbolismo…

No caso, é sua confirmação…

Recentemente uma notícia de jornal me fez pensar em seu trabalho. Uma moça resolver atravessar toda a região atingida de Chernobyl, onde serão necessários, no mínimo 800 anos para que a radiação cesse. Como seu trabalho, são elementos assim, deixados pelo homem… Ronald Duarte, por exemplo, trabalha com os plásticos de garrafas Pet, que também precisam de 800 anos para ser destruídas, enquanto os rios vão sendo inundados. Seus “atos poéticos”, como dizia Lygia Pape, o Vazio Coração ou o Grande Budha, também vão durar 300 anos, 1000 anos… e tocam, poeticamente, esse “real da vida”…

Era uma performance? Poesia. Toda vez que escuto uma pessoa que pensa sobre o meu trabalho, para mim é sempre novo… essas durações longas, de tempos longos; isso é algo meio poético… Esse trabalho me lembra a poesia, e em especial, a poesia moderna. Havia um lado da poesia moderna que era a poesia da impossibilidade, por exemplo, eu sou o que não fui, o que não era. O Caetano fala do avesso do avesso, do avesso. É bonito. É a impossibilidade do ser que me toca quando penso a partir de 500 anos. É a impossibilidade de se ver isso. E aí existe uma humildade violenta: sentir o quanto se é pequeno. Não se consegue ver essa dimensão, nem física, nem mentalmente; 500 ou 800 anos são quase a mesma coisa, a sensação é a mesma, mesmo para alguém acostumado a lidar com questões de tempo, tipo o astrônomo… 300 milhões de anos-luz. Nunca veremos o Grande Budha se manifestar, nunca se vai saber… ou ter a sensação. Somos menores do que essas ações. Existe essa poesia, acho que foi por aí que a Lygia viu.

 

Outra matéria do jornal, que também me chamou atenção, foi a projeção estática do número de mortos em todo o mundo (creio que cerca de 10 milhões) em 2010, não importando o tipo de morte, se biológica ou em guerras e catástrofes naturais… A finitude humana em estatísticas ou tradução matemática desse drama filosófico fez-me pensar em seu trabalho e em sua idéia de tornar o vazio presente de diferentes maneiras, abstratas, reais ou, como você falou, no “retrato”, como no Vazio Sexo. O vazio relaciona-se com a idéia de ausência, apesar da distância profunda entre as duas coisas. Na cultura ocidental, em particular na arte, e desde o Colosso, volta sempre a questão de tornar presente a ausência… Por exemplo, a possibilidade de uma representação do divino era a possibilidade (ou não, segundo os iconoclastas) de representar o incomensurável; e na representação clássica, secular, o objetivo último não deixa de ser tornar presente a ausência. Ausência, vazio, incomensurável… tudo se toca, creio.

Mostrar o que não se vê… O artista plástico sempre buscou isso… Para mim, a ausência está mais ligada ao abandono do que ao vazio. Todas as percepções mais interiorizadas que tive, nesses anos todos, me passam uma sensação de vazio e são indizíveis. Mas geralmente têm algo em comum. Toda a percepção eu me fez mudar de consciência, ao se repetir, virou um hábito e se incorporou à vida; muda-se a consciência, o olhar e se torna um ser humano diferente. Geralmente elas acontecem com sensações de vazio, não é vazio de ausência ou da perda. Ao contrário, é um vazio num comportamento, numa ação. A idéia de vazio está violentamente presente ao trabalho e, de um certo jeito, na minha vida. Nesse trabalho recente no Ceará [Vazio Coração], veio junto uma sensação de abandono – não no sentido ruim, mas bom, que cresce, joga para cima e é necessário. Vazio Coração, feito com dois trabalhos (no Chile e no Ceará), gerou um terceiro, que na realidade engloba os dois. Pode ocorrer em um espaço tradicional de arte, e, ao mesmo tempo, não. Tem essa particularidade. A parte realizada no Chile foi toda resolvida mentalmente. Sabia a coordenada, decidia antes, mas não como era o local; sabia o que ia fazer, desde tomar o pulso do meu coração, de como montar as máquinas em direções opostas etc… Não importava nada do que ia acontecer, estava tudo resolvido mentalmente; foi uma surpresa perceber que as fotos iam estourar… O do Ceará, ao contrário, foi todo feito do acaso. Sabia mais ou menos como a coordenada ia bater no litoral, podendo ter modificações. Quando vi no mapa que caía perto de uma praia chamada Redonda (estava fazendo a bola…), foi aquela confirmação novamente, da qual falei: “É por ai…” Se tiver que chegar um pouquinho para cá vai dar na Redonda… Lá soube da existência de um local chamado Ponta Grossa, no final da Praia Redonda, e eu havia colocado grossos pinos na esfera. Foi tudo acaso. Antes, só sabia que ia botar a bola dentro do carro e sair andando pela praia, até onde fosse possível. Se houvesse algum obstáculo, até pelo seu peso, ia ficar por ali. Se o carro não conseguisse chegar, alugaria um burro com uma carroça, mas, se também não conseguisse chegar com uma carroça, ia botar o mais próximo que pudesse da coordenada estipulada. Todo feito de acaso, no final, ficou exatamente como havia pensado, sem surpresa alguma. Quando percebi isso, me invadiu a sensação de abandono e realmente percebi que ia abandonar o trabalho lá. Diferente do Grande Budha: procurei a árvore e montei o trabalho no local; sabia que era lá. Estou convivendo com uma pessoa que sempre me fala dessa sensação de abandono, talvez isso tenha me dado a noção… Quando comecei a me ligarão mundo espiritual, passei a jogar tudo fora. Não guardo nada. Uma amigo meu sempre fala: “O Nelson, não usou algo em uma semana, logo joga fora”. E é mesmo, como se fosse um desapego. Por isso, talvez, nunca fazia fotos dos trabalhos nem uma série de outras coisas. O Vazio Coração me lembrou da minha adolescência e o começo da relação com o mundo espiritual, como algo muito próprio meu. Ver o desapego, o abandono de determinadas situações para gerar outras. Vejo esse trabalho assim: no desafio da ausência está a idéia de vazio novamente, mais sentimental, que era o que você estava falando. A ausência, de um certo jeito, me lembra esse abandono. Imediatamente depois do abandono vem uma sensação de ausência, mas não são coisas ruins, geram mudanças. Na floresta, onde está o Grande Budha, o espaço parece estar a um palmo além do seu corpo. É diferente dos pampas, onde o seu espaço é enorme… São quatros espaço na Cruz na América – praia, deserto, pampa e floresta. Mas isso não foi pensado de antemão, embora se possa dizer que é mental. E viver esses espaços gera pensamentos sobre o trabalho…

 

23.05.2000

Que música você pensaria em escutar no Grande Budha? Música, maestro!

Miles Davis. Acho que sim. Miles Davis, Caymmi e Jimmy Hendrix. Tem um lado agressivo no Grande Budha que foi proposital, para dar a sensação de penetração. No fundo não é, porque não vai matar a árvore; se matar acaba o trabalho. É alguma coisa da adaptação… Eu poderia ter feito uma bolota, mas eu resolvi fazer a garra, que é da retina; de viver o famoso ato de Buñuel, o corte… Com a música eu nunca fiz essa relação, mas com o cinema sempre me veio essa imagem. Sabe aquela imagem que ele corta?

Acasos predeterminados

27.05.2004

Alguma vez você fez relação com o vazio do Yves Klein?

Não, eu nunca estudei profundamente o vazio do Yves Klein. Uma vez fiz uns desenhinhos com o azul para uma exposição em São Paulo. Eu estava ao telefone com o cara: “Como é que são os trabalhos?” – Tem uns azuis-klein [risos]. Igual ao marron-vandick.

Gosto daquele trabalho no qual ele se joga. Aliás, é uma das últimas jóias que a França deu para a humanidade. Assim com Gandhi é uma das últimas jóias que a Índia deu para a humanidade. É como uma doação dos países.

O vazio do Klein está relacionado a uma zona imaterial da sensibilidade, à ausência do objeto, à imaterialidade. De certa maneira, seu trabalho, também, ao supor essa coisa mental e, assim, também uma zona imaterial. Pelo menos, há essa possibilidade.

Os Imateriais… é bem oriental. E ele tinha essa coisa; o judô, por exemplo… Nos meus vazios nunca há a ausência do objeto; nem na foto, que é o trabalho que mais se pulverizou… restam as fotos. E o Vazio Coração é um trabalho muito ligado ao sentimento, à idéia do amor…

 

De certa maneira, no Klein também não, pois, restam os contratos, registros etc. Podemos também pensar o vazio com algo clássico da escultura, da relação entre pleno e vazio, de zonas côncavas e convexas, das sombras e das luzes. Relações, acho eu, também presentes em seu trabalho, em sua materialização e na forma como se apresenta. Há algo escultórico muito presente no seu vazio…

Nunca havia pensado sobre isso. Mas é verdade, até no uso do próprio mármore, a coisa de se retirar… Desde pequeno, desenhava as sombras; não gostava do traço só. Sempre tive esse negócio de dar volume, de dar a sombras. Aliás, o traço não me fascinava, me fascinava a sombra.

 

Em sua recente exposição em Vitória [maio 2004], você apresentou o Vazio Coração pela primeira vez. Como foi?

Nunca falei tanto em uma exposição e, no entanto, o trabalho não é falado. Tive que montá-lo, não como estamos pensando para a mostra no Paço, pelo fato do o espaço não ser grande e ter outra configuração. Quando se entra, tem uma parede, nela concentrei todas as fotos; no resto apenas os dedos e os pés, com as coordenadas do próprio espaço, e fotos de um lado e de outro. Na entrada, as duas fotos: a do Zenite e a do Nadir (que é o chão) e a das quatro direções, na verdade não norte, sul, leste e oeste, mas as dos trabalhos a do Grande Budha e a da Mesa; a da direção do litoral do Ceará (a qual determinou onde ficaria a esfera), e a oposta a esta, em direção ao Pacífico. As pessoas perguntavam, perguntavam… É o trabalho sobre o qual mais falei, talvez por ser sobre o sentimento.

 

Como se constitui a cruz?

Para achar o local onde ficariam os dois trabalhos que formam o Vazio Coração, utilizei o ponto médio entre o Grande Budha e a Mesa, e a partir dele tracei uma perpendicular para obter a direção. Para encontrar o lugar precisei, usei a mesma longitude do Grande Budha e no ponto de intersecção situei o trabalho, o que deu o deserto de Atacama. O prolongamento dessa linha até o litoral brasileiro deu o quarto ponto, que caiu em Ponta Grossa, no Ceará, formando-se assim uma cruz entre os trabalhos (Grande Budha, “Tesouro”, Mesa e “Ponta Grossa”). As fotos, como disse, foram feitas com as duas máquinas colocadas em direções opostas, no ponto de interseção acima referido, e disparadas ao mesmo tempo. Foram direcionadas para o Grande Budha (no sentido Norte-Sul) e na direção do meridiano onde daria o Vazio Coração, no Ceará, mais a direção do Zenite e do Nadir (nestas duas últimas utilizei apenas uma máquina). A direção da Mesa serviu apenas como elemento para traçar a perpendicular que encontraria a longitude do Grande Budha.

23.05.2000

Você utiliza o GPS para determinar as coordenadas. A Nasa, com uma empresa americana privada, está registrando 70& do planeta em uma espécie de mapa com suas camadas, em que se vê tudo o que está acontecendo. Digamos que seja como milhares de relógios do espaço: tudo está marcado. Acho engraçado pensar seus trabalhos, como o Grande Budha, sendo localizados nesse mapa…

Não é um espaço físico, mas sim de coordenadas, puramente mental, onde não se tem a sensação física desse espaço.

 

O espaço de coordenada não é o da representação, é um espaço de construção.

São acordos…

De construção e de convenção. Todos concordaram que as coordenadas seriam assim, é um axioma. A coordenada é um acordo, “acoordenada”, quase.

 

É o que se poderia chamar de espaço cronológico que parece existir em seu trabalho… no qual a questão da coordenada é fundamental.

Com certeza. Por exemplo, poderia ter colocado o Grande Budha, no jardim lá de casa, mas me interessa… que esteja nessa coordenada. Essa primeira coordenada foi dada por outra sensação, mas me interessou muito, ela só teve o “visto bueno”, quando soube que caía no meio da floresta, igual agulha no palheiro.

E se caísse em outro lugar?

Talvez eu mexesse na coordenada. Não sei! A linguagem visual tem dois mundos. Um é o mundo do conceito, no qual queremos explicar o mundo; a grande experiência desde a Renascença até hoje, de que o mundo explicado é o mundo verdadeiro. Chegou-se a um ponto da ciência contemporânea em que nem vemos, mas o que se prova teoricamente passa a ser realidade. É um mundo mental. Mas existe outro mundo, o de as coisas não serem entendidas, que não é valorizado. Existem algumas civilizações que não querem entender ou analisar o mundo, querem se sensibilizar com ele… Podemos ter os dois exercícios. Nem tudo precisa ser entendido. As últimas percepções artísticas também não. Apesar de sermos formados para aprender, para entender, isso é como se fosse um trampolim. É um misto de experiência pessoal acumulada e sensação. Não entender nem explicar o espaço, por vezes é fundamental. É de outra natureza. Por isso a boa arte se torna atemporal. Ela já não envolve questões sociais, de localização, de tempo, ela é de outro nível de percepção. Por isso entendemos alguma coisa da arte africana, da egípcia, da renascentista ou da tântrica. Não é o caso de se colocar no tempo; ali não, você tem que baixar o entendimento.

 

Quanto às coordenadas: você fala a respeito do trabalho mental, no entanto existe um lugar onde a coordenada “cai” que é indissociável de suas determinantes, como cada paisagem. Por exemplo, no caso da Mesa, o pampa traz seu conjunto de evocações…

São acasos predeterminados. Houve uma comunhão muito interessante: a sensação do pampa era aquilo que a Mesa precisava. Eu não poderia dizer para as pessoas do Itaú que ia botar a Mesa no Sul, eles é que falaram “de Santa Catarina para baixo”. Eu sabia que o paralelo 30 passava por ali… O Grande Budha e a Mesa são irmãos, aliás, o Grande Budha foi quem gerou a Mesa.

 

A paisagem em si é exatamente onde se perdem as coordenadas, porque a paisagem supõe o horizonte que se desloca, supõe exatamente a localização onde se está.

Determinar as coordenadas e “cair” em uma paisagem não deixa de ser curioso.

Eu cheguei por outro lado, o da não-composição. No final é uma briga contra Golias. Davi ganhou, mas geralmente se perde. É o problema da antiarte, no mínimo você tem que fazer uma arte que seja antiarte.

 

17.05.2002 [Página 49]

A Mesa, em Uruguaiana, coloca a questão da relação com o horizonte, intercepta de certa maneira o horizonte…

É uma porrada, gira-se 360º… plano… existem apenas alguns aglomerados de árvores, que as fazendas plantam para ter tronco de eucalipto ou outra coisa. De vez em quando então tem uma ou outra árvore, o que é natural. Não tenho certeza, mas me parece que o mar chegava lá.

 

São 22 árvores em volta da mesa. Segundo você, poderiam ser 18 ou 26…

Calculei o espaçamento da própria árvore, por exemplo, quanto uma árvore dessa tem que ficar distante da outra. O botânico disse para não plantar com menos de meio metro entre cada uma, e era o que dava para trabalhar. Não poderia ser 18 ou 20 porque iriam ficar muito longe e perderiam o ritmo; e não dava para ser mais de 26, porque ficaria perto demais, e uma copa ia bater na outra. Então são 22, 11 de cada lado.

 

Qual relação com o número 22?

O 22 é considerado um número mágico. Por exemplo, Cabala quer dizer “o poder dos 22”. Porque eles associam o que chamam de Árvore Sefirótica aos caminhos pelos quais a presença divina chega à Terra. É um gráfico que lembra uma árvore genealógica, com bolotas e uns tracinhos… Na realidade, existem 10 séfiros, que são essas bolotas. Esses pensamentos são tão lindos… na realidade não são 10, são 12, mas dois são indizíveis… Um é impossível de ser falado pelo ser humano, não há expressão; o outro é impossível de ser entendido, mas é lógico que no universo devem ter coisas que são impossíveis de se entender. Eles se resumem a 10, e, por exemplo, tem o séfiro da beleza, tem o séfiro do rigor, tem o séfiro da clemência. São como atitudes. Através desses 10 séfiros existem 22 caminhos que se podem percorrer, e chegar. Então são 22 processos pelos quais a divindade chega na Terra. Por isso o nome dos 22, por isso o alfabeto hebraico, que tem 22 letras e é todo amarrado… Cada letra representa algo. Assim, o 22 tem um significado. Não acho que todo o universo pode ser entendido. Não dá para deixar barato… se tem algo para resolver, preciso procurar alguma coisa que tenha relação.

 

São figueiras, não?

Essa árvore também existe na cidade. Cheguei até a tirar fotos, sem saber o nome. Existem várias figueiras. Segundo um botânico essa figueira não é nativa, veio da índia e se adaptou super bem, gerando algumas outras figueiras.

 

E leva 250 anos para crescer?

Geralmente é o tempo de uma árvore dessa ficar adulta, depois o crescimento quase estagna. Até aí ela está crescendo lentamente. Outras levam 500, 600 anos. Esse é o tempo de crescimento, depois tem o tempo de vida, que deve chegar a 1000 anos. Existem várias com 1000 anos. Antes de Cabral chegar! Na realidade, 250 anos, 1000 anos… não temos a mínima noção. É como falar de um Fusca 19733 ou 1975, não importa mais: é Fusca antigo. Esse tempo não é nosso, com ele temos uma noção de eternidade. De eternidade não, mas de longo alcance: 300, 400 anos são a mesma coisa. Pode-se dizer, por exemplo, que 500 anos para um jequitibá representam 21 anos para nós.

 

Não estaria relacionado à entropia, à imprevisibilidade e invencibilidade do tempo? De qualquer maneira, apesar de um tempo tão longo, no final, ele estará sujeito ao processo orgânico…

Nunca pensei por aí, mas na impotência, na certeza de que não vamos ser. Somos pequenos perante isso, que tem milhões de atos. O tempo realmente manda na situação. Essa impotência total, para mim, é poesia. Nas fotos da Mesa, os postezinhos das árvores ainda jovens, evocam o tempo, e sua situação, a sensação de amplidão. É um gozo delicioso, quando todo mundo sai e você fica sozinho… Dá uma depressão suave e ao mesmo tempo uma paz. É uma delícia nos Pampas.

 

O efêmero é um dado do momento histórico em que vivemos, tanto na indústria, por exemplo, cujos produtos são pensados para uma curta durabilidade, quanto na arte, pela valorização do evento. Em seu trabalho parece haver a idéia de clássico, de uma arte para a eternidade. Ao mesmo tempo, por ser orgânico, independe de você que as árvores cresçam, que a cidade chegue lá…

Concordo… De certa forma é um viés meio contrário, mas também convive… Acho importante a relação com a paisagem… se a cidade chegar lá é novamente, de um certo jeito, a questão da composição, do vazio, da forma. A sensação do Pampa, eu tinha na cabeça, mas nunca havia ido lá. Então joguei a coordenada no eixo do paralelo, para não pensar se colocaria mais para cá ou mais para lá. É a mesma coisa que dizer: “Essa forma não é minha”. No fundo, não vou abdicar da composição, por ser impossível, mas não posso incomodá-la de vez em quando. Podendo passar a perna nela, imediatamente eu passo. É como a morte, estamos sempre morrendo a cada instante, mas podemos não pensar nisso e até ignorá-la ou mesmo ir contra essa idéia, o que não impede o fato de estarmos morrendo a cada instante. Aí somos impotentes novamente; a composição é sempre mais do que o artista, sempre haverá alguma, mesmo que você não queira. Para o artista, qualquer ato, escolha ou decisão pode ser considerado ato compositivio. Há também o seguinte: a gente veio ao mundo com dois braços, não vamos cortar um; se você quiser atrofiar, atrofia, mas cortar não. Quando for necessário usa-se. Quando realizo eu mesmo as peças, é um grande exercício de composição, até porque essas peças, no fundo, para mim são sempre exercícios. O livro verde [Nelson Felix, Casa da Palavra, 2001] é isso, se trata de tudo aquilo que não considero exercício.

 

Voltando à questão do tempo e à idéia da obra de arte como algo eterno… de fato, quando se vê a Última Ceia, de Leonardo, há algo de imponderável…

Nunca a vi, mas espero não morrer sem vê-la. Não porque, na minha cabeça, ache um grande trabalho, é mais a questão mesmo da Santa Ceia, a questão histórica, religiosa, para mim, é um doideira. Vi recentemente o filme do Martin Scorcese A última tentação de Cristo, é um filmão. Sempre achei que aquilo fosse verdade, embora não saiba qual é o autor do livro que dá origem ao filme. Cristo vem de “cristalizar”, então são esses seres humanos cristalizados. Jesus foi um Cristo, e outros Cristos haverão. É um nível de consciência; Buda é também um nível de consciência… Se ele é um cara com consciência crítica, ele sabe tudo o que acontece, tem total controle. Se tudo isso gerou um pensamento, dois mil anos pelo menos de influência sob os auspícios de uma divindade, não ia ser grátis! Um Judas, por exemplo, estava programado. E A última tentação de Cristo, tanto o livro quanto o filme, é sobre isso. Fala de um outro lado de Judas colocando-o como o dedo no gatilho: “Cabe a mim fazer isso? Então eu vou fazer.” Aquele momento gerou a crucificação. Se Jesus é esse ser humano, ele não teve o menor problema de ser crucificado. Na Yoga há estágios porque grandes seres humanos passam. Um deles é o Pratyahra, que é simplesmente o total controle das sensações, até a supressão da dor (mas é diferente do faquir, que faz aquilo para demonstrar). Em todas as religiões havia sacrifícios, morte de animais, sangue… Na religião católica esse foi o único sacrifício, quer dizer, um ser humano fez um sacrifício por todo mundo. E a cruz é símbolo armado nessa situação. Fico fascinado com esse tipo de coisa, e a Santa Ceia é muito isso, é um conto da carochinha. Da Vinci tem um estudo dessa obra que dá indícios disso, pela posição dos apóstolos, seus simbolismos e mesmo posição psicológica… coisa mental.

 

E a Ceia está fazendo 500 anos…

Nunca pensei sobre isso, não, mas é mesmo…

 

Orquestras e violinos [Página 52]

30.05.200

Você está indo para o Acre realizar o Grande Budha. Você pensa em uma árvore pequena ou já crescida?

A idéia é chegar naquela coordenada e procurar, nas proximidades, uma muda de árvore de lei, que eu não plante, que já seja adaptada ao local. Nós vamos sair com o mateiro, se for um jequitibá, é de lei. No ano passado, ou dois anos atrás, morreu um jequitibá patriarca do Brasil. Tinha 1500 anos, mesmo assim morreu porque não cuidaram dele direito, poderia durar mais. O tronco chegava a quase 3 metros de diâmetro, 50 metro de altura (um prédio de 15 andares). Paulo Fevereiro, botânico do Jardim Botânico e chefe das leguminosas, que me ajudou com as dormideiras, desse que para chegar à idade adulta são, no mínimo, 250 anos, e a partir daí continua, mais lento, mas continua crescendo. No caso desse trabalho, o que provavelmente pode acontecer, se der certo, é que as garras vão ser totalmente comidas. Se o jequitibá conseguir chegar a essa idade, não vai sobrar nada. Só vai ter a garra lá dentro. Pretendo trabalhar com uma distância entre uma ponta da garra e a outra de 1 metro e 80 centímetros.

 

Se a árvore absorver as garras, ela vai se enfraquecer?

É como um pino no seu osso. O osso cria uma amálgama tão grande com o pino, que ele absorve e até se estrutura mais.

 

No final é uma operação Genesis…

O que gerou a série Genesis, foi a idéia da morte, à qual você se referiu. Por exemplo, o organismo morre, mas alguma coisa continua vivendo. E o que é que vive? A cultura. Como se entende o egípcio? Pela arquitetura, pela escultura, pela jóia, pela roupa que ele deixou, quer dizer, nós não o entendemos pelo ser humano. De um certo jeito, nós os entendemos pela cultura mais sólida que deixaram. Por isso, colocar dentro de organismos vivos, objetos relativamente mortos, mas por serem construídos culturalmente continuam “vivos” quando o organismo morre. O que existe é cultura. Não é porque tem uma pedra, é porque aquela pedra foi trabalhada e virou um objeto, que é cultural e chegou até nós. Então ele continua vivendo. É também uma forma de vida. Foi isso que gerou a Série Genesis, e essa série, de repente encontra o Grande Budha.

 

Como também a Mesa, a Laje…

São milhões de idéias, mas tudo é um negócio só. O Grande Budha tem muito do tempo. Na realidade são até dois tipos: o fato de estar no meio do nada, apesar de ter o GPS, está no meio da floresta, há milhões de árvores irmãs ali, milhões de copas semelhantes. O tempo é meio cosmológico, como havíamos falado, não o tempo linear ao qual estamos acostumados.

 

Há uma espécie de declinação de vários elementos, incluindo os diferentes reinos. Você os coloca em equivalência, se relacionado, como no caso da dormideira ou da interferência na ostra…

Sabe que foi a partir da ostra que surgiu o primeiro pensamento? Apareceu um pseudoconvite para fazer uma exposição de jóias na H. Stern. Eu desenho jóia?! Até que eu tenho um certo prazer em desenhar jóia, mas o grande barato é que quando colocam um problema e você o ignora. Não queria responder o que essas pessoas esperavam. Então me propus a criar uma ostra, onde eu colocasse um diamante dentro para gerar uma pérola. Em vez de desenhar um broche, um colocar, a minha jóia vai ser um diamante dentro de uma pérola. Eles teriam que colocar um vídeo ou texto, dizendo que a jóia estava sendo transformada… etc.etc… mas o projeto foi por água abaixo.

 

A pérola incorporaria o diamante? Em quanto tempo?

Lógico, como as pérolas artificiais. Esse é o processo para criar pérolas, na Polinésia e em outros lugares… Eles colocam grãozinhos de areia, ciscos, para gerá-la. Não tenho a menor idéia, mas acho que não é uma questão de muito tempo, alguns aninhos. Antigamente eles procuravam ostras para ver se tinham pérolas, então sabendo disso começaram a fazer viveiros. A pérola é um tumor das ostras, ela vai criando aquelas crostas para se proteger desse cisco que entrou. E essa espécie de ola, como o tempo vai tendo mais e mais camadas. A minha idéia era criar essa jóia. No todo é mais bonito até do que a Série Genesis. Foi imaginando isso que comecei a levar para outros reinos da natureza e a ver que o objeto deveria ser feito pelo homem… Passando por essa questão da vida e da morte, pensei que o objeto, sendo cultural, mostra que foi feito pela mão do homem. Por exemplo, o diamante tem que ser mínimo para dar a idéia do cisco, mas ao mesmo tempo, ele é lapidado, não é o diamante bruto, a estalactite… E sempre tem uma aura nos objetos quando são usados matérias nobres como marfim, ouro, diamante etc. Gosto disso na arte. Algumas coisas não precisam ser explicadas, são sensíveis, criam uma situação, explicam todo o resto. Todo mundo sabe que há uma questão ali.

 

Particularmente nas Lajes, com a ruptura na arquitetura e o confronto direto com a situação espacial, a pessoa se vê em uma situação iminente de perigo…

É, passa essa sensação através do peso, da tensão, da ruptura na estrutura do prédio… Idealiza-se que ele está desequilibrando pela presença do volume embaixo, preso por um cabo de aço só… tem uma presença… O Pilar não; é um pular cortado no qual entra um trilho, tem menos espetáculo do que as Lajes, mas é direto na medula, na coluna do prédio. Não tem a mesma presença das Lajes, o problema é mais centrado. O trabalho é, aparentemente pequeno, mas na verdade passa a ser todo o prédio. É trazer o espaço para o tempo, pelo menos visualmente. Trago o Grande Budha para o Pilar. Visualmente são irmãos, mas é o jeito de você fazer o Grande Budha na arquitetura.

 

17.05.2002 [54]

Há algum tempo vimos conversando, e nesse período ocorreu a realização do Grande Budha, 1985/2000, que até então era uma imagem e se tornou um fato. Aconteceu também a Série Árabe nas cavalariças do Parque Lage, a qual além da interferência no espaço teceu, igualmente, relações entre diferentes espaços e temporalidades. Que continuidade você vislumbra para seu trabalho e que questões se fazem presentes hoje?

É, depois desses dois trabalhos… Apesar de o Grande Budha ser mais conceito, sua realização foi extremamente importante no sentido de vivência; o trabalho foi vivido, com toda a sensação de entrar na floresta… Isso mudou a cabeça. Uma coisa é você ter a idéia redonda, perfeita na cabeça, sem, no entanto, conter a realização, e esta não me fez ver todo o trabalho de modo diferente. É difícil falar… Vou tentar falar da vivêvia pessoa, a sensação de ir realmente. Contatei pessoas da Funais, pessoas ligadas à Secretaria de Cultura, que é PT… O Acre é muito interessante, mesmo esquecido. O Brasil esquece o Acre. Talves por isso gerou forças próprias, com inúmeros movimentos não-governamentais fortes, não só no sentido ecológico, como também trabalhista, de preservação da terra, dos índios. Isso tudo me deu uma reviravolta. Já havia ido à floresta Amazônica três vezes, mas jamais havia vivo nela. Vi a dimensão do que estava realmente vivendo, e isso por causa do trabalho. Foi aí que o trabalho ficou mais espiritual… É difícil falar…

 

Qual a diferença entre um trabalho que existia espiritualmente, por meio de projetos, imagens e também de protótipos, e um trabalho que existe espiritualmente pela forma?

A vivência. Você vê a dificuldade da realização, torna o ofício sagrado – sacrifício, o sacro ofício. Você move uma situação e isso vai gerando uma dimensão não especificamente do Grande Budha, mas de todo o trabalho. Cria-se um carinho maior por ele. Você se propõe coisas que não têm por que ser feitas, não vai ganhar nenhum tostão, mas realmente quer fazer aquilo e pode passar a vida inteira assim. É muito saboroso. As coisas corriqueiras não têm o mesmo sentido, porque isso exige muito mais. Parece que abre. Já sabia que isso ia acontecer. Em vários outros trabalhos aconteceu a mesma coisa. A Mesa, 1997/1999, no Sul, tinha uma instituição por trás, o Itaú…

 

Essa é uma diferença importante…

É, no Grande BUdha não havia, era pura vontade de fazer. Para levantar a grana, aliás, vendi alguns trabalhos. É a coisa mesmo de fazer, porque eu gostaria que ele estivesse implantado quando saísse o livro. A Série Árabe, 2001, também. Eles foram próximos, e ela também foi assim. Os dois foram trabalhos muito difíceis de realizar. Foi um luxo, fiquei praticamente dois meses montando a exposição. Em um museu ou em um centro cultural, seja lá o que for, você não tem isso. O Parque Lage não se sabe bem o que é, se é alternativo, se é do governo. É um caso sui generis, não existe em nenhum ligar do mundo. Porque é um bando de artistas dentro de uma instituição do governo, que não vive do governo. Então você se dá o luxo de ficar dois meses montando, e, com os problemas que iam aparecendo, podíamos ir adiando a abertura. O trabalho via ganhando uma dimensão, e você quer que ele se do jeito que planejou; ao mesmo tempo, vai sofrendo pequenas mudanças, porque houve tempo para pensar e realizar. Eu me dei conta de que é isso o que quero, todo mundo sabe disso. Mas quando se parte para fazer, com a pressão da dificuldade de realizar o trabalho, você vai vendo que é possível. As coisas complicadas vão ficando cada vez mais simples. Já não acho tão difícil propor determinadas coisas.

 

Depois da escala do Grande Budha ou da Série Árabe, em que tipo de escala você gostaria de trabalhar hoje? É possível trabalhar em outras escalas?

Acho que sim. Depois de ter feito esses dois trabalhos, me propus a realizar uma exposição de desenhos. Precisava lançar o livro, mas não ficou pronto para a Série Árabe. Então vinculei uma exposição ao lançamento e me propus a realizar desenhos, numa escala mínima, para a Galeria H.A.P. Botei o carro na frente dos bois. Eu desenho a vida inteira, acho que sou isto mesmo, desenhista; mas na hora em que se faz, o senso crítico é violento. Você estava movendo orquestras e de repente move um violino… pela simplicidade que não tem o mesmo poder de fogo, então você mesmo já se destrói pensando: não posso mais fazer isso. Eu não consigo fazer nada de bom nessa escala, nada que tenha força… Foi muito interessante, por ser um tremendo desafio.

 

Depois de tudo isso, voltar a fazer desenho, e desenho pequeno, que se bota debaixo do braço, 70x25cm. Não eram de cinco ou três metros, como eu havia feito. Puxei o desenho para uma série de coisas, com o peso, buscando uma relação com a escultura, visando torna-lo um dado mental, conceitual, e que ao mesmo tempo me levava também a resolver questões clássicas do desenho, como, por exemplo, a aquarela. Havia resolvido determinadas questões ligadas à idéia do desenho, como o chumbo, que dava o peso, esticava o papel. Já não era o desenho, era uma questão de escultura – um papel pendurado sendo destorcido. Eu estava desenhando e ao mesmo tempo trazendo questões novas para o meu desenho. Isso me deu ânimo. Estava fazendo baladas, como John Coltrane, vou que o trabalho tinha a ver com ele. Coltrane fazia loucuras e de repente se propôs a fazer um disco de baladas… Talvez eu estivesse vivenciando a mesma situação. Dei-me ao luxo de fazer baladas e dediquei os desenhos a ele. Hoje sinto que posso trabalhar em qualquer escala. O que eu realmente gosto de fazer não é bem a escala, é o clássico; é o que o trabalho pede, gera, e eu vejo.

 

Nesse ínterim ainda teve o Pilar, no Arte/Cidade, 2001. Trabalho que você apresenta em seu último livro antes mesmo de tê-lo realizado, pois já estava resolvido conceitualmente no sentido de colocar em suspensão toda a estrutura…

… a sua realização também foi uma loucura. Nemeu sabia onde estava me entendo, só depois comecei a ver a dimensão. Houve uma hora em que estava de fora, olhando, e vi que havia umas 40 pessoas envoltas por uma fita (aquelas fitas de proteção). Havia duas fitas, na segunda só entravam realmente os envolvidos. Das 40 pessoas, oito eram engenheiros. Estava do lado de fora fotografando e pensei: “Olha com o que eu estou mexendo, olha a dimensão disso!” O principal ali não é o corte em si, é a sensação do espaço que realmente foi mexido. A vida pesa 600 quilos, mas na realidade estamos trabalhando com 120 toneladas: a escultura e o prédio. A partir do momento em que interfiro, a escultura passa a ser o prédio com esse novo elemento. É o Grande Budha na arquitetura. O Grande Budha tem muito a ver com tempo, apesar de sua relação com o espaço da floresta, da coordenada. Quando entro na arquitetura, lido com o espaço mesmo. Observar o espaço e pensar que tem todo um prédio em cima. A pessoa sabe, mesmo que não queira, e é obrigada a sentir essa nova situação estrutural e perceber o espaço que não está vendo, mesmo sabendo que está parado ali e agora. Esse espaço está sofrendo um novo equilíbrio que te obriga estar ciente dele. Diferente, mas igual ao Grande Budha, onde você tem essa sensação com o tempo, embora ele também se relacione com o espaço. A árvore, uma entre milhares, já está perdida, ao mesmo tempo o metal se perde dentro da árvore… o trabalho se perde várias vezes. O GPS é um jeito de não compor com a paisagem: não interessa a paisagem em sim, cai ali e pronto. Isso tem a ver com a Série Árabe também, é o inverso do site specific, pouco importa o lugar. Tento trabalhar ignorando o local. Acho interessante o que aconteceu nos anos 1960, 1970 porque realmente havia uma estrutura violenta na arte, principalmente nos EUA. Americano não sabe fazer nada sem virar negócio. Eles tinham que “chutar” o balde mesmo em relação às galerias e museus. Quando eles começam a se colocar viabilizam trabalhos que são pura idéia. Muitas vezes eram trabalhos caríssimos, precisavam de energia, de sangue, e no final tudo acabava sem relação com o mercado. Acho que naquela época não havia a noção de patrocínio. Isso foi bonito nesse pessoal, esse marco, de a arte voltar a ter o sentido mais clássico possível, ou seja, fazer arte pelo deleite de fazer arte; não tem o mínimo motivo. Além disso, é inexplicável. Nos olhos de hoje, isso já estando resolvido, você vê uma paisagem, faz um trabalho para ela e o compões ali… um pouco mais pra cá, um pouco mais pra lá. A composição é a coisa mais clássica que existe na arte, mais do que a clássica, ela é quase acadêmica. A primeira coisa que você pensa quando bota uma macha amarela é: “Vou botar uma mancha preta para equilibrar”. Não dá para ignorá-la. É igual a relação de vida e morte: nasceu já está morrendo, não tem jeito. Você pode fazer igual ao Bergman, algumas horas brincar com a morte, ignorar que está morrendo, não custa nada. É uma luta inglória, mas bonita. Tenho uma certa implicância com a composição. Nunca vou vencê-la, nem eu, nem ninguém. Por incrível que pareça, sempre vai haver uma. As garras forem feitas desse jeito, com um tamanho específico por causa da árvore… mas elas poderiam ser feitas assim ou assado. Houve uma hora que escolhi. Se eu escolho – um artista escolhendo – é composição. É uma atitude clássica, decidir e fazer um trabalho para aquela paisagem. Quando escolho uma coordenada brinco com isso: chuto esse balde. O trabalho vai ser aqui: ele entra na paisagem de qualquer jeito. Dá para ser constantemente assim? Não. Chega uma hora em que se acaba compondo. Por exemplo, 22 tem, como disse, relação com a Cabala… Toda vez que há uma situação dessas , respondo com uma atitude a priori, mas tem uma hora em que… a chapa tem um tamanho.

 

Seu livro Nelson Felix, Casa da Palavra, 2001 (o chamado livro “verde” e que lhe exigiu enormes esforços) é mais uma de suas recentes importantes realizações. Nele, você conjuga 10 trabalhos significativos em sua carreira, sobretudo os de escalas grandiosas, envolvendo milhares de questões…

Mesmo pequeno e discreto, gosto muito desse livro e acho uma grande vantagem ele ser pequeno e discreto. Em toda a minha vida, nunca soube muito bem o que fazer. Apesar de ser aparentemente organizado, até por ter morado em muitas comunidades, onde aprendi a ter hora para fazer as coisas e uma certa organização, eu era completamente desorganizado. Os pensamentos são todos assim, desconectados. Nunca sei o que fazer; se eu souber, eu já fiz; e, se já sei fazer, não me interessa. Quando me aparece um convite, ou um problema novo que me emocione, caio de cabeça. Fiz alguns trabalhos sobre a cruz; por exemplo, o trabalho do Parque Lage, a Série Árabe. Nele, tudo foi gerado no traslado de três culturas alinhas na arquitetura para uma novação posição ignorando aí a própria arquitetura. Ali eu havia feito uma cruz… Os antigos, antes dos cristãos, falavam que temos uma cruz simbólica dentro de nós. No sistema nervoso tem uma confluência de nervos chamada protuberância angular. São nervos horizontais na altura do gogó que se cruzam com os nervos da medula formando uma cruz. Antes da idéia da cruz cristã, os antigos sabiam dessa cruz. E, ainda, sabiam que, pelo fato de a Terra estar inclinada em relação ao Sol, seu equador e, logo, seu eixo tem uma configuração diferente do equador e, logo do eixo do Sol. A partir do momento em que estamos na Terra, sofremos essa inclinação. Se alinharmos nossa cruz de nervos com o eixo do Sol, ou seja, se nos identificarmos, segundo os antigos seremos liberados. Isso numa linguagem simbólica. A exposição do parque Lage foi difícil porque foi isso. Usei a cruz, e por acaso as paredes da construção estão alinhadas com o norte. Então, alinhei as três esculturas com a construção (norte) e rodei 23º. Elas não couberam mais na sala. O Pilar, no entanto, é uma cruz, literalmente. Se você olhar, é uma coluna com uma viga de ferro horizontal. Uma cruz construída naquele espaço. São três trabalho matando um grilo que eu tinha, não sei por quê, e mistura todas essas coisas. Para mim teve algo psicológico.

 

30.05.2000 [77]

Nesse seu contexto atual, como é sua relação com a arte contemporânea?

É legal, mordo e sopro. Quando as pessoas me chamam já sabem de antemão, já não se espantam. Isso facilita, não preciso ficar gastando palavra. A pessoa já sabe que está chamando alguém que pode fazer um desenho ou entrar numa floresta. Isso é om. As coisas ficaram mais claras na minha vida. Minha vida mudou muito, e mudou tudo. Pago mais para ver. Quanto a mim, me aliviou um pouco a ansiedade; e quanto aos outros facilitou, porque já conhecem as escalas que eu estou mexendo.

A ruptura na arquitetura, que o seu trabalho introduz, abrange aspectos extremamente concretos e, ao mesmo tempo, remete a um espaço-tempo mental… Você é arquiteto de formação, como se dá poeticamente, essa relação?

Comecei a ver que ou se mexe com o tempo ou com o espaço, não há outra saída.E é uma arrogância danada, porque estas duas questões são a chave de tudo. A princípio, a vegetação me permite trabalhar com o tempo, e a arquitetura me permite trabalhar com o espaço. Na arquitetura você está no espaço, mas sente que o espaço não é aquele que está ali. Na arte, para mim, o interessante é criar uma sensação espacial de ordem mais intelectual. Na Laje, apesar de se saber que tudo está calculado, por exemplo, com o medo que provoca, tem-se outra sensação espacial. Nesse caso podemos cair na questão do espaço específico porque mexe em questões que estão além daquele espaço delimitado como arte. Quando fiz as Mesas, toquei essa questão, por meio da dormideira. Você tem um peso de mais ou menos 200 quilos em cima das dormideiras (um “objeto que representa a máxima sensibilidade) – por isso coloquei as glândulas, as marcas do meu corpo, porque as dormideiras reagem por hormônio. Aquela reação é um hormônio que ela solta, como também acontece no ser humano… junto com essa questão tem a idéia do instante. Com toda aquela parafernália – granito, azeite etc. -, o trabalho acontece no toque, que é central, apesar de ter o ritmo, a forma da mesa, que é um cubo de 70 x 70 x 70, e outras soluções formais. Digamos que tentei fazer uma mesa que fosse do olho: a espessura tem um rigor construtivo muito grande, está alinhada, tem a divisão de 10 centímetros, que é um sétimo da medida do cubo, e que dá uma proporção harmônica etc. Há uma relação com a sensibilidade que as dormideiras me permitem passar – uma certa ignorância da sensibilidade, porque as dormideiras não estão nem aí com aquele peso em cima delas. Em compensação, nós estaríamos. Mas tocá-la… é botar o peso sobre a sensibilidade. O trabalho tem proporção, a mesa e o vaso, que criam o ritmo; há também uma série de questões e exercícios de escultura clássicos, mas a questão principal está no peso em cima das dormideiras. E, principalmente no toque: na mudança das coisas no instante do toque. A mesa pendula as toca, se não as tocar, as dormideiras ficam imóveis. De um certo jeito esse trabalho origina-se de Lajes: transformei o observador em dormideira e a arquitetura em mesa. Quando fiz o Vazio, 1992, na Bienal, criei um peso enorme para colocar dentro de um prédio, já estipulado. Quando olhei o espaço do Arte / Cidade, pensei em deslocar a arquitetura, porque era muito ritmada. Pensei em não fazer uma escultura ali dentro, como não era a proposta do convite, e sim em deslocar a arquitetura, produzindo nova sensação espacial com o deslocamento.

 

Colocar os pés sobre o chão firme

02.05.1999 [78]

 

Como você vê o encontro de sua ora com a de outros artistas, por exemplo com o de um pintor?

A pintura é muito lenta. A escultura, com essa coisa de instalação etc., que é uma conquista da modernidade, pode atuar em várias situações sem perder sua característica. Houve uma explosão do estilo. O artista não é mais obrigado a ter um estilo. O escultor, a pessoa que trabalha com a terceira dimensão, conquistou mais isso. Ele faz uma coisa aqui assim, pode fazer a seguinte um pouco diferente, a terceira mais ainda. Do pintor não se espera isso; espera-se uma sequencia, uma leitura, onde uma coisa venha atrás da outra… Se você for ver, quase todos os grandes pintores que atuam hoje são muito lentos. Por exemplo, o Ierê Camargo veio com toda aquela fase abstrata e, numa hora, mudo tudo. Vendo depois, o processo era mais ou menos lógico: a sequencia. Eduardo Sued é um processo lógico de pensamento, e você vai ver isso em 30 anos de trabalho. Na escultura, pelo menos de 1970 para cá, isso é diferente. O Cildo Meireles, por exemplo, de vez em quando usa a cor (Desvio para o Vermelho, por exemplo) ou trabalha com outros materiais, bolas, malhas etc. Em resumi, o fazer passa a ser aí um dado conceitua, como no caso do Beijo em Madalena, 1998.

 

Você veria essa diferença entre a pintura e a escultura em virtude da possibilidade de esta última existir em projeto que podem ou não se realizar, e a pintura estar relacionada a um fazer que a torna mais lenta?

O fazer tem isto: a descoberta no ato da realização. No meu caso específico, toda hora rola isso. Alguns trabalhos têm o fazer rigoroso, esse tipo de leitura que vai aparecer me interessa, por exemplo em Beijo em Madalena; estava claro que a realização era 50% do trabalho em si. Também era emocionante o fato de o trabalho ser do tamanho da galeria. Enchi a galeria de dois jeitos: com o tamanho específico do trabalho; e com o fazer, que era tão grande, que não dava espaço para ninguém respirar lá dentro. O fazer não é problema, nem solução: é um processo. Existe um pensamento no trabalho de arte que envolve isto ou aquilo. Às vezes, no meu caso, preciso do fazer, então eu o uso; no meu trabalho, o fazer é uma coisa secundária ou, sei lá, terciária. Quando posso fazer meu trabalho eu faço, até por questões financeiras. Às vezes, quando olho para um trabalho que não tem uma marca sequer de dedo, não tem uma situação, penso que aquela realização foi extremamente importante, porque existe uma ideia de projeto forte.

O projeto é 100%. Tinha que ser totalmente realizado assim. Na minha cabeça, resumindo, a questão do fazer, tem uma resposta clássica: é uma ferramenta. Você pode usar ou não. E fechou a porta. Tem que fazer o que o trabalho pede.

 

Na sua experiência, qual é a diferença entre uma exposição no museu e uma na galeria?

Na exposição com o José Bechara (Galeria Celma Albuquerque, Belo Horizonte, 1999) levei para a galeria um pouco da exposição que apresentei no MUBE, em São Paulo. De certo jeito, era um fragmento de um pensamento que foi colocado 100% no museu. Na galeria tinha uma relação extrema com a resposta do espaço; no museu havia também uma relação entre as peças, mas era um pensamento sobre escultura mesmo. Não é o pensamento mais abrangente da Mesa ou do Grande Budha. Era escultura tendo como principal o problema o mármore, que envolve uma relação com a tradição. Então essa exposição, com esse pensamento, foi levada para a galeria, onde dei uma certa amortecida. Alguns trabalho eram muitos complicados para entrar numa galeria comercial, então incluí mais dois, viáveis para esse tipo de espaço. Lembro-me de que em uma das minhas primeiras exposições, quando comecei a espichar os desenhos (alguns de seis metros de comprimento, ou verticais, de 4 metro de altura), tudo dependia do pé-direito. A relação do desenho já não era bidimensional, era quase uma tridimensão sobre a bidimensão da parede. A presença da escultura no espaço dá à galeria um espaço centrado que é um jeito escultórico de tratar o espaço. Parede branca, parede não-branca. A parede branca tem a mesma potência de uma parede cheia, de um chão cheio – isso é tratamento tridimensional. Tratamento bidimensional é se prender a uma tela e esquecer o resto. O Rothko planejou conscientemente o espaço, a partir dali houve uma revolução dentro do caráter pictórico. Eu senti isso. Queria fazer escultura, não tinha dinheiro. Eu desenhava, e os desenhos começaram a virar esculturas no espaço. Existem experiências comuns entre os artistas, passagens… cada um chega de um jeito, mas são pontos em comum. Em geometria chamam-se lugares geométricos.

 

02.05.1999 [82]

Você falava da escultura que pode ser transportada e que acontece na relação com o espaço, em outro momento. São objetos que existem e deixam de existir enquanto tal, na montagem. Não se tornam objetos auto-referenciais, porque precisam do espaço onde estão, e nem instalações pois continuam sendo eles mesmo, não sendo a relação com o espaço que os define. Nunca são iguais…

Én nunca. As manchas de graxa e do azeite, por exemplo, acabam saindo diferentes. Às vezes o molde está gasto. Existe hoje uma tendência, brasileira, predominantemente paulista, que tem a força de uma tradição: o escultor, o artista, faz uma exposição sobre um único pensamento. Ele pega um trabalho e o desdobra. Nessa exposição, na Celma Albuquerque, preocupo-me em resolver diferente, apesar de estar lidando com situação igual. Antes já havia feito trabalhos utilizando a relação entre um mármore quase papel de tão fino, e o papel embebido de \azeite. O Zebu, por exemplo, é uma placa de mármore finíssima, correndo pelo chão: ora tem um volume, ora tem o papel que também é embebido em azeite. Estou usando, de um certo jeito, o mesmo procedimento, mármore, papel, azeite, ora no chão, ora na parede, mas são dois tipos de solução. A minha preocupação não era fazer uma exposição com uma idéia, era fazer uma séria de coisas para resolver essa idéia diferente. Já estava lidando com o mármore e queria levá-lo até as últimas conseqüências. Há milhões de questões para serem exploradas… você encomenda o mármore de um tamanho, enquanto ele vem vindo, a sua cabeça continua funcionando. Pode demorar dois, até três meses – já me aconteceu de esperar até seis meses. Quando o bloco chega, você tem que trabalhar o mármore daquele tamanho. Então, a sua cabeça, que continuou funcionando, está limitada por esse tamanho do material. Às vezes, nesse processo de espera, seu pensamento já entra em outra; nem sempre se consegue entrar naquele espaço físico encomendado.

 

 

16.05.2000

 

Esse uso do material, não no sentido de ele adquirir uma forma, mas de poder por si mesmo trazer essa diversidade de significações, é também uma questão da Arte Povera, da Land Art… O material fala…

O uso do grafite, do carbono, por exemplo, é a questão do material, assim como o mármore é questão da tradição; por isso não uso mármore nacional e sim o de Carrara, é a evidência da tradição, assim o mármore é mais do que um material no meu trabalho, é um dado conceitual para mim. Com essa mesma questão fiz uma peça chamada Sono, 1984, que está na Coleção Sattamini. É uma bola de chumbo de 120 quilos, com gramas de tório dentro. Ali foi a primeira vez que usei no meu trabalho um material que possui uma presença. Existe uma sensação no Sono que vai além, quando a pessoa sabe da existência do tório, que é um elemento radioativo. A radioatividade está em mutação e vai se perdendo durante o tempo de vida do elemento. A minha idéia era fazer uma bola que tivesse vida dentro; assim, a presença do tório, mesmo que não seja vista é importante. É você usar um material que prova leituras por trás. Não sei… tenho um profundo amor pela escultura, pelas questões da escultura – peso, material, composição -, mas ao mesmo tempo tento ludibria-las. O peso tem sido para mim algo fascinante. A Mesa, em Uruguaina, com 41 toneladas, em 200 anos não vai ser mais nada. O Amálgama do ferro com as árvores faz desaparecer o peso do ferro. Uso um material, a matéria, buscando situações em que a explicação daquele material não seja estética… Quando parto para o mármore não tem saída: a idéia da tradição, o material se torna novamente material. Escolho um bloco de mármore grego, não pelo fato de ele ser mais branco ou ter mais listras, mas porque no grego começou tudo. Ele vem como vem. É o peso, mas é necessário detonar o peso; é o espaço, mas criando situações com o tempo, com o próprio peso ou com a sensação. Você vê uma laje de nove toneladas pendurada acima de sua cabeça – o que você vai sentir nesse espaço? É um site specific, mas essas questões não são específicas do espaço. Essa dicotomia não é para ser resolvida.

 

Talvez o grande problema colocado pelo site specific, o grande medo do conteúdo, seja o da narração…

Nós criamos preconceitos sobre determinadas palavras e quando não conseguimos mais pensar esses preconceitos, excluímos essas palavras. Acho que meu trabalho tem muita narração, sempre teve; mais do que narração no sentido de estória, é um amontoado de pensamentos, às vezes, dispares, às vezes não, que se impregnam e se grudam por trás de uma visualidade formal. Só a forma, para mim, não interessa, é exercício, embora ache que ela deva estar muitas vezes presente. É como tentar abordar o mundo por inteiro, o mais completo.

 

As primeiras criticas que fizeram em relação ao seu trabalho eram relacionadas à questão da narração…

Existia um preconceito nesse sentido: era como xingar a mãe.

 

Como eram esses desenhos, essa narração?

Eram histórias mesmo, onde um traço puxava o outro e, juntos, criavam histórias desenhadas, visuais. Esse desenho existia porque existia o anterior, que o gerava. De fato tiveram importância e numa certa hora isso me incomodou. Esse incômodo “morreu” com o Mário Pedrosa. Ele parecia um astrólogo. Quando olhou o trabalho, a sensação que tive foi de que ele lia a minha personalidade nos desenhos, como num mapa astral. Ele disse que eu nunca perdesse essa linha contínua. A idéia foi essa, mas ele não usou a palavra narração, essa linha, que é narrativa, é física mesmo. Desmoronou essa pressão da crítica, que já havia sentido antes, apesar de o trabalho não ter sido mostrado violentamente até então.

 

Talvez o grande desafio da arte agora seja inventar novas formas de “falar” sobre o mundo tão fragmentado. O trabalho visual existe sem a necessidade de determinar início, meio e fim. Desco o século XVIII háuma batalha por uma especificidade do visual como simultaneidade, pela não-sucessão. Será que a narração é só sucessão? Seria esse o temor que ela inspira?

Não, ela pode ser fragmentada e pode, ao mesmo tempo, ser entendida diferente, de acordo com a bagagem de cada um. Cada pessoa estala uma realidade, de certa forma discursiva. A ciência hoje é isso, o fractal, você não consegue mais entender o universo todo.

 

Em seu trabalho, os espaços, as coisas, têm concretude, mas, de certa maneira, estão com em alfa… Por exemplo, a Mesa: evidentemente ela está colocada ali, mas dá a sensação de poder deslocar-se…

Meio pairando… existe uma presença, mas não sufocante. Por isso usei o GPS – Global Positioning Systim, isto é, tomar posição geográfica. Você aperta o botão e tem a latitude e a longitude. A escultura sempre foi feita par ao local; às vezes não, mas 80% das vezes sim. Seja uma arquitetura… A partir do momento que eu brigo com isso, só me resta apertar um GPS. Vai ser no lugar tal. Eu já sei que é no pampa, e com isso na cabeça sei da dimensão do trabalho, senão o espaço o come. Tinha que ter pelo menos 40 metros de extensão. Ao mesmo tempo pode ser centralizado, como no Grande Budha. Quem conviveu muito com essa peça por informação, principalmente a Mesa, talvez quando a veja não tenha tanta alegria; é uma placa de ferro… Fazer essas peças na cabeça é mais importante do que vê-las, por isso o problema do site specific se pulveriza: é para fazer o tempo na cabeça. Há uma poesia nisso. Tem todo o ser humano, a importância, a força do tempo, do universo, da predestinação, mesmo no local não vamos ver o trabalho em sua totalidade. Mas não é uma impotência depressiva. Talvez a grande questão desse trabalho não seja a visualidade, mas a tomada de consciência da impotência.

 

Não há qualquer controle sobre a existência do objeto, impotência também em relação à arte…

Espero que não o roubem, está cheio de latão. Vou chumbar as garras, cavar uns buracos etc., estou levando cimento etc. E também não estou ligando, se der deu, se não der, a idéia é a idéia. Uma imagem que traduz muito, e que eu queria para o Grande Budha, são aquelas fotos tradicionalíssimas da Amazônia vistas de cima, aquele verde da floresta: passa a sensação de que o trabalho ficou perdido ali dentro, que é um mar. Esse pensamento em mim é muito claro.

 

Todas essas coordenada têm a ver com o mapa. No fundo é um grande mapa… O pensamento do mapa é outra coordenada.

É geometria, é um ponto, é o axioma… Todo o mundo se guia pela convenção, mas na realidade o espaço não é assim… A coisa da coordenada veio dar conta da composição mesmo.

 

Convenções que têm surgido dos mais diferentes conhecimentos e curiosidades.

Sim, mas tem que se identificar um universo extremamente fechado… A humanidade quando absorve alguma nova noção de espaço muda totalmente. Muito da revolução nos últimos 20, 30 anos foi porque absorvemos as noções de espaço da relatividade e da geometria não euclidiana… Isso tudo entrou no nosso jeito de pensar, de ver o espaço… O espaço para Newton era sensorium de Deus, como se ele fosse os poros de Deus. A idéia de plano é relativa, aquela curva de Einstein agora ficou chapada. Buraco negro é onde você passa de um espaço para outro. Toda a noção de espaço passa a ser um pedaço, porque se relaciona a outro e se torna infinito novamente. Por exemplo, há partículas que viajam acima da velocidade da luz; assim, o que se vê na realidade é mais lento do que o acontecimento nessa velocidade, ou seja, uma pessoa que está vindo para você, na realidade, já passou; em vez de estar aqui, ela está no referencial do aqui.

 

Voltando aos desenhos e à narrativa, essas primeiras esculturas…

Colocar os pés sobre chão firme, 1986, por exemplo. Gosto desse título. É meio zen. Esse trabalho foi o primeiro em que usei o grafite e o diamante. Em meio a essas 22 peças de grafite, tem um diamante jogado no chão, que não se vê, passa totalmente despercebido. Eu mesmo já perdi esse diamante umas três, quatro vezes. È mais a presença do que a jóia em sim. Diamantes mínimos e malfeitos.

 

E o número 22…

Tinha que dar um número. Gostei quando vi em um catálogo um trabalho do Walter de Maria e aquelas proporções que ele usava. No meu trabalho havia também uma relação entre a largura, a altura e a espessura do bloco de grafite. E a permutação entre essas medidas estava calçada na formação do alfabeto hebraico, que contem 22 letras. Foi essa mesma evocação que usei posteriormente na Mesa, com as 22 árvores. Nesse alfabeto, cada letra tem uma representação, que são os sete buracos do rosto. E em cada letra um significado: são três letras mães, e essas geram todas as outras, sendo sete letras duplas e 12 comuns. Então, três peças são mães, 0,5 cm maiores do que as outras; sete peças são mais largas… Mas isso ninguém percebe. Nada é indicado. É igual contar piada e só você rir. Tudo tinha uma razão de ser; tinha não, tem. Sono, 1984, foi uma das minhas primeiras esculturas, é filho das esferas que entram uma na outra; Cabeças Felizes, 1984 da mesma época. Sempre quis fazer escultura, embora na primeira exposição [Galeria Jean Boghici, 1980] quisesse mesmo era desenhar. Desenho desde os três anos de idade. Desenhava nas paredes e minha mãe me proibiu, então eu passei a desenha atrás das cortinas… Depois dessa exposição ficou a relação com o espaço. Como havia feito arquitetura, essa questão era mais evidente e a vontade de fazer escultura muito grande.

 

O trabalho na terceira dimensão tinha a ver com a arquitetura também?

Não, acho que é ao contrário. A minha única opção de estudo tradicional era a arquitetura, por não me sobrar nenhuma outra. Na época o colégio separa as turmas para preparar para o vestibular em três tipos de científico. Você, então, entrava para Direito, Medicina, Engenharia ou Arquitetura. Estava viajando pela América do sul e quando cheguei minha mãe havia me inscrito em arquitetura, se gostasse, ficava. Durante um certo tempo, saí viajando. Morei em várias comunidades, principalmente numa, em que decidi dedicar-me ao mundo espiritual. Voltei para casa e falei isso para a família, falei que não ia mais estudar, que ia virar monge. Depois de uns seis meses, decidi ser artista. Foi uma festa. Mas Belas-artes estava na cara que não ia fazer. Sabia que ia ser artista, mas sabia também que não ia estudar Belas-artes porque era muito ruim. Assim, tive duas formações, sendo a primeira a arquitetura.

 

02.05.1999 [87]

 

Você decidiu ser artista porque já estava trabalhando?

Estava no segundo ou terceiro ano de faculdade e rolaram dois salões. Fazia umas aquarelas e resolvi mandar. Um era um salão qualquer coisa, no qual recebi menção honrosa. O outro se chamava Salão Universitário. Na época, o júri era interessante, até o Roberto Pontual fazia parte. Nesse, tirei segundo ou terceiro lugar, não me lembro bem. Como gostava de desenhar, pensei: “Não estou tão ruim [risos]. Entre ficar aqui cozinhando essa faculdade e ser artista, prefiro ser artista.” Mas a minha cabeça ainda estava no mundo espiritual. De um certo jeito, o fato de ser artista era uma relação que eu buscava com esse mundo, para não sair totalmente dele.

 

Nas peças que só existem na situação de montagem, se desfazem e tornam a acontecer como Língua, 1990; Copacabana, 1989, e outras, percebe-se a presença de diferentes temporalidades, como ritmos indicando soluções formais ou criando as situações. Presença da música, que também foi uma de suas paixões. Do ritmo, como na exposição Seis peças para Caymmi, 1998.

Música, sempre ouvi muito. Toquei bateria, que tem essa coisa de ritmo. Desenho e arte eu estudei durante um curto tempo com o Ivan Serpa. Música, eu estudei mesmo, de sentar todo o dia. E a relação se dá mesmo pelo ritmo… a disposição no espaço é ritmada. Principalmente no início dos desenhos verticais, esse ritmo era muito claro. Olhava para a parede e sabia quantos precisavam ser colocados. Criava um ritmo no espaço e depois rompia com um desenho horizontal. No trabalho da Bienal, Vazio, pelo fato da forma ser grande, a peça estar no alto e a outra escorrer pelo chão, criava-se igualmente um ritmo no espaço. O tempo gasto para se ver o espaço é ritmado, eu tentava preenche-lo assim.. Às vezes explodia com isso, às vezes não. Posso juntar seis peças e com isso se cria um ritmo. Às vezes uma escultura fica muito próxima da outra, e você perde a noção de ritmo, porque cria um volume só. Ouço muita música desde pequeno e aprendi muito com ela. Quando comecei a ouvir Dorival Caymmi, não havia ainda visto Richard Serra nem Frank Stella. Em Caymmi, o que me tocou foi a simplicidade, aquela voz grossa, a melodia simples, a letra simplíssima… Aprendi a simplicidade primeiro com a música, depois fui ver esses caras secando o trabalho. A audácia de Jimmy Hendriz, Miles Davis… foi a primeira vez que vi um cara arrebentar com uma estrutura clara da música, da arte.

 

De fato, são sempre múltiplas temporalidade que convivem em seu trabalho. No Grande Budha a duração das árvores aponta para uma escala temporal de ordem cósmica, ou, ainda, o alinhamento com o eixo do sol, em Grafite, implica igualmente outras escalas espaciais e temporais.

No Grande Budha e na Mesa o tempo é no sentido clássico: o tempo da árvore, de seu crescimento. Como não se “vê” o trabalho, o tempo é ao mesmo tempo mental. E existe esse tempo mais ritmado que vem da música. O mais importante da música, para mim, foi a descoberta, por meio dela, de questões importantes da arte; questões que eu trouxe depois para as artes plásticas, sem ter aprendido com artistas plásticos. Na realidade, eles pensaram isso também, mas não me chegou por intermédio deles.

 

Como você vê a presença da sua vida em sua trajetória artística, ou seja, de elemento biográfico no trabalho de arte? Tendo a pensar que não estão tão separadas, apesar da longa dicotomia entre esses dados ter marcado a crítica e a história da arte, privilegiando ora um, ora outro, como o formalismo, por exemplo. Às vezes, para se compreender o trabalho, é preciso ficar atento também para alguns elementos da vida da pessoa, aquilo que faz parte de seu imaginário, suas possibilidades e experiências… a música, a espiritualidade em sua vida, por exemplo.

É, era mais fácil abordar a imagem do artista e o seu pensamento pela ora. Aprendi com a música porque quase não havia escolas de arte. Havia o Ivan Serpa e seus cursos no MAM. A música chegava a mim sem que eu pudesse vê-la. Hoje em dia o fenômeno é diferente, você vai a São Paulo e todos estudam arte. Se o cara deu cinco tiros na cabeça, ficou vivo e depois fez isso, não interessa, é só isso. Sofri com essa fase. Chegou o ponto em que eu não agüentava mais e não falava que fazia Yoga ou era vegetariano etc. Hoje há mais maturidade, quem está pensando artes plásticas, nos mais diversos tipos de corrente, estuda os diversos aspectos. Até a chegada dessa fase era complicado falar de determinadas questões, principalmente questões espirituais. Você ficava fadado a uma visão distorcida, meio New Age. Isso foi um tiro no pé. A maioria dos artistas que detonaram a arte abstrata tocou a questão espiritual. Malevich, Paul Klee, Kandinsk, Albert, etc., há uma lista enorme. E você vê livro de arte brasileira, de profundidade, escritos sobre arte abstrata que não mencionam a questão espiritual. É como se quisessem tapar o sol com a peneira, ignorando totalmente o procedimento do abstrato. Aliás, há alguns anos teve uma exposição com um catálogo lindíssimo que se chama O espiritual na arte.²

 

05.06.2000 [94]

Qual a primeira exposição pensada realmente enquanto exposição?

Todas elas. Mas na segunda, na Paulo Klabin, o fato de o desenho estar no encontro da parede com o chão me obrigava a pensar o espaço. Quanto mais você entra na escultura, mais é levado a pensar no espaço e na exposição como exposição mesmo. Nos desenhos você também pensa o espaço. Eu, inclusive, espichava alguns desenhos, os horizontalizava ou verticalizava, pensando no espaço. Desenhava para o local. Existe uma diferença entre pensar uma galeria e um museu. Quando a escultura é mostrada, você pensa no todo e na peça separada; em resolver o problema de cada peça e depois fazer com a idéia de cada uma comungue com a idéia das outras, como se estivesse tecendo as ligações. Aliás, disso eu sempre gostei… Ficar tecendo, ligando os pensamentos. Meu trabalho, no fundo, é isso. É o fio que o Mario Pedrosa percebeu.

 

Sua primeira instalação, como se compreende esse termo hoje, foi Beijo em Madalena, 1988?

Não, acho que foi Flor na Pele, 1993,. As Mesas, 1995, também não funcionam como unidades. O todo é o trabalho. É como se fossem peças únicas no espaço. Na realidade, as vejo como uma única escultura. Isso aconteceu também em decorrência do espaço da galeria, com a qual trabalhei muitos anos, a Luisa Strina. Tem um bom tamanho e duas portas. A sua dimensão me induziu a resolver o lance numa tacada só. Não tem janela, o pé direito é alto, tem-se que subir a escada… É um paralelogramo, quase uma seção quadrada. Durante muito tempo eu tive a implicância com o nome instalação, porque havia virado uma categoria, com suposto maior status do que as outras, até por se estar afirmando, se impondo, e havia aquela coisa da novidade. A certeza não é do campo da arte. Aquilo tem um futuro muito seguro, funciona no momento próximo, mas não vai ser interessante ou vai perder o brilho logo adiante.

 

Apresentar os registro das exposições em livro, por exemplo, não seria trata-las também como projetos, digamos, em outro espaço?

Acho que é uma faceta do meu trabalho. A escultura é mesmo um terreno conturbado “pra caramba”, tem uma tradição violenta, e todo mundo já andou pensando por ali, então esse problema é um desafio. Às vezes acho que estou solucionando no meu trabalho a escultura mesmo. Tenho um prazer enorme em solucionar o espaço pela escultura, é um exercício de prazer. Quando me perguntam o que faço, sempre digo: “Sou escultor.” No fundo, me considero escultor. Quando faço esses trabalhos tento explodir e comungar com determinadas questões de esculturas. As exposições um pouco mais complicadas… significam saborear num terreno que tem uma tradição violenta e, ao mesmo tempo, procurar fazer algo, se dar a isso… Acho que por isso comecei a trabalhar com o mármore. Chega uma hora em que esse trabalho de comungar com a tradição, que está saturado de referências, sufocas, mas ao mesmo tempo sublima.

 

Você fazia de três tipos de espaços: buraco negro, ambiente e mental…

Por exemplo, buraco negro é o espaço de Brancusi, onde o olhar é absorvido, no sentido da contemplação clássica, do objeto poderoso, que absorve todo o seu entorno. Esse é um jeito de lidar com o espaço. O ambiente está metido a instalação. Os primeiros a tocar essa relação foram os surrealistas, quando faziam suas exposições e colocavam aqueles sacos de carvão, linhas, manequins, plantas e criavam um ambiente. O Rothko também trabalhou nesse sentido. Naquele momento foi mais fácil entender a noção de ambiente, apesar de Duchamp e dos surrealistas. Sobre a capela, as salas na Tate Galery, a luz, o cinzeiro, Rothko escreveu como tudo deveria ser. Não era mais a pintura; todo o ambiente para receber a pintura era extremamente pensado. Ele tinha uma relação espiritual com a vida e o trabalho dele é o olho mesmo. O espaço mental se relaciona à contemplação que passa à concentração; faz com que você estabeleça relações mentais e esqueça aquilo que está vendo. Ducham fez isso com suas analogias, charadas, só que ele excluía violentamente a contemplação. O oriental só entende chegar na etapa mental pela contemplação.

 

02.05.1999 [95]

Voltando aos diferentes tipos de espaço…

O jeito de Rothko, de pensar todo o espaço para se receber aquilo; o brancusiano é um jeito, como disse, “buraco negro”. Uma peça de Brancusi tem o poder de fogo tão grande – quem entra numa sala onde ela esteja fixa o olha nela. Ela come o espaço. E esse é um pensamento muito escultórico: quando se perde a atenção para o que está em volta, esquece-se um pouco o espaço em torno e o olho fica grudado naquele objeto. No Rothko é um espaço de ambiente. Uma terceira categoria, talvez seja essa coisa mais duchampiana, do tempo mental, no qual você faz o trabalho na cabeça. Também me utilizo dele. Quando Duchamp bota o dado dentro daquele rolo de barbante,³ fica todo o mundo querendo imaginar se tem ou não um dado. Aquilo vira uma lenda… esquece-se o espaço, o objeto, tudo, e fica-se no mental. Penso poder dizer que se o Grande Budha estiver em uma praça de 300 ou de 10 metros quadrados, ou na floresta – não importa – a pessoa, mesmo que veja apenas uma mudinha, começa a imagina as garras entrando e a árvore crescendo… Se você fosse fazer uma escultura tipo Amílcar, Sergio Camargo, ou o próprio Brancusi para uma praça de 300 metros quadrado, você teria o problema da escala, que é, de um certo jeito, da família do “olho grudado”. Já no pensamento do Duchamp, a retina é jogada para fora e você tem o tempo mental. Interessa-me essa fluência entre o que se está vendo, que é a coisa da escala, e o que está se pensando. Quando você faz com que o ser humano crie na cabeça a consequência do trabalho e, ao mesmo tempo, que tenha um poder de absorver o olho, acho uma maneira mais interessante.

 

Seu trabalho, mesmo não derivado do site specific, como no caso de Grande Budha, não deixa de dialogar com essas questões quando você cria situações no próprio lugar. Por exemplo, a Escultura sem lugar, 1996, apesar do título, compõe-se de peças soltas e só se estrutura em uma situação precisa; é feita, desfeita e refeita como Cada, 1996, igualmente.

É… Os Cadas são sempre dois e são materiais antagônicos. O mármore quando funciona com a graxa, o mármore quando funciona com o azeite, o mármore quando funciona com o papel…. É montável no lugar, mas é sempre igual, independente do lugar.

 

O pensamento que norteou a sua exposição no MUBE, em 1998, era essencialmente escultórico.

Depois de alguns anos eu me dei ao luxo de ter vários lugares de atuação, e disso, me orgulho porque consegui com o meu trabalho. Ao mesmo tempo em que posso fazer uma operação num cachorro, posso fazer uma interferência numa árvore ou esculpir um mármore ou simplesmente pensar. Ao mesmo tempo, junto desse mármore, considerado “eterno” posso usar papel, que é um material superperecível. Isso, de certa forma, anula essa “eternidade”, passando a ser um objeto que pode durar apenas duas ou três semanas em um museu. No macrocosmo, fui-me dando ao luxo de pensar trabalhos na paisagem ou de pensar em termos de escultura.

 

Que você chamaria propriamente de escultura?

Por exemplo, essa exposição no MUBE, com seis peças… para mim, são seis esculturas, porque tive a possibilidade de pegar três delas e levar para viver em outro espaço. É diferente de pegar, por exemplo, o Grande Budha, que foi feito no paralelo 10 com longitude 70. Não posso tirá-lo e coloca-lo em outro lugar. Faz parte do pensamento aquele lugar específico, o famoso lugar específico. Não posso pegar essa operação do cachorro, da Série Genesis. Ficou em vídeo.

 

Fale um pouco mais sobre a apresentação inicial de seu trabalho, seus primeiros contatos com o meio de arte.

Foi na galeria do Jean Boghici. Lá tive contato com Sergio Camargo, que aliás, comprou um desenho meu. Foi o primeiro desenho que vendi na vida e tenho o maior orgulho disso. O Sergio gostava de mim, do meu trabalho, e nos encontrávamos para conversar… Depois recebi a bolsa Vitae e, nessa época, ele acompanhava o meu trabalho. Era muito atento aos trabalhos dos artistas que gostava, como Tunga, Waltércio, Zé Resenede. Ele me deu muita força. Apesar de trabalhar quase exclusivamente a questão da visualidade – Sergio era olho -, permitia aos outros terem suas facetas. Isso foi muito importante para mim naquele momento, pois não havia espaço na arte brasileira.

Você já havia participado dos salões quando estava na faculdade. E depois?

Gostava de desenhar, como já disse, e resolvi estudar; então fui ao MAM mostrar meu trabalho, na “cara dura”. Mostrei e gostaram. Naquela época o MAM estava formando uma geração e me orientei sobre alguma coisa. Desenhava e lia o dia inteiro. Quando a minha exposição foi aprovada, comecei a observar mais ainda o MAM e a ver tudo o que estava acontecendo. Teve a exposição do Lauro Cavalcanti, com letrinha em placa de lanchonete. Ele usava muito essas letrinhas e, se não me enganos, umas fotos também. Era arte a exposição do aniversário do museu. Depois, houve uma exposição do Tunga, da qual me lembro mais. Era uma série de desenhos relacionados à masturbação, que ele talvez nem tenha mais, e a sala experimental, com objetos. Tunga construiu uma sala, se não me engano, com feltro ou coberto. Vi praticamente todas as exposições daquela época. Aí, o MAM pegou fogo. Fiquei esperando para ver se acontecia alguma coisa, mas nada aconteceu. Então fui à luta. A pessoa que tinha aprovado a exposição me falou sobre o Jean Boghici. Fui atrás dele e lá conheci muitos artistas, como Krajcberg, Sergio Camargo, Carlos Vergara, Antônio Dias, Rubens Gerschman, entre outros. Eu já mostrava meu trabalho. Trabalhei com ele durante uns dois anos antes de acabar a galeria. Conheci mais as pessoas e também a obra do Antônio Dias, que nessa época fazia uns trabalhos conceituais com letras, pinturas… God is dog, dog is god, alguma coisa nesse sentido. O Jean tinha muitos trabalho, alguns fáceis de serem vistos. E havia o projeto ABC na Catacumba.

 

E o pessoal oriundo do neoconcretismo, como Hélio Oiticica, Lygia Clark, Lygia Pape etc…

Quando conheci a Ligia Clark, no Jean, comecei a observar seu trabalho, e a conhecer o trabalho do Hélio Oiticica. Mas pouco, pois naquela época não se apresentava muito o seu trabalho, não era toda hora que se via. Uma coisa que me bateu no Hélio é que ele tinha uma certa organização espacial, para a qual Lygia praticamente não estava nem aí. O Hélio, apesar de entrar em questões que pulverizavam qualquer coisa, você via que seu trabalho trazia questões intrínsecas das artes plásticas. Quando botava um pó rosa ou uma coisa verde ou marrom, você via que era escolhido, que tinha uma composição ali e composição da melhor qualidade. É que ele estudou muito fazendo os Metaesquema… fez muito dever de casa. Para mim, foi ali que formou sua linguagem. De um certo jeito, ele desorganizou uma construção e fez logo uma porção de quadradinho, enquanto todo o mundo trabalhava com um, dois, três, o que me dá uma minidesorganizada, mas a base geométrica era violenta, não mexia. Ao mesmo tempo seu trabalho não é de visualidade geométrica, porque é até um pouco confuso para visualizar. A confusão é feita com a estrutura mínima, distorcida. Ali ele construiu realmente a base do trabalho dele, penso, e, quando sai fazendo todas aquelas coisas posteriores, Hélio traz aquela experiência de cozinha de artista plástico, ou seja, experiência de composição, experiência de destruir uma linguagem, de construir uma linguagem, de espaço pictórico, tridimensional e inovadora. A Lygia sempre foi uma mulher muito mais da idéia e o Hélio sempre um artista plástico mesmo, em si. Quando parte para pulverizar tudo… gosto muito da Cosmococa. Aquele do Jimmy Hendrix, por exemplo, ele organiza a festa com dois elementos que têm lados simbólicos extremamente revolucionários. Um é aquela capa de disco do Jimmy Hendrix, que tem uma dose simbólica violenta. Você não está usando Ray Connif, está entendendo? Está usando Jimmy Hendrix, com toda essa carga que ele quer que esteja presente. Depois, o pó que usa é coca, quer dizer, tem toda uma carga moral nesses dois elementos. E ele vai lá e organiza. Compõe quase construtivamente na cara do outro. Há sempre uma coisa de artista plástico nele, enquanto a Lygya é quase uma psicóloga. Como artista eu acho extremamente revolucionária, mas no campo da psicologia, não sei… É uma das maiores artistas que o mundo produziu nos últimos 30, 40 anos. Ela tem uma capacidade criativa enorme, mistura tudo. No campo da ciência seria totalmente pejorativo, na arte não. A arte é feita disso… Lygia Pape foi uma pessoa que teve uma influência importante. Estudei com Lygia Pape na faculdade de arquitetura Santa Úrsula. Ali, ela chutou o balde pela primeira vez quando começou a propor um monte de exercícios. Então falei: “Que merda é essa?”… Depois foi muito gozado, a encontrava em situações muito importante para minha vida. Por exemplo, a reencontrei no Mário Pedrosa, numa das vezes em que fui lá. No livro editado pela CosacNaif, 1998, o Charles Cosac a chamou para fazer parte da mesa. Tenho um carinho muito grande, gosto dela. E gosto muito das suas idéias… Na faculdade, ela dava uns exercícios do cacete. Eu, garotão, demorei umas três aulas para entender a sua cabeça, o que estava propondo. Muitos não entendem, arquiteto é jogo duro, e, ainda mais, com a pouca formação que tem o estudante brasileiro. Sobre o Hélio, li que ele falava muito sobre música e tempo, mas acho que era um certo charme dele, porque ninguém esperaria que um cara com uma formação tão plástica fosse falar de tempo. Uma organização de espaço violentíssima e que não é da ordem da conclusão. Comungo com o Hélio nessa área. Tenho essa coisa do espaço, mas não é dessa ordem, do entendimento, é da ordem da sensação mesmo. Comecei a estudar um pouco os sentido e percebi que existiam várias níveis de sentidos, os fisiológicos, tato, olfato etc., uns mais internos ainda, que chamo de íntimos, que estão ligados à consciência, consciente de coisas com as quais você está mexendo. Por exemplo, quando se tem a experiência de ter um animal, um cachorro, por exemplo, e se convive com ele etc., quando um outro cachorro qualquer é atropelado, percebe-se mais a dor, já não se olha esse cachorro como um simples animal. Tem-se uma percepção maior, uma percepção aí que não é mais a de olha o episódio.

 

E quanto aos artistas estrangeiros, além do Rothko…

Gosto muito dele. Saboreio o Rothko, mas sei da importância do Pollock, principalmente para o que estávamos falando sobre o drama da composição. Quando pintam uns artistas como esse, ele dá um tiro tão na mosca e tanto tempo antes, que nêgo nem sabia que existia o alvo. Então não tem referência. O cara acertou onde? Você só vai entender que o cara acertou o alvo quando o Rothko vai lá e mostra que aqui é o alvo e organiza toda a festa. Então pinta um cara desse, pintam uma Lygia e umas coisas assim, e chega um cara que começa a mostrar novamente a pintura e o drama, a dificuldade de compor e de pintar. Gosto do Pollock por mostrar a dificuldade que a pintura teria dali pra frente. A pintura, escultura, o raio que o parta. Agora, como tenho uma coisa do contemplar, que é da minha natura, entendo a importância de Pollock e o adoro por isso, mas saboreio muito Rothko. E tem uma coisa de loucura no Rothko. Gosto muito desse pessoal americano todo, de toda essa geração. Bruce Nauman também. Ele tem uma coisa que para mim foi bom: poder tocar todos os instrumentos de uma orquestra. Isso me deu uma certa força. Porque, de um certo jeito, sou um artista que toca vários instrumentos; chegar no meio do mato e fazer isso ou esculpir uma escultura de pedra. Talvez ele não tenha sido o primeiro, mas, para mim, ele botou uma estaca que, se não a tivesse posta, eu mesmo teria que colocar. E coloca uma estaca no vazio é muito difícil. A gente já coloca algumas na vida e ganha tanta porrada, que tem que estar muito seguro. Então quando você saber que alguém já colocou, você diz: malando, não estou sozinho. Aquilo ali existe e te dá uma força muito grande. Se o cara fala que gosta ou não gosta é problema do cara, mas você sabe que é uma visão contemporânea do mundo. De um certo jeito, Nauman inaugura essa visão. Eu acho um artista muito contemporâneo. O estilo, para ele, é um pouco pulverizado. Isso não é nem pós-moderno. Gosto também dos modernos, todos. Houve uma época que em que gostava muito de Klee. De certa forma ele influenciou uma mudança que eu queria dar no desenho: a de quebrar a figura de forma clara. Foi por aí que o observei, depois morreu o sabor. Durante um período, li muito Jung, li quase toda a sua obra, e isso me levou à dra. Nise da Silveira, e a participar dar reuniões. Acabei no Engenho de Dentro. Eu estudava mesmo não só o Jung, mas aqueles psiquiatras todos. Depois conheci o Lula Wanderley (nós mostramos trabalhos juntos em 1980/1981). Ele me apresentou uma série de psiquiatras anteriores a Jung. Li todos, depois parei e caí no Mircea Eliade. Fiquei com uma base muito grande de símbolos, de como a realidade simbólica se apresenta e é estruturada… Comecei a estudar Jung por causa disso. Em seu livro Símbolos em transformação ele fala que, de acordo com o grau de conhecimento, o símbolo se mostra gradativamente diferente, apesar de ser o mesmo graficamente. Tem muito disso no meu trabalho.

 

E sua experiência como professor?

Falo sobre visão espacial, sobre a sensação do espaço… Essa coisa meio de gato. Porque o espaço, na realidade, não é só o que se olha; a percepção do espaço não passa só pelo olho. Há um dado maior. Houve uma época em que me propus a fazer uns exercícios por achar que todo o conhecimento era sempre transmitido verbalmente, e que isso estava errado. Comecei a perceber que as coisas poderiam existir se você as sentisse. Porque só seria verdadeiro aquilo que é explicado? Comecei, então, a ler muita poesia e a exercitar as sensações do espaço. Chegava nos lugares e não queria entender o que via, queria sentir a “presença” do espaço… Foram anos e anos… virou uma coisa habitual e uso isso no meu trabalho. Não é só o que se olha em sim que existe; é como perceber a sensação do espaço; e, depois, uma série de coisas acontece simultaneamente, e isso gera realmente o espaço. Se você for ver, isso é chinês. Nós somos meio da causa e do efeito – toma lá dá cá. A coisa de situações simultâneas é chinesa. Igual àquele jogo de dominó, só que não acontece numa fileira. Já viu campeonato de dominó no qual saem desmoronando 300.000 fileiras ao mesmo tempo? Essa imagem para mim é muito espacial. Nas exposições, a relação das esculturas é muito calçada nisso, de relações, de percepções do espaço. As sensações que eu vou ter quando chegar nesse espaço. Porque, se você não montou o trabalho ainda, tudo tem que ser feito na cabeça.

 

E como são as aulas?

Às vezes, saio falando, outras, proponho exercícios. Dou três exercícios, que podem variar – uma mais calcado no objeto: resolver um espaço pequeno, no nível do objeto. O segundo mistura um pouco de conceito: dou quatro conceitos e peço quatro exercícios, para misturar um pouco a linguagem, porque o cara tem que resolver quatro vezes de forma diferente. É como se escrevesse uma redação com quatro parágrafos, na realidade é um texto só, mas cada parágrafo é um assunto; e o último, que é espacial mesmo, grande. Isso tudo gerava mais exercícios, mas comecei a ficar cansado. Este último tipo de exercícios é muito legal, até já foi mais radical. Podia-se usar qualquer lugar no campus da faculdade [Santa Úrsula] e, através dos cinco sentidos, interferir nesse espaço de qualquer jeito. Como se fosse um presente de final de curso, acontecendo trabalhos em todo o campus. Aconteceram trabalhos geniais, extremamente visuais, lindos. Parei porque começou a dar merda. A faculdade é grande e vai subindo morro acima… lá havia uma área onde ficavam fumando baseado e todo o mundo sabia. Numa dessas interferências, que eram realizadas em trios, um dos três tinha um irmão policial, e a interferência era colocar aquele jaleco de Polícia Federal e dar um bote lá. A “festa” nesse lugar era bem organizada, tinha até vapor… sabendo disso, já fui logo no vapor e disse o seguinte: “Semana que vem vai ter uma interferência, trabalho de fim de curso, são meus alunos etc… Cara, os guris foram lá e era um tal de nego subir, pular muro… Aí o negócio ficou notório. No final do ano, mandaram cercar tudo. Outro estudante fez um despacho na sala do decano… farinha, pipoca etc. E o decano não passava na porta. Outro, que usou o banheiro da Biologia: botou uma calça, jogou uns sapatos e botou um gravador lá: “Ai, vai, agora não, alguém pode ouvir…” Meia hora depois (o tempo da fita), havia um bolo de gente na porta, não dava nem para chegar. Teve outro muito bonito: o cara ficou uma semana escrevendo aquele texto de computador “Projeto Aquarius, prédio 2” e colou o cartãozinho na faculdade toda. No dia da ação, ele levou uma porção de peixinhos vermelhos e rolhas. Entrou em todos os banheiros do prédio 2 e colocou uma rolha em cada pia, abria a água para ficar igual a um aquário e jogava um peixinho vermelho. Trabalho visual, teve um bem interessante. No cobogó enorme que existe lá, o grupo colocou umas bolas para encher nos buracos. Entrou uma luz, criou um painel e ficou lindo” Depois dessa da maconha e do despacho, que aconteceram exatamente no mesmo ano, criou-se uma expectativa, porque era no campus, e as turmas foram tomando conhecimentos apesar de não terem participado. Foi-se criando uma tradição, mas vieram me dizer que estava ficando esquisito. Fiquei puto e parei de fazer esse tipo de trabalho. Voltei a fazê-lo há um ano e estou trabalhando com barbante, para que eles construam um espaço visual, onde se possa entrar. Compram rolos de barbante e vão tecendo. Semestre passado pintou um bom, deram movimento na passarela. Era bonito olhar e ver as pessoas.

 

10.06.2004 [107]

Já conversamos sobre seus interesses pelas glândulas hormonais. Gostaria de voltar à idéia de circulação de energia que perpassa seu trabalho, em particular suas referências, como no caso da dormideira, da sensibilidade inconsciente.

É sempre muito banal: a glândula gera hormônio. O hormônio para mim… acho o que ser humano é mental. A minha visão de mundo é impregnada da visão da Yoga, ou seja, não existe um mundo mental sem o mundo da matéria: os dois convivem, você está com essa matéria e vive com ela. Assim com a arte. O grande barato da arte não está realmente nos objetos que foram deixados; é o pensamento que existe através deles, que se deixa, dos quais esses objetos estão impregnados. Não estou muito interessado em ver David, de Michelangelo, mas vejo no David tudo o que ele pensava, tudo o que ele gerou, tudo o que representava. Por exemplo, quando olhamos a arte egípcia. Existem naqueles objetos, esculturas e pirâmides o pensamento que estava acontecendo… Então, a gente tem esse organismo físico, e um organismo mental, e a hora em que o físico pode realmente interferir no mental é no hormônio. Acontece alguma coisa mental, que joga para o corpo, o corpo joga esse hormônio e muda a atitude mental. É como se fosse uma fábrica de química que se tem dentro, que joga mais ou menos química e muda o nosso temperamento. São drogas que fabricamos para nós mesmos. E essa nossa capacidade de produzir drogas, hormônios, é uma maneira de pensar o mundo no meu trabalho. Antes das fotos do Vazio Coração, nas Mesas, com a dormideira, foi a única vez que toque o instante. O instante é marcado pelo ato do toque e pelo movimento. É gerado pelo hormônio da plantinha, pode ser por interferência de toque ou luz, até mesmo um cheiro forte…

 

Música também?

Música, não. Mas, por exemplo, se elas ficarem muito tempo com uma luz só, elas ficam mais devagarzinhas, ficam com sono… Quando fiz a opção de não tomar mais drogas e comecei a Yoga, a alimentação vegetariana, minha droga passou a ser os hormônios e o café, lógico! É uma extrema loucura você nunca tentar perder a sua consciência… uma loucura ao inverso. Com um ano, dois, três, quatro, 10, 25 anos, gera uma loucura e uma fissura… É interessante.

 

17.05.2002 [108]

O timo, por exemplo, fica bem próximo do coração e tem o tamanho de um dedo mais ou menos, um bastãozinho de batom. Antes da puberdade, da atividade sexual, a pessoa tem o timo desproporcional, depois essa energia, que até então estava no timo, fazendo com que a criança seja aquela bondade toda, desce para as glândulas sexuais e gera uma atividade que até então não existia. Começamos a ter razão e o timo diminui. Existem seres humanos que fazem o timo voltar ao tamanho do de uma criança, mesmo tendo hormônio sexual ativo. É inexplicável… É interessante porque é um dado físico: o timo era pequeno e voltou a ser grande. O que esse ser tem de especial? A consciência faz isso, vai mexendo nas glândulas, gerando hormônios. Há uma explicação lógica, porque você influi psicologicamente produzindo substancias que são nada menos do que farmacêuticas. Existem glândulas importantes, como as duas supra-renais, o baço, timo, tireóide, pineal e pituitária. Por exemplo, para a adrenalina ser liberada, geralmente há um reflexo no cérebro, que manda mensagem que detona a pituitária que a encaminha para a supra-renal. A pituitária é como se fosse um volante. Por outro lado, está relacionada a uma capacidade mais abstrata de percepção e absorção do mundo. Mais acima dela tem a pineal. Descartes, por exemplo, no final de tudo a coloca como a casa da alma. Com todo o seu racionalismo, ele admitiu isso. A matéria da pineal contém cal, por isso comecei a fazer aqueles desenhos de cal. É comprovado que o deficiente mental tem menos cal do que uma pessoa dita normal. Praticamente, não se sabe nada sobre essa glândula, que é do tamanho de um caroço de mamão e, quando a pessoa morre, ela enruga – não consegue se manter viva com o organismo morto; quando se abre o cérebro para ir atrás dela, já é tarde. É complicadíssimo, fica no centro do cérebro.

 

Qual seria a relação, entre os chakras e as glândulas?

O desenvolvimento de um chakra nada mais é, fisicamente, do que o desenvolvimento de uma glândula. O chakra é um pólo de energia neurofisiológico. Toda a ação mental tem reflexo na ação material. A glândula não é um chakra e, sim, a presença dos chakras no ser humano.

 

No trabalho das Mesas você usa a foto de uma criança, sua sobrinha, com as glândulas, cujas formas foram fundidas em metal.

No vídeo (O Oco, RioArte), sim. Tem uma relação entre o que acontece com a criança e com a dormideira. Toco os lugares que seriam chakras na criança. Para a exposição das Mesas, não queria uma foto, porque esse trabalho é direto, quase uma peça única. Não é uma mesa, são todas as mesas no espaço da galeria e a relação desse peso, da dormideira, do toque, do instante etc. Queria essa relação na entrada da galeria. Se eu colocasse uma foto no convite, isto seria amortecido. Pensei, então, como resolver de outro jeito. O que é uma dormideira? É uma quantidade enorme de sensibilidade. Esta era a questão central do trabalho, o peso sobre a dormideira: inconsciência mais sensibilidade. A dormideira é uma total inconsciência mas uma poderosa sensibilidade. Ela não tinha o menor problema com o peso, no entanto, qualquer um de nós teria; o problema era a sensibilidade. Temos uma sensibilidade pelo olho, de olhar para uma mesa de granito daquela grossura e sentir o peso; a dormideira representava a delicadeza… a única coisa mais delicada é uma criança. Um visual muito poderoso. Por isso tentei resumir o trabalho com essa foto; fala da mesma coisa de outro jeito.

 

09.06.20004 [109]

Sincronidades que acontecem

Vilém Flusser faz um paralelo entre a dúvida cartesiana, que seria o reino do intelecto, aquilo que leva à confirmação, à certeza, e a meditação que leva a um fortalecimento da vontade em relação ao pensar. Retirando os pensamentos, a meditação é um processo parecido com o pensar, mas coordenado pela vontade e não pelo intelecto. O eu medita. A meditação iria justamente contra a certeza ao romper com a teia dos pensamentos, na qual um leva ao outro, para afirmação da vontade. Seria uma espécie de libertação do eu, afirmação da vontade do não-pensar, romper essas teias.4 Que relação há, a seu ver, entre esse processo mental, presente em seus trabalhos, e sua prática de meditação?

Nunca pensei especificamente. Na realidade, a meditação é um outro pensar. Claro, ela rompe com o pensamento discursivo, com a lógica de uma-coisa-gera-outra, na qual se pode chegar ou não chegar a uma conclusão, pensa-se também, mas é um pensamento não discursivo. É um pensamento pleno. Não precisa de uma ronda de pensamento; às vezes pode ser cheio e ocupar todo o espaço; e, às vezes, se pode zerar qualquer atividade mental, o que é dificílimo. Esse tipo de atitude é plástica, ligada ao olho. Mesmo quando é narrativa, a arte é explosiva, imediata. Entra e só depois você começa a pensar no que está vendo, começa a sentir, mas já entrou. Esse boom é muito próximo: é um instante do que se tenta fazer na meditação. A meditação é manter esse boom um tempo enorme, o maior que se quiser. Não é só a vontade de romper o pensamento. O hábito gera, na pessoa, força de vontade. É como se essa atitude se refletisse na alma, como um espelho, que reflete e gera ações… é outra gama de ação, não é muito do discurso, é da poesia.

 

Seria então o vazio?

Acho que sim. O rompimento da ronda de pensamentos faz a ligação com o mundo ser sensível: passa-se a perceber, sem concluir. É uma identificação muito bonita. Como um gato, ao qual me referi, chega e não pensa sobre o espaço, sente, mexe… Se entra no espaço e não o analisa, sente-se, adquire-se outra relação com ele. Percebe-se as coisas em um outro extremo. Não é do ramo da música, por exemplo. É uma relação visual.

 

Esse seria o tipo de recepção que você espera…

Acho que é isso. Vazio Coração ficou sendo o centro de tudo. Está em todos os trabalhos. Talvez seja o trabalho das trilogias que mais demorei a fazer, até porque não saber como fazê-lo, e talvez seja o que mais espelha isso. É todo mental. Mesmo os objetos, são objetos para gerar sensação. As fotos estouram. O que se vê não é o que se estava vendo; e mesmo se você estivesse vendo, aquilo também não seria, porque se trata da relação no instante. Procura-se, então, perceber o que seria viver um instante e cada um vive o seu… com a quantidade de pensamento que está em sua cabeça. São objetos que falam da vivência de um momento… vazio pleno, em um determinado lugar, pelo coração e pela percepção. Talvez seja o mais abstrato de todos os meus trabalhos. Não abstrato no sentido visual, da História da Arte etc., quadrado ou triângulo, sem figuração etc. Abstrato no sentido ideológico, da própria ideologia do trabalho. Foi totalmente concebido na cabeça e ao chegar lá, e ao fazê-lo, não aconteceu nada daquilo que havia previsto. Foi ele quem ditou: “As fotos vão estourar” e você se adapta. Adapta-se tanto, que se aprende com elas, inclusive que elas deveriam “sumir”. Quando fui revela-las, orcei no sistema cybrachrome, mas percebi que deveria ser no processo normal, que deveriam também continuar desaparecendo. No caso do Ceará, houve também o outro lado: pensei que a esfera seria colocada ao acaso, terminou, porém, acontecendo exatamente o que havia pensado [risos]. Não sei quando a esfera vai estourar, mas o processo foi exatamente igual. Em Atacama, tudo estava completamente amarrado. Saí do Brasil pensando: chegar lá, pegar o tempo da pulsação do meu coração, colocar na máquina, ajustar o obturador e tirar foto das seis direções… quer dizer, poderia fazer isso em qualquer lugar, se não fossem as coordenadas. Mas acho chegar e ver que ali tem muita luz, que vai estourar, começa-se a pensar que não vai dar certo… mas não, o trabalho é esse. Ele é o que é, fotos estouradas… passa mais a sensação do processo de pensar um trabalho do que realmente o final do trabalho mesmo, a obra. É abstrato nesse sentido. Tenho um carinho muito grande por esse trabalho no Chile… depois teve a coisa de botar a prata, para que tudo que fosse objeto gerado pelo trabalho fosse caracterizado como imagem e não como trabalho… Você se referiu ao uso da prata por Walter de Maria,5 também na idéia da imagem, e achei claro. É gozado, pintam umas certezas quando as pessoas também sentem ao se deparar com situações próximas – mundo não é só discurso. Pode ser falado por sensibilidade, por som, pelo corpo, por qualquer negócio, cria-se um vocabulário. O de Maria também, quando sentiu necessidade da imagem, foi lá e usou a prata. É lógico que, entre os fotógrafos, se trata de um processo normal, como na poesia algumas palavras. É uma linguagem…

A prata está presente em vários segmentos do vazio Coração…

É toda a questão da imagem… o trabalho foi todo feito lá, a vivência e tal. Usei a prata nesse sentido… Vazio Coração é composto de dois trabalhos. O coração necessita de dois pontos para gerar um terceiro, o que, na realidade, o torna novamente um só: o coração é a união das coisas. O do Chile é um trabalho, o do Ceará, outro, e a junção pé outro trabalho, e os três também são outro trabalho, único…

 

O terceiro seria o que você apresentou recentemente em Vitória?

É a coisa da prata, da imagem. A prata entra no terceiro trabalho. É a união de tudo e vira a imagem… os moldes de dos pés e das mão são em prata e estão acompanhados das coordenadas do lugar onde está exposto, e não mais do local originário do trabalho. São só imagens. Os pinos da esfera apresentada já não são de ferro, como no Ceará, mas de ferro e prata. Coloquei os pinos de ferro com uma capinha de prata. Achei depois que não precisava do ferro. Nunca fiz uso de falsas referências no trabalho. Se é mármore é mármore, se é ferro é ferro, se é cubo é maciço, se não é maciço, aviso. Nada é oco, tudo é cheio. Diferentemente, a imagem permite acrescentar algo que, na realidade, pode ser outra coisa; então o pino de ferro e a capinha de prata. Achei que podia não ter ferro, não é preciso abrir o “coração”… a esfera é imagem, que se faz na cabeça, assim como o Grande Budha… ela pode abrir-se quando se sabe dessa história toda. Então pode ser mais pura, pura ao extremo, ou seja, só a imagem mesmo. Por isso a prata, que, lógico, veio também pelo processo fotográfico… É quase uma linguagem no nosso mundo contemporâneo… fala-se com outros símbolos e signos…

A prata, em relação à imagem, está caindo em desuso…

Se fosse pintor, usaria óleo… já que vemos na tradição… Agora, é lógico, daqui a 300 anos, sei lá… Tenho pensado muito sobre o Vazio Coração… Milhões de coisas estão nele. Trago o mundo, com imagem, para dentro da galeria. São bonitas as sintonias, quando, por exemplo, encontro Ponta Grossa com praia Redonda no Ceará… O mundo é isso, sincronicidades que acontecem, é o jeito que o mundo fala contigo.

 

Voltando à imagem, com sua multiplicidade de sentidos. É a primeira vez que ela se faz presente em seu trabalho, enquanto imagem, parece-me. E o registro, como no caso de Mesas e do Grande Budha, por exemplo, qual o seu estatuto para você?

Como trabalho, sim, é a primeira vez. Antes, só como documentação. Por ocasião do Grande Budha, comprei uma máquina melhor. Nas Mesas, a foto da Júlia, aquele neném com as glândulas, sobre qual falamos, é também uma imagem. Tem também Ford, 1997, que é o molde do osso de uma coluna vertebral, fundido em cobre, é colocado no motor de um carro. É a mesma questão da Júlia, só imagem, mas não no sentido de…

… como em Atacama, onde você utiliza o dispositivo, o ato fotográfico em seu corte no espaço de tempo, o instante…

O que é uma fotografia? É documentar um instante: o trabalho é sobre isso.

 

De certa maneira, tanto no Grande Budha quanto no Vazio Coração, em Atacama, ou no Vazio Sexo, sua Vicência daquele momento, é um dado marcante e de algum modo faz parte do trabalho. Os trabalhos podem duram mais de 1500 anos, porém, guardam latente o efêmero com a vivência… o mogno pode pegar fogo, ser derrubado e a esfera desaparecer. Algo como, arrisco dizer, um efêmero com a virtualidade de uma temporalidade estendida.

Tudo pode acontecer…

 

Sim, mas há a questão da foto, do instante, desse momento que sai, quase expulso da temporalidade, mas que se reintegra. A mudança, creio, é a passagem do registro para o trabalho em si, a partir da foto. Esse é também um grande debate contemporâneo. Na Série Genesis, por exemplo, a imagem é o registro de um acontecimento… No Chile, ao colocar como velocidade o tempo de sua pulsação, você interfere diretamente no próprio ato fotográfico.

Na Série Genesis, virou trabalho mesmo, embora seja um registro. Quando pintou o convite do vídeo, achei que Genesis caía igual a uma luva, até porque eu não havia encontrado uma maneira melhor de vinculá-la. Ela já existia há muito tempo, o trabalho já estava feito na minha mente, mas não havia acontecido. Aí pensei: “então é no vídeo.” No Chile, há um grau de registro pelo fato de a coisa estar ali, mas já ganhou uma outra onda. O fato de a foto estourar faz pensar. Quer dizer, é o pensamento sobre ela mesma, não é mais sobre o fato de precisar fazer uma operação, como a Série Genesis, na qual a ação predomina. No Chile, a ação e o resultado estão iguais. É como falar sobre a percepção do sentimento no instante. Colocar a velocidade do meu pulso é o único jeito de falar, sem palavra, o que estou sentindo e documentar o meu coração sem tentar expressar o sentimento, só mencioná-lo. Então o meu coração entra documentado, em tempo, na máquina. É o que estávamos falando no início: o corte no pensamento discursivo. Pode-se falar sobre isso durante uma hora, sobre quais as sensações etc., mas posso chegar e tirar o tempo da minha pulsação e colocar na máquina. É outro jeito de falar. Embora tenha gostado muito dele, esse trabalho foi único, nasceu e morreu ali. Talvez seja um dos mais abstratos, como disse, quis ser ele mesmo, e ao mesmo tempo é o mais fechado em si. Se fizer outro trabalho sobre isso, vou ficar rodando nele mesmo, criando um estilo. Ele não chega nem mais para cá, nem mais para lá. De um certo jeito, a Série Genesis também foi feita e acabou. Vazio Coração é mais complexo, acho. Por vezes, tive um certo receio de falar sobre a Série Genesis, porque envolve a moral: a relação com a natureza, de nela interferir… Rodrigo Naves e você, falam muito dela, talvez porque tenham convivido mais comigo… Vazio Sexo também tem uma questão moral, mas é violento… tenho até guardado as peças de ouro e prata quando chega alguém da roça lá em casa [risos]. Esse trabalho tem uma coisa que me chama a atenção, tem um dado… O Vazio Cérebro sempre foi muito massa, muito peça, e Vazio Coração, extremamente abstrato, conceito, apesar de ter gerado dois objetos… Já o Vazio Sexo é uma intersecção entre os dois: tem o objeto e todos esses outros dados. Suas formas são extremamente geométricas, rígidas, de mármore de Carrara, aquela tradição do mármore… mas ao mesmo tempo ele entra com pequenos objetos que sujam todo esse olhar construtivo no sentido que desloca o objeto no espaço, mas sujam também o conceito do próprio trabalho. O objeto fica bambo no conceito e na forma. Isso é muito presente na minha vida… Tem toda uma organização construtiva, no sentido histórico da arte, apesar de a última peça, que estou fazendo, a “gaiola”, ser toda furada, cavada por dentro. É o processo contrário de uma escultura tradicional de mármore, não tem emendas. A visualidade até lembra o minimalismo, no sentido do Sol Lewitt, mas a história, até no pensamento é exatamente ao contrário. Não é só olho. O fazer é muito complicado, mas você olha e não se dá conta. Estou gostando disso. Nada é colado, é uma peça única, é uma entropia, uma “coluna sem fim” para dentro. O sexo é um envolvimento, como o êxtase. E esse ato é o trabalho. É esse visual construtivo, deformado pelo objeto orgânico, pode-se considerar até meio pornográfico… O vazio feminino foi moldado na vagina de uma mulher e o masculino é a imagem da ponta do pênis. Um é o contrário do outro, sendo um feito de ouro e o outro de prata; um foi moldado lá dentro – a imagem do que não existe – e, quando se tira, se torna um pênis… o outro é moldado do lado de fora, você olha e vê a imagem perfeita, um retrato de um pênis, mas quando se vira é uma espécie de cumbuca, que seria feminino. Duchamp também moldou uma vagina, se não me engano de Maria Martins (é uma homenagem a ela também, assim como Madalena foi uma homenagem a Donatello), e as fotos de Atacama a Reverón. Mas não moldei a vagina no sentido duchampiano, moldei contraponto às peças de mármore e de ouro. Vazio Sexo é meio escultura, meio idéia, meio objeto/forma. As formas são abstratas e os moldes atuam mais ou menos com o Vazio Cérebro, como forma real dos órgãos sexuais, aqui até tão fiéis, que não quis esculpir, mas a modelagem direta, por isso usei a fundição e o molde direto. Não houve o processo do fazer aí. Já nos mármores, o fazer foi fundamental, entrou até como conceito. A peça não poderia ter emendas, se tivesse seria supersimples na realização, mas faz parte do conceito da peça não ter emendas. Fazer e conceito se fecham nesta peça; e tudo vira idéia: o próprio fazer aqui vira idéia. Era necessário realiza-la, se impregnar dela, cortar e lixar. Assim, no conceito dessa obra inclui-se o fazer, atitude tão adversa ao mundo da arte contemporânea; tão adversa, que achei interessante usar o próprio fazer como conceito.

 

Um de ouro e outro de prata…

O de ouro é o masculino, lógico! [risos] Não é machismo, não. Mas não tem o fato de o positivo sempre ser ouro? Nem sei por que chamam o feminino de negativo, passivo. Sempre tem isso. Quando comecei a pensar no Vazio Sexo e nos espaços, descobri o pensamento dos triângulos: de o pênis ser um triângulo para cima e a vagina ser um triângulo para baixo – é a Estrela-de-Davi, símbolo sagrado que representa união. União do micro e do macrocosmo, mas também do masculino com o feminino, do coito. É quando se gera um filho, quando se cria, em todos os sentidos, então é a imagem de Deus, a imagem da criação que está presente também em uma imagem de um pênis entrando em uma vagina… Há todo um significado, que vai da pornografia ao sagrado, que seria uma representação abstrata da imagem de Deus. Quando percebi isso graficamente… não só os espaços vazios… mas isso também é o trabalho: a intersecção dessa relação dos espaços vazios que veio dos outros trabalho – cérebro, coração -, acrescido do gráfico da estrela, que traz toda a questão moral. Quando fiz os objetos com fotos, prata e ouro… estrelas, achei a visualidade imediata mais violenta… cinema. São três fotos: do pênis, da vagina e do ato sexual. Aquela coisa de banca de jornal. É uma escultura em que utilizo a foto como objeto escultórico, não mais só como imagem. Fiz também objetos com fotos, prata e ouro, e desenhos também com prata e ouro, e com lacre. Nas fotos, a pornografia está mais presente e, nos desenhos, é poesia; nas esculturas é mais mental.

 

Você utilizou fotos existentes ou as fez?

Eu as fiz. Preciso, aliás, de autorização da pessoa…

 

Aí também, como um segundo momento, entra a imagem, a fotografia…

E entra como objeto escultórico mesmo. Muito próximo, talvez, do uso que Matta-Clark fez da fotografia, quando as fritava. Nos últimos anos a história da arte moderna e contemporânea está muito presente na minha cabeça. Não havia isso antes, viajava sozinho, mas hoje comungo… Hoje em dia não tenho tanta certeza, mas acho que tenho mais percepção das coisas. Não estou tão interessado em chegar aos lugares e o mais gozado é que os trabalhos estão se completando, como as trilogias. Estou mais interessado em viver, me lapidar como ser humano, talvez pelas mudanças que estou vivendo…

 

A cruz é um elemento importante para você, tanto a que está realizando na América Latina quando a cruz como algo que marca o espaço, como o uso das coordenadas, do GPS. Poderíamos relacionar ainda, talvez, com a cruz, esse entrecruzamento dos trabalhos, com elementos passando de um para outro… A cruz também guarda uma relação com o instante. Enfim, ela perpassa seu trabalho em vários sentido.

E a relação da cruz com seu sofrimento?

É uma malha. Talvez seja a coisa que me dê vida, de querer fazer. Quando comecei a ver que os trabalhos estavam se falando, fiz com que se falassem mais ainda. O trabalho está ganhando uma dimensão maior, uma outra dimensão. A cruz, para mim, é barra, mas, ao mesmo tempo, quando se juntam as duas coisas, você tem a luz. Positivo e negativo etc., e a luz você só consegue com a cruz… É também do Budismo, a coisa de crescer com o sofrimento. O sofrimento ensina, embora, acho, não se aprenda apenas com sofrimento. O erro também ensina, quando se acerta, passa-se para outra. Vejo a cruz sempre como luz, como renascer, como sendo necessário unir oposições para ganhar uma terceira coisa, que é uma imagem única. Diferente do Taoísmo, por exemplo, cujo pensamento é mais abstrato, diferente, também, do pensamento intelectual da Yoga, que é um método de vida, apesar de ter sua filosofia. O pensamento cristão filosófico é histórico: É a vida de Cristo… vai-se aprendendo com a história, com a narrativa. A crucificação cristaliza-se, marca-se… Vejo a cruz nesse sentido como marca. No espaço determinado por coordenadas, marca-se, escolhe-se a priori. O GPS mentaliza, idealiza-se o espaço, não importa a localidade. Não é só um espaço no sentido ambiental, ou no sentido do site specific, é uma outra maneira de lidar com o espaço. É abstrair o espaço do espaço, ele vira uma fórmula, um símbolo, e se vai lá e se acha esse símbolo fisicamente. Não foi pensada, mas vivido. O do Grande Budha ou o de Atacama foram espaços abstratos – existentes na cabeça -, cuja realização foi muito vivida. De um certo jeito, as Lajes e o Pilar também têm uma coisa dessas. O Pilar, então, no qual não se coloca quase nada, mas que, no entanto, muda a percepção total; o corte no pilar faz o prédio não ser mais o mesmo e sentir o espaço diferente.

 

E depois do Arte/Cidade, retiraram o Pilar?

Reconstruíram, sim. Parece que vão fazer um prédio de escritório, Sesc, não sei em. Seria bonito, uma poltrona, um computador, um sofá e aquele bagulho lá no meio… Não precisava ter sido reconstruído, pois, segundo o engenheiro estava seguro… Provavelmente, vão comprar uma peça de mármore e colocar no espaço. Acontece isso… aliás, espero que seja uma das minhas….

 

Recentemente você produziu algumas gravuras na Fundação Iberê Camargo…

As gravuras são gozadas. Rolou um convite para fazer as gravuras, no projeto desenvolvido pela Fundação Iberê Camargo.6 É no mesmo ateliê que foi do Iberê. E foi o mesmo técnico que trabalhava com ele quem convidou os artistas para fazer uma gravura, mesmo aqueles que nunca haviam feito. Eu nunca havia pensado em gravura e achei uma boa oportunidade. Até achei que ia fazer alguma coisa de lito, pela traço, pelo desenho. Comecei a pensar: o que é gravura? É uma impressão, um carimbo. Repete-se o ato. Onde esse ato encontraria o meu trabalho? Encontra-o nos vazios, posso imprimir os órgãos diretamente. Levamos o ateliê até a faculdade de Medicina, que emprestou os órgãos e imprimi os órgãos diretamente nas chapas como um carimbo (usamos dois tipos de técnica tradicionais da gravura: uma chapa na qual se passa cera de carneiro e imprime, depois se retira a cera e se passa o ácido que queima; e uma outra, na qual se passa o próprio ácido no objeto e o coloca na chapa). Visualmente ficou igual a um trabalho abstrato. A cera de carneiro realmente quase não imprimiu, então ficou um trabalho meio etéreo… uns pontinhos. O coração imprimiu mais, o cérebro imprimiu ainda um pouco mais, mas o ventre quase nada – ficou um branco com umas manchas muito delicadas. E o ácido, imprimiu pra caramba e ficou superabstrato, então parecem coisas dos anos 1950, um abstracionismo lírico. Uma ficou bem claro-escura, e a outra, quase clara. São dois trabalhos, impressos de dois jeitos e num trabalho só. Não havia essa história de ficar bom, mas de pegar os órgãos e imprimi-los: é a idéia da gravura batendo com a idéia do meu trabalho. E você vai lá e faz.

 

  1. Vazio, de 1992, apresentado na Bienal de São Paulo, íntegra hoje a Trilogia do Vazio e passou a se chamar Vazio Coração.

2.The spiritual in Art: Abstract Painting 1980-1985. Los Angeles/Nova York: Los Angeles County Museum of Art / Abbevilles Press, 1987.

3.Marcel Duchamp, A bruit secret, 1916.

  1. FLUSSER, Vilém. A dúvida. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1999.

5.Walter de Maria. Silver Portrait of Dorian Gray, 1965. Prata e veludo com instruções, 102 x 79 x 11 cm.

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O VENTO E O MOINHO

Rodrigo Naves - 2005

Estado de São Paulo – 2005

 

No dia 16 de junho o artista Nelson Felix recebeu por telefone uma notícia desoladora. A caixa que abrigava sua escultura Vazio sexo caíra da empilhadeira que a carregava — o trabalho ia ser exposto em Paris — e partira-se em catorze pedaços.

Sou amigo de Nelson Felix e sabia de seu carinho por aquela obra, dos cinco longos meses para realizá-la e até dos problemas físicos que a execução lhe trouxe. Tratava-se de um cubo de mármore de 90 cm de lado, com mais de 2,5 toneladas, que o artista esculpira na forma de uma grade vazada, sem nenhuma emenda. Mais: no interior do cubo maior escavara um outro menor, novamente sem abrir a forma exterior, realizando-a através dos espaços que abrira no cubo maior. Ao expô-lo, o artista deslocou ambos os cubos, calçando-os com moldes do órgão sexual feminino.

O gerente da transportadora que entrara em contato com Nelson Felix estava nervoso e afirmou que a empresa se propunha a restaurá-lo prontamente. Então ocorreu o que, para mim, foi a revelação proporcionada pelo incidente. O artista descartou sem mais o restauro da peça, argumentando que sua inteireza “era parte do conceito do trabalho”. O “conceito do trabalho” talvez possa ser entendido pelo sentido que o próprio autor vê em sua obra. Em seu diálogo com a crítica Glória Ferreira (publicado no livro Trilogias, editado pela Pinakotheke), Nelson Felix entende Vazio sexo como uma espécie de Coluna infinita — o magistral trabalho de Brancusi — voltada para dentro, o que de fato a relacionaria com o êxtase sexual, ele também experiência sem fissuras em que os limites do corpo parecem momentaneamente dissolvidos.

Considero fecunda essa interpretação. Mas para mim o acidente e a destruição do trabalho, paradoxalmente, puseram em movimento uma obra que, intacta, talvez não me intrigasse tanto. Marcel Duchamp esteve às voltas com seu Grande vidro de 1912 a 1923, quando o abandona. Em 1926, ao ser transportado, o trabalho tem sua parte superior trincada e só então o artista o dá por finalmente terminado. O anti-romantismo de Duchamp parecia precisar da intervenção do acaso — a perda de controle trazida pelo acidente — para coroar a finalização de uma das obras mais intrincadas da história da arte. No caso de Vazio sexo foi a destruição da obra que me ajudou a compreendê-la, que me ajudou a completá-la, enquanto sentido e significação.

Como se sabe, conceitos não se partem. Ao menos não se partem como objetos de vidro ou louça. Podem envelhecer, perder a pertinência ou ser esquecidos. Por que então não permitir o restauro da obra, que guardaria ainda muito do seu conceito e significado, como já ocorreu tantas vezes com outras obras de arte?

A escultura — sobretudo a escultura propriamente dita, diferente da modelagem e da fundição — sempre foi o campo privilegiado das tensões entre espírito e matéria, desde que entendamos esse dois termos em sentido ampliado, como consciência e história, vontade e intersubjetividade, religiosidade e mundo. Talvez o classicismo grego seja um dos poucos momentos em que esse embate encontrou uma solução harmônica e grandiosa, um momento em que ambos os pólos conciliavam-se no belo ideal helênico. Mesmo a retomada das formas antigas pelo Renascimento rapidamente se vê crispada por uma nova resistência que os materiais (e a história) oporão a uma serena formalização.

Donatello ainda consegue, no início de sua trajetória, submeter o mármore a seus desígnios, esculpindo-o de modo a ordenar inequivocamente a luz — a natureza a ser domada — que incidia sobre os volumes. Logo porém — como Argan mostra em suas análises — põe em causa esse poder de ordenar o mundo e, em seus relevos comprimidos, a luz resvala sobre as superfícies levemente escavadas, estabelecendo com elas uma relação conflituosa e dramática, em que a vontade humana (as formas) já não consegue se impor placidamente aos acontecimentos. Essa visão mais complexa da realidade, histórica e trágica, talvez encontre seu ponto culminante na esplêndida “Madalena” em madeira — desgrenhada, lacerada de cima a baixo —, na qual as forças mundanas agem sobre a forma mais intensamente do que sua capacidade de ordená-las.

Michelangelo — sobretudo nas obras posteriores ao “Davi” — adota um outro caminho. Em lugar de procurar ordenar a matéria a partir de um projeto humano, exterior a ela, desloca a espiritualidade, o espírito divino, para o interior do próprio bloco de mármore. Caberia ao artista “apenas” libertar da opacidade da rocha uma alma que já a habitava. Como diz Michelangelo em um de seus poemas (que traduzo livremente) , “o grande artista não tem um conceito que o bloco de mármore não contenha em sua massa, mas apenas a mão obediente ao intelecto a ele acede”. Era tamanha porém a tensão entre esse dois pólos — sobretudo para a visão cristã e neoplatônica de Michelangelo — que mesmo as obras mais acabadas, como os dois “Escravos” do Louvre, mantêm a dramaticidade implicada por suas escolhas.

Depois desses dois grandes artistas, penso que nenhum outro escultor — Rodin e Giacometti modelavam — alcançou a mesma intensidade. Até que Brancusi apontasse para um novo classicismo, moderno, conduzido por uma noção de universalidade em que a economia de suas formas deixava entrever todas as focas em sua “Foca”. Ou seja, não mais o belo corpo grego, singular mas exemplo de todas as belas proporções, padrão de todas as belezas possíveis. As esculturas de Brancusi nascem dos traços estritamente necessários para identificar um ser qualquer, peixe ou pássaro, que precisará, para existir, conquistar uma realidade só sua. Ganhar carne: coisa que o extravasamento do mármore na “Foca” — com seus veios (as estrias do bicho) e com a matéria que se expande (a gordura da foca) — indicava claramente.

E o que a escultura partida de Nelson Felix tem a ver com tudo isso? Embora reate com a tradição da escultura, utilize um material com milênios de tradição — o mármore de Carrara — e suponha muito trabalho, ela aparentemente contraria aquela tradição. A forma de Vazio sexo tem uma simplicidade evidente, a ponto de lembrar certas construções muito pouco complexas de Sol LeWitt, artista americano ligado ao minimalismo, movimento que sempre hostilizou qualquer procedimento que implicasse expressividade e formas complexas, mesmo aquelas resultantes do confronto com um material resistente a ser trabalhado.

Em Vazio sexo, o fazer se oculta na obra, e dentro do bloco — Michelangelo borgiano — não há nenhum espírito a ser revelado, apenas o duplo da forma externa, outro cubo. Estaríamos então diante de mais uma cansada demonstração dos limites ou da impotência da arte contemporânea? De mais um trabalho que quer manter viva a arte apenas para escarnecer de sua inanição, um proxenetismo do espírito tão corrente nos nossos dias? Não acredito.

Na verdade, nessa obra o espírito (ou projeto, ou mente, pouco importa) não conforma nada. Cria apenas uma baliza gradeada por onde o espaço circula. E os vãos que introduz no mármore servem somente para encontrar dentro o que já havia fora. Sem mistério. Nem como metáfora de uma suposta relação entre microcosmo e macrocosmo — como ocorre na milenar tradição chinesa de esculpir esferas dentro de esferas — o trabalho presta, já que não tem a dimensão da mão (a outra esfera a completar as esferas esculpidas) e é anguloso demais para representar a harmonia do mundo.

E também a realidade (o mármore) se deixa talhar preguiçosamente, sem oferecer resistência àquilo que o desbasta. Numa passagem tocante de uma carta de 1884 ao irmão Theo, Van Gogh — comentando o esmagamento da revolução de 1848 na França e a permanência das barricadas no ânimo de muitos cidadãos inconformados — cita a seguinte frase: “O moinho não mais existe, mas o vento continua”.

A escultura de Nelson Felix é a revelação de uma situação muita semelhante àquela, talvez mais grave: a nossa. Vivemos num período em que os projetos não se desenham, não se sabe se por falta de vento ou por falta de moinho. Ou dos dois? Energias escassas em um mundo que assimila tudo que não se lhe assemelhe. Só restaria à arte, então, identificar um estado de paralisia e desorientação? Não me parece pouco: uma modesta vela a indicar o sentido do pouco vento, a fugacidade da experiência contemporânea. Uma forma montada para revelar aquilo que nos escapa.

No entanto, a obra oferece mais. Esse trabalho árduo e inútil apresenta, na sua modéstia, um outro modo de vida, que fala do prazer de realizarmos aquilo de que gostamos, ainda que não saibamos bem por quê. Escrevendo sobre o perfeccionismo de João Gilberto, Lorenzo Mammì mostra como ele ultrapassa o profissionalismo, reatando paradoxalmente com o diletantismo, “pois é diletante também aquele que leva o acabamento do produto muito além das exigências do mercado”. Isso é arte. Ou sexo. Um conceito que mantemos porque queremos. E que ficamos danados da vida quando alguém o parte.

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O MUSEU DISTORCIDO POR NELSON FELIX

Camila Molina - 2005

Estado de São Paulo – 2005

Artista carioca condensa pensamentos e experiências de seus últimos 20 anos de trajetória do artista carioca Nelson Felix se condensam em uma única mostra, Camiri, que pode ser vista até 11 de fevereiro no Museu Vale do Rio Doce em Vila Velha, no Espírito Santo. É uma exposição de peso, uma das mais importantes do atual cenário contemporâneo. De forma inovadora, mas natural no caminho de sua pesquisa, Nelson Felix realizou no galpão do museu uma intervenção feita de 39 vigas de ferro, colocadas paralelamente de forma horizontal e depois de forma transversal, atravessando as paredes do espaço e impedindo que o visitante se desloque pelo local, e 3 grandes peças de mármore de Carrara. O museu é, dessa maneira, distorcido pelo artista. A obra se transforma em algo único e denso, para ser olhado e não transitado. Mas esse é apenas um de seus pontos, o primeiro dado visível de um trabalho de forte raiz conceitual.

Quando Nelson Felix foi convidado pelo diretor do Museu Vale do Rio Doce, Ronaldo Barbosa, para fazer uma mostra na instituição, não poderia imaginar a ponta de acaso em que envolveria o processo e seria fundamental para toda a concepção da exposição. Em 1986, Nelson Felix iniciou um projeto envolvendo “questões de tempo e de longas distâncias”, fixado em quatro pontos geográficos diferentes, estipulados por relações entre coordenadas de latitudes e longitudes. Os trabalhos Grande Budha, Mesa e Vazio Coração formam, juntos uma Cruz na América. Grande Budha, o primeiro está localizado no meio da floresta no Acre e é composto por seis garras de latão fixadas ao redor de uma árvore. Com o tempo, indefinido, as garras penetrarão na árvore. Seguindo a mesma idéia, Mesa, localizada no Rio Grande do Sul, é feito de uma chapa de aço colocada sobre tocos de eucalipto. Ao lado da Mesa, foram plantadas mudas de figueiras. Com o tempo, “ o eucalipto apodrecerá, as árvores sustentarão e deformarão o plano da chapa”. Por fim, os dois trabalhos da série Vazio Coração, são formados, materialmente, por duas esferas de mármore colocadas em dois pontos à beira-mar: na costa Nordeste brasileira e na costa do Pacífico da América do Sul.

A breve descrição acima é para chegar à mostra atual: Camiri, na Bolívia, ponto localizado na latitude de 23 graus, é o centro da Cruz na América, basta ver em um mapa. Em linha reta, coincidentemente, o Museu Vale do rio Doce, no Espírito Santo, está localizado na mesma latitude de Camiri. E 23 graus é também a angulação de inclinação do eixo da Terra com o do Sol, como explica Felix.

Camiri, por ser o centro da Cruz na América, já era antes mesmo do convite para expor no Museu Vale do Rio Doce um interesse para Nelson Felix. Mas a referência direta a Camiri só aparece no título dessa atual exposição e no catálogo da mostra (com texto crítico de Ronaldo Brito e entrevista feita com o artista por Nuno Faria), principalmente, por meio de duas fotografias. O artista se deslocou até a Bolívia e lá fez uma foto do céu de Camiri e outra de seu chão. “O deslocamento é, portanto abstrato, não exista nada físico dele”, diz Felix. E apesar de a questão do deslocamento ser tão forte nesse projeto, que envolve anos de pesquisa, coordenadas, viagens, pontos diferentes da América do Sul, quando se trata do espaço físico do museu, no galpão, não há a possibilidade de se deslocar por causa das vigas de ferro.

DESCIDA PARA MATERIALIDADE

Tanto conceito e tanta história para se deparar com uma mostra potente visualmente, de força estética e forma. “Aqui no galpão está o auge do processo, o escultórico mesmo, o clássico de museu”, afirma Nelson Felix. “É a situação pós-conceito, quando se desce para a matéria e se transforma em obra, o mais difícil de tudo”, completa o artista carioca, nascido em 1954.

O visitante terá dois acessos para entrar no galpão em que está Camiri. No primeiro deles, na primeira sala, o visitante terá poucos metros até se deparar com dois grandes cubos vazados, feitos em mármore italiano de Carrara, levemente inclinados. São o primeiro dado do escultórico. “Sou contemporâneo, mas tenho respeito pela tradição clássica da arte. Só uso mármore grego e romano na minha escultura”, afirma Felix. O artista ainda completa que nem mesmo se trata de esculpir as peças, mas de retirar o mármore para escavar a forma, como se tratasse da estatuária (mais uma vez a tradição).

Depois desses dois cubos, começa já uma série de vigas de ferro, colocadas horizontalmente, tomando de parede a parede essa primeira sala do galpão. Por uma pequena fresta, uma porta, é possível ver –e apenas ver – mais uma outra série de vigas, colocadas da mesma maneira, na continuação do galpão. A altura em que foram instaladas as vigas faz formar uma linha entre a linha do horizonte e o chão.

No outro extremo do galpão, pelo outro acesso, o visitante vai encontrar um conjunto de vigas inclinadas a 23 graus e um grande anel feito em mármore. Tanto cubo quanto anel são formas simples, como diz o artista. “E o anel carrega um simbolismo, a relação da união. É uma forma inteira”, completa ainda ele. Uma das vigas atravessa essa escultura e sai pela parede do galpão, indo para o exterior. Em outro prédio do museu estão expostos mais de 20 desenhos sobre todo esse processo do artista. Neles fica clara a idéia de que não é o caso de o projeto morrer nessa exposição única, pelo contrário, tem ainda muito a expandir – nos papéis aparecem menções a outros pontos geográficos para além da América: o Mar da China, Yucatán e Austrália. A descida do conceito para a arte nessa mostra de Nelson Felix não se trata apenas de transformá-lo em materialidade, mas também em interação e monumentalidade arquitetônica.

OITO ANOS DE MUSEU

O Museu Vale do Rio Doce, instalado na antiga Estação Ferroviária Pedro Nolasco, às margens de uma faixa d abacia de Vitória – tel. (27) 3333-2484 – em Vila Velha, município vizinho de Vitória, comemora com Camiri os seus oito anos. Dirigido por Ronaldo Barbosa, vem se firmando como uma importante instituição para a arte contemporânea. Basta citar que recentemente teve mostras especiais de Cildo Meireles (sua exposição Babel, apresentada primeiro em Vila Velha, está atualmente em cartaz em São Paulo, na Estação Pinacoteca), Eduardo Frota e Mariannita Luzzati.

Em sua história, o museu, que não possui acervo de arte contemporânea, já recebeu 650 mil visitantes, 65% deles das classes C e D – principalmente por força de suas ações educativas. A Companhia Vale do Rio Doce, que mantém o museu, destinou em 2006, segundo Barbosa, uma verba anual de R$ 1,5 milhão ara custeio e projeto educativo e outra de R$ 1,5 milhão, incentivada por meio da Lei Rouanet para a realização de três mostras e um seminário internacional.

[A repórter viajou a convite da Suzy Munis Produções]

{ESCULTOR SE BASEIA EM COORDENADAS DE VITÓRIA E BOLÍVIA PARA CRIAÇÃO DA OBRA}

{NO TRABALHO, A RELAÇÃO ENTRE TRADIÇÃO CLÁSSICA E ARQUITETURA}

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O FAZER ARTÍSTICO DE NELSON FELIX, VOLUME 3

Maria Hirszman - 2005

O Estado de São Paulo – 2005

 

Com ênfase em suas séries sobre o vazio, o tempo e a cruz, sai a terceira obra de fôlego sobre a trajetória do escultor.

Nelson Felix é daqueles artistas que quanto mais expõem suas obras, mais instigantes elas nos parecem. Após a leitura do recém-lançado Trilogias, terceira publicação de fôlego sobre sua trajetória, mesmo aqueles que já acompanham seu trabalho descobrem novas camadas de percepção, novos elementos compositivos, criativos e espirituais que se desdobram a cada reflexão sobre o pensar e o fazer artístico.

Esse caráter ambíguo entre revelação e mistério é apenas uma das riquezas do processo de contradições e sínteses que constituem a base de sua poética, que explora com precisão cirúrgica oposições de grande poder como vida e morte, dor e gozo, vazio e cheio.

Como o próprio título do livro já diz, a ênfase é dada às séries de trabalhos que compõem as trilogias de Felix: a do Vazio, a do Tempo e a da Cruz. Mas há entre esses trabalhos tamanhos encontros e desdobramentos, que é preferível que o leitor/espectador se deixe levar pela narrativa do artista sobre a construção de seu tempo do que tente aplicar ao discurso uma lógica que dê coerência ao conjunto.

A própria lógica do livro – que deixa de lado a preocupação em apresentar didaticamente o objeto de análise (as obras) para deixar evidente um fluxo de conversa entre Felix e a historiadora e crítica Glória Ferreira, ao longo de uma dezena de encontros iniciados em 1999 – contribui para esse caráter de rede (de ação e pensamento) que constitui a base dos trabalhos.

Do peso da pedra ao tempo que leva para que obras como Mesa e Grande Buhda evoluam (ambas se constroem a partir de uma relação simbiótica com árvores de lentíssimo crescimento), passando pela questão do limite e do risco, tangenciada por intervenções arquitetônicas de grande impacto (como a secção do pilar de um prédio para a incrustação de uma barra de ferro, no Arte/Cidade 4), as criações contempladas são profundamente diferentes, mas acabam por formar um conjunto coeso de grande força simbólica. As técnicas usadas também são variadas e vão do diálogo com a tradição e da escultura clássica, como o calcanhar de 2 metros de comprimento (peça que pode ser vista até o dia 28 no Museu de Arte Moderna, junto com outras duas esculturas, na exposição também intitulada Trilogias); à incorporação de vegetação e da arquitetura, passando pela tecnologia de imagem, como as fotos da série Vazio Coração realizadas em pleno deserto do Atacama, no Chile e marcadas por uma abordagem de caráter mais conceitual (que envolve procedimentos pouco usuais, como o estabelecimento das coordenadas a partir da relação com trabalhos anteriores e o tempo de exposição calculado a partir dos batimentos cardíacos do artista). Em todos os casos, há em comum uma grande inquietação, um desejo de desvendar nexos escondidos, significados dispersos e potencialidades ocultas.

Esse lado meio xamânico de Felix não o coloca em suspenso, protegido das indagações, dificuldades e ansiedades da arte contemporânea. Essa “linha contínua” (identificada lá atrás por Mario Pedrosa) e que já provocou reações contra sua obra por parte dos mais formalistas e avessos a qualquer tipo de teor narrativo, segue seu caminho através das questões mais sensíveis da produção visual dos nossos dias. Como o próprio artista resume em uma das entrevistas que compõem o livro: “Comecei a ver que ou se mexe com o tempo ou com o espaço, não há outra saída. (…) Essas duas questões são a chave de tudo.”

Serviço: Nelson Félix.MAM. Av. Pedro Álvares Cabral, s/nº / Parque do Ibirapuera, portão 3, tel. 5549-9688. 10h/18h (fecja 2ª). R$5,50. Até 28/8.

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COMUNHÃO DO NATURAL COM O ARTIFICIAL

Luiz Camilo Osório - 2005

O Globo – 2005

A exposição de Nelson Felix atualmente no Paço Imperial no faz pensar sobre o que há de permanência e de ruptura entre a arte contemporânea e a tradição. É bom enfatizar que nestas obras há tanto permanência como ruptura com a tradição, sublinhando a própria contradição destes termos, sem temê-la. Em arte, ao contrário da lógica, é possível uma coisa ser outra sem deixar de ser si mesma.

O que há de tradicional em Nelson Felix não é o aprumo formal, tampouco o uso de materiais nobres e carregados de memória plástica, como o mármore. A tradição vive na crença de sua poética em uma abertura espiritual, em fazer do arremesso de uma idéia a razão de ser da realização forma de suas peças. As três trilogias apresentadas no Paço – do vazio, do tempo e da cruz – estão perpassadas por uma tonalidade espiritual que mesmo não podendo ser verificada ou comprovada pode ser sentida na confluência entre precisão, inquietação e beleza.

Tudo em que as obras encantam por si só, independentemente de sabermos dos vazios do crânio, do coração, do calcanhar ou do sexo. Por outro lado, foi movido pela surpresa destes vazios que a peça foi realizada e tornou-se o que é. Saber do que se trata é mais um elemento na composição poética das obras e da nossa relação com elas. Não cabe ficarmos batendo na tecla que o que vale é o visto, como se o não visto não alimentasse o que se vê, como se não fossem justamente estas dobras do visível que produzissem a diferença de cada ato perceptivo. O como vemos, onde vemos, por que vemos, somadas as histórias que eventualmente perpassam este ver, tudo isto interfere na coisa vista, afetando nossos modos de ver e dar sentido ao que vemos.

Essa força da idéia conduzindo o enfrentamento tanto do mármore, como das distâncias e do tempo, vincula Nelson Felix, a grande tradição da escultura ocidental. Há uma combinação interessante entre vontade e resignação, entre um querer que move a ação escultórica e um deixar ser que atua na direção oposta e remete às exterioridade intrínsecas ao vir a ser das oras.

No caso das fotos no deserto de Atacama, no Chile, em que o ritmo do seu coração naquele momento determinou a velocidade da câmera, vemos o inesperado da luz estourar a definição da imagem, revelando uma passagem sem linha nem espaço, onde tudo é horizonte, textura, temperatura, tempo. Aceitar os acidentes é determinante na força das obras e mostra o quanto estamos sujeitos às circunstâncias. Esta maneira de lidar com as exterioridades é um elemento de ruptura com tradição, assumindo uma precariedade que é própria a nossa época. Esta série do deserto chileno vem acompanhada de outros projetos realizados no mar, na floresta e nos pampas, onde a interferência do artista, seja em mármore ou em aço, conta com o imprevisível da ação da natureza, seja pelas ações da maré sobre uma bola de mármore furada com ferro, seja pelo crescimento das 22 figueiras que abraçarão e sustentarão, daqui a uns 50 anos, uma chapa de aço de 51 metros e 41 toneladas.

A crença na comunhão do natural com o artificial também faz de Nelson Felix um artista contemporâneo, afastando o seu apreço pela forma de um mero exercício formalista. Ele trabalha obsessivamente um cubo de mármore maciço de 4 toneladas até torna-lo todo vazado e grávido de um outro pequeno cubo solto em seu interior, gerado ali dentro mesmo. Ambos são desestabilizados por uma pequena peça colocada por baixo. Instabilidade e tensão estão por toda parte, revelando que a forma, por mais cuidada e trabalhada que seja, é sempre precária e sujeita as contaminações do espaço a sua volta, do mundo e da vida. É uma exposição que nos faz acreditar que apesar da urgência e da precariedade do presente não estamos completamente capturados pela banalidade generalizada.

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A TRILOGIA DA VIDA HUMANA

Marisa Flórido - 2005

Jornal do Brasil – 2005

 

A paisagem? “Uma queixa da matéria acerca dos limites dentro dos quais é aprisionada pelo espírito”. É a frase de Jean-François Lyotard que a potente poética de Nelson Felix evoca sob forte impacto. Sob os signos da cruz, do vazio, do tempo, Trilogias tem curadoria do artista e da crítica Glória Ferreira.

Símbolo universal de orientação, a cruz supõe um tríplice acordo: do homem com sua existência corpórea e finita, com os espaços e as distâncias dos mundos, com os tempos cósmicos e o ordinário das horas. Guiado pela estrela que o aquece, ou desviado pelos ritmos do coração, o homem se orienta e se perde na rotação de um cosmo por onde se desloca. Entre céu e terra, imanência e transcendência, a cruz é signo de reconciliação e medida.

É esse triplo acordo que Nelson Felix interroga como possibilidade do estar no mundo, ou aquém dele: toma da cruz sua potência de entrelaçamento, não de orientação. Pois não habitamos o vazio onde se situariam coisas e seres a partir de um centro, origem e destino de todas as cogitações. Vivemos em meio ao infinito das relações e dos cruzamentos de convenções e simbologias, de organismos e artifícios, sem todavia reconciliá-los. São antes enxertos e hibridações como na série Gênesis, no Grande Budha e na Mesa. São antes extravasamento e tensão dos limites, como no Vazio do cérebro: esculturas do parietal e do calcanhar em mármore carrara ampliados 111 vezes, como a trindade, de seu tamanho natural.

Corpo, peso, volume, matéria: o artista estabelece um diálogo fecundo com a tradição escultórica, sem lhe dar a saída formalista da obra fechada sobre si mesma. “Na interseção e interdependência de todos os fenômenos”, como afirma Glória Ferreira, as Trilogias “absorvem como elemento constitutivo a história e a simbologia dos próprios materiais, quer seja mognos, figueiras (…), o mármore e sua tradição na escultura”.

A localização do Grande Budha, da Mesa e dos dois trabalhos do Vazio Coração provém de coordenadas abstratas de latitude e longitude. Formam a Cruz na América e relacionam 4 paisagens: a floresta amazônica, o pampa gaúcho, o litoral cearense, o deserto do Atacama. Se em meio à floresta, garras de metal são fixadas em torno de uma muda de mogno; próximo à fronteira no pampa, uma mesa de 51 metros de aço é flanqueada por 11 mudas de figueiras de cada lado. Levará centenas de anos para que o mogno absorva o metal do Grande Budha, e as figueiras, o aço da Mesa. Se o deserto é aprisionado em imagens fotográficas, uma esfera de mármore é abandonada às vagas oceânicas: o ritmo da pulsação cardíaca determinando a velocidade da máquina fotográfica, o volume dos pinos fincados na esfera eqüivalendo ao de um coração. A eternidade ansiada pela arte clássica é cotejada ao instante da vida e da máquina, o tempo da percepção ao tempo do afeto. Captura e doação, desvelamento e ocultamento.

Apenas as coordenadas que formam a cruz são fixas e pré-determinadas. Tempo, espaço e existência orbitam em infinitas associações, tramam escalas diversas, temporalidades variadas, simbologias de culturas distantes. O instante enlaça-se ao tempo cósmico além de nossa irrisória e breve existência. Nossa frágil e hesitante posição no universo confronta-se a um espaço descentrado, móvel e sem limites; o a priori das classificações ao acaso e ao inesperado dos destinos. E decerto algumas obras estão prometidas à invisibilidade, ao desaparecimento, a um registro fotográfico na origem do processo ou a uma narração que presume seu desenrolar.

Aos três signos propostos pelo artista, deveríamos acrescentar mais um: o signo da indisponibilidade que esquiva a obra do olhar e de um acesso direto, instalando um vazio que desorienta e interrompe a percepção costumeira das coisas, “a ciranda do pensamento”, o ciclo viciado da vida. Um impacto próximo ao que sentimos diante do Vazio coração, do cérebro, do sexo. Formados a partir das três grandes cavidades do corpo humano como campos de energia, aludem à trilogia da vida humana e à inevitável indagação: o que sentir, o que pensar, como agir?

Segundo Glória,”Trilogias convida a sentir o mundo em sua dimensão espiritual. Espaço cósmico sem centro ou horizonte”. Enquanto escutamos ao longe a queixa da matéria aprisionada pelo espírito…

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ACASOS PREDETERMINADOS

Glória Ferreira - 2005

Folder exposição – Triologias, Paço Imperial – Rio de Janeiro – 2005

 

As Trilogias do Tempo, do Vazio e da Cruz reúnem trabalhos recentes e de diversos momentos da trajetória de Nelson Felix. Tudo se liga, ou pode se ligar, adquirindo novas configurações e significações no constante movimento de relação entre os trabalhos. A interconexão e interdependência de todos os fenômenos e a inserção nos amplos processo da natureza estão, com variadas modalidade, no cerne dos trabalhos apresentados em Trilogias. Absorvem como elemento constitutivo a história e a simbologia dos próprios materiais, quer seja mogno, figueiras, dormideiras, ostras ou o mármore e sua tradição na escultura, ou ainda a imagem. Visam uma espécie de energia não descritiva ou apenas visual, em que as evocações simbólicas e o apuro formal concorrem para marcar o espaço com sua presença ou solicitar uma percepção de ordem mental, para além do visível, como a Série Gênesis, Grande Budha, ou Mesa, que integram a Trilogia do Tempo. Trabalhos que operam com uma temporalidade aberta em seu desenvolvimento, levada a uma potência que ultrapassa a escala temporal humana. O seu devir, porém, associado a sua condição orgânica e, assim, à entropia, reafirma ao mesmo tempo nossa irredutível finitude e a não imortalidade da obra de arte, sujeita às vicissitudes do mundo: a dimensão cultural é inseparável, de uma espiritualidade extremamente humana e universal, marcada pela dimensão temporal.

A cosmologia engendrada pelas trilogias não deixa de remeter ao taoísmo e a outras filosofias orientais. De fato, desde o início, o trabalho de Nelson Felix fusiona e amalgama a dimensão espiritual e o orgânico, humano ou natural.

Suas escolhas éticas e estéticas questionam as regras lógicas e a inteligência classificatória no desejo de se relacionar diretamente com a vida e reencontrar a intensidade originária do mundo em um universo mutante, indefinível e paradoxal.

Os vazios – presentes no organismo humanos em seus grandes centros de energia, como o sexo, o coração e o cérebro – que dão origem aos trabalhos da Trilogia do Vazio evocam o vazio enquanto interrupção do fluxo de pensamentos e criação de espaços mentais, para um outra percepção do mundo, na qual vacila a própria percepção.

Vazio Coração compõe-se de dois trabalhos, remetendo aos mecanismos desse órgão e a sua simbologia, relacionada ao amor, ao encontro com o outro. Expande-se no tempo ao associar o instante, de imagens fotográficas, a uma temporalidade de centenas de anos. Expande-se igualmente no espaço, associando paisagens radicalmente distintas, como o deserto e o mar, e longas distâncias, como do Chile ao Ceará.

A localização do trabalho no deserto de Atacama foi determinada pelo encontro da latitude do Grande Budha e a longitude do Rio de Janeiro, precisamente do Paço Imperial. Vazio Coração íntegra, assim, em sua multiplicidade de significações, referências decisivas da história do Brasil, bem como o circuito de arte (e o espaço da primeira apresentação das trilogias).

Cruz na América, 1985 – 2004, formada pelos eixos entre os trabalhos do Vazio Coração e entre Grande Budha e Mesa, atravessa transversalmente outra cruz, também relacionada a história brasileira: a do plano piloto de Brasília, o qual, segundo o memorial de Lúcio Costa, “nasceu do gesto primário de quem assinala um lugar ou dele toma posse: dois eixos cruzando-se em ângulo reto, ou seja, o próprio sinal da Cruz”. Essas relações espaciais e, poderíamos dizer, quase musicais em seus ritmos, cadências e temporalidades, incorporam o espectador em seu agenciamento ficcional entre ações diversas.

À dispersão espaciotemporal do Vazio Coração, o Vazio Sexo prima pela integridade formal: um grande cubo de mármore, talhado com extremado apuro artesanal. Não tem emendas e do seu interior é “liberado” um pequeno quadrado. Sua inteireza remete à continuidade e aprovação da vida até mesmo na morte, com diz Bataille sobre o erotismo. A estabilidade formal do cubo, tão apreciada, por exemplo, pelo minimalismo, é aqui desequilibrada pelos moldes do vazio de uma vagina e da concavidade deixada pelo molde de um pênis, e se conjuga a símbolos dos órgãos sexuais e do ato sexual, moldados em prata e ouro, superpostos a imagens quase pornográficas do ato sexual, que adquirem peso e dimensão escultórica e, de certa maneira, como assinala o artista, “sujam” o rigor construtivo do conjunto escultórico das peças em mármore e prata.

A cruz, o mais totalizante e universal dos símbolos, base de todos os símbolos de orientação, e o mais primitivo signo de um objeto no espaço, tem, na Cruz da América, seus pontos definidos pelas coordenadas preestabelecidas pelo artista. Definições a priori que anulam, em um primeiro momentos, as características geográficas, escalas ou paisagens, para indicar a orientação na Terra como dimensão meditativa. Situações, contudo, incorporadas ao trabalho, sendo-lhe imanente a relação entre a floresta amazônica, o pampa, o deserto e o mar. Na Trilogia da Cruz somam-se, ainda Laje e Pilar interferências, por intermédio de cortes verticais e horizontais em espaços arquitetônicos, realizados no projeto Arte/Cidade, em 1996-1997 e 1999-2001, respectivamente. Faz, igualmente parte a Série Árabe, de 2001, na qual a torção de três esculturas alinhadas em forma de cruz ignorava a arquitetura de sua apresentação nas cavalariças do Parque Lage. Entrecruzamentos, cuja circulação de significações não caracteriza cada obra como um universo em si, mas parte integrante do Universo.

Realizada para esta exposição, uma grande cruz de ferro, alinhada nas direções norte e sul, liga o espaço interno ao cosmo e é acompanhada de narrativas, mapas, fotos e outras referências, desenvolvida de maneira performática e solitária, que compartilha com o espectador os processos, também solitários, de construção dos trabalhos.

As imagens fotográficas, presentes nas documentações dos trabalho in situ, ganham, em Trilogias, o estatuto de trabalhos em si mesmo, sem, contudo, deixar de incorporar a relação entre o orgânico e o mental. Vazio Coração, realizado em Atacama, associa o batimento do coração do artista como temporalidade do ato fotográfico em seus fotos tiradas com duas máquinas sincronizadas e disparadas em direções opostas – a do Zenith e a do Nadir, e as dos trabalhos que compõem a Cruz da América – que reduplicam a cruz, ao mesmo tempo em que assinalam sua intermediação entre o Céu e a Terra. Escapam, em sua virtualidade, ao sabor dos acontecimentos provocados por ações humanas ou pela natureza, aos quais estão sujeitos os outros trabalhos que integram a Cruz. A interferência no próprio ato fotográfico acentuou essa luz do deserto anulando qualquer efeito de registro. As cópias estão, no entanto, igualmente sujeitas ao fluxo temporal, passível de transformações pela ação da luz.

A recorrência a determinações a priori, como mecanismos operatórios na formalização da obra, tem como objeto o enfrentamento dos efeitos de composição. “Luta inglória”, segundo o artista, mas passível de ser enfrentada e que dialoga com o questionamento dos efeitos de composição pela arte contemporânea, como nos monocromos, nas poéticas de Barnett Newman e de Frank Stella ou, ainda, na estratégia minimalista de “uma coisa depois da outra”.

Aos elementos preestabelecidos, Nelson Felix acrescenta o manuseio do GPS para definir as localizações cujas coordenadas são igualmente determinadas a priori. Com uma espécie de olhar cartográfico de puras idéias, esquiva-se de qualquer especificidade de um local. No processo de metamorfoses e entrecruzamentos dos trabalhos, com sua profusão e materiais, técnicas e suportes aliados à profusão de evocações simbólicas, a recorrência às representações gráficas e convencionais que constituem os mapas, liberados de qualquer representação mimética, tem sido uma constante no trabalho de Nelson Felix. Seu interesse pelas relações analíticas dos mapas insiste particularmente nas relações de orientação que informam a percepção do espaço. Percepção que transgride a percepção direta e que tampouco representa o real, mas faz circularem significações.

Qual palimpsestos, seus mapas são suportes para desenhos, projetos e indicações diversas em uma espécie de nomadismo do olhar que incorpora a ordem pré-grafica de linhas e nomes de lugares. Desenhos que nos localizam entre o abstrato e o real, entre o visível e o que podemos apenas imaginar, estabelecendo, de certa forma, uma relação entre a cartografia geográfica e a cartografia dos vazios nos corpos, entre a ação no coração do real e a extraterritorialidade.

O vazio evocado em seus trabalhos não guarda relação com a ausência, mas com uma realidade em ato de liberação do turbilhão de pensamentos, imagens, desejos ou emoções, escapando à roda das existências efêmeras, para a criação de uma relação aberta de reciprocidade entre o sujeito e o mundo objetivo, ligando o visível e o invisível, e oferecendo a possibilidade de uma abordagem totalizante do universo. Sem transformar códigos religiosos em dispositivos temáticos, Trilogias convida a sentir o mundo em sua dimensão espiritual. Espaço cósmico sem centro ou horizonte.

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NELSON FELIX E A FORÇA DAS OPOSIÇÕES

Maria Hirszman - 2004

Estado de São Paulo – 2004

Artista conclui sua trilogia dos vazios, iniciada em 1985, com esculturas e desenhos à mostra a partir de hoje na Galeria Marília Razuk

Em 1985, Nelson Felix deu início a uma séria que se chama de Vazios. O que deveria ser um conjunto de três trabalhos se desdobrou em outras trilogias, acompanhando o trabalho do artista como uma espécie de mote criativo, instigante e catalisador, Tudo começou com a constatação de que o corpo humano possui vazios e que em três partes específicas esses vazios são mais interessantes: o cérebro, o coração e o sexo. A série finalmente se encerra agora com a exposição Vazio Sexo, que o artista expõe a partir desta noite na Galeria Marília Razuk.

Seguindo o hábito que lhe é característico de inverter situações, provar confrontos e encontrões entre forma, conteúdo e conceito, ele foi buscar no rigor do construtivismo o instrumental para falar da potência transformadora do êxtase. Ele cria uma ordem precisa, geométrica, para rompê-la de maneira sutil e perturbadora. O trabalho central da exposição, batizado com o mesmo nome, é de uma potência impressionante, apesar de sua aparência extremamente simples. Trata-se de um cubo reticulado e vazado, com outra forma semelhante em seu interior e que está levemente levantado do chão por um pequeno objeto de prata (na realidade uma peça fundida a partir do molde de uma vagina).

Essa descrição esconde aspectos essenciais para a compreensão de todo o pensamento plástico e conceitual do artista carioca. Em primeiro lugar, a peça foi esculpida lenta e cuidadosamente a partir de um único bloco de mármore – sempre Carrara – ao longo de meses, numa defesa clara do fazer na obra de arte. Eram quase 2,7 toneladas. Agora são 430 quilos. “Isso não é mármore, é um bloco de tradição”, diz o artista, mostrando como consegue ser simultaneamente um resistente e um provocador. Ao mesmo tempo que mantém viva a tradição do fazer artístico, que acrescenta ao trabalho o caráter simbólico dos materiais, ele provoca, distorce forma, cria atritos. Como resultado obtém um impacto visual perturbador, inseparável de um conjunto potente de significados e conceitos.

Enquanto trabalhava em Vazio Sexo, Felix também trabalhou em outro pedaço de mármore, construindo um enorme calcanhar de mármore, com mais de dois metros de comprimento que será exposto no ano que vem no Paço das Artes, no Rio. Na ocasião também será lançado mais um livro sobre sua obra. Felizmente em 2005 os paulistanos também poderão ver o trabalho desenvolvido por Feliz a partir do coração – o do cérebro foi uma dos destaques da Bienal de 1996, – no MAM.

A questão sexual surge de maneira mais explícita nos desenhos – quase pequenos objetos de parede. Lá ele se permite ser mais explícito, associando moldes dos órgãos sexuais (o feminino em prata, o masculino em ouro, dando mais uma pista do caráter um tanto xamânico e alquímico de seu pensamento) a desenhos mais toscos, gestuais.

As outras pelas escultóricas são mais sutis, estabelecem uma ponte com trabalhos da série Bamba – no segundo andar da galeria. Ali pode se perceber uma certa ironia com o rigor da geometria, com a pretensão de tornar o mundo algo comensurável, representável apenas por formas abstratas e seguras. “Aqui é uma conversa sobre a história da arte”, resume ele.

Serviço: Nelson Felix. Marília Razuk Galeria de Arte. Av. 9 de Julho, 5.719, 3079-0853. 10h30/19h (sáb., 11h/14h; fecha dom.). Grátis. Até 04/12. Abertura hoje, às 19h30, para convidados.

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PRAZER DE UM MINUETO BEM EXECUTADO

Wilson Coutinho - 2001

Baladas: Depois da grandiosidade da ‘Série árabe’, Nelson Felix mostra trabalhos mais modestos na HAP

Globo – 2001

 

Depois de mostrar o que pode na inteligente instalação “Série árabe”, exibida nesta ano na Cavalariça no Parque Lage, o artista Nelson Felix tem todo o direito de apresentar na HAP Galeria algo mais modesto. São 12 desenhos e duas esculturas. Pode ser um pouco aborrecido, mas é natural que artistas excepcionais como Felix, depois de inventar seus clássicos, acabem oferecendo ao espectador as suas tímidas consequências. Rubens Gerchman, Antonio Dias ou Waltercio Caldas fazem isso com certa naturalidade.

A mostra na galaria do Horto, sem dúvida, não tem a enorme grandeza da obra realizada na Cavalariça. E como se, depois de uma grande ópera, o artista tivesse o prazer de executar um minueto para um salão de debutantes. Aliás, a mostra chama-se “Baladas” e não Décima Sinfonia.

Peso do chumbo e fluidez da aquarela fazem diálogo

Mesmo assim, o talento de Felix não é desperdiçado porque ele sabe aproveitá-lo muito bem. Seus desenhos, usando massas de chumbo e um pouco de grafite, no centro do trabalho, fazem um dueto com as retas azuis que ladeiam o chumbo. São linhas grossas, nas quais gastaram-se muitos tubos de aquarela. E que a essência do material, a sua luminosidade, perdeu-se, um pouco, com a grande quantidade de tinta usada. A aquarela fica tão intensa que lembra o ofuscamento do guache.

De qualquer forma, Felix consegue, em sua “balada”, manter o diálogo das duas “vozes”: o peso do chumbo e a fluidez da aquarela. Neste jogo, os materiais equilibram-se e dialogam às vezes, de forma muito áspera. E uma balada mais para o gênero atonal, cuja harmonia é feita por meio da tensão entre os dois materiais contrastantes, além de dentes colados no desenho, aqueles que os dentistas põem em próteses. Outras vezes, o artista usa seus próprios dentes, gravando-os com dentadas. E sua sensibilidade para o orgânico e para o corpo.

No segundo andar, Felix apresenta as suas esculturas. São de mármore. Em uma delas, o artista utiliza um dos seus clássicos: o ondeamento do material. Ele trabalhou assim com a madeira no “Grande Budha”. O mogno, sem dúvida, é mais maleável e mais elegante para o propósito do artista, além de exibir a excelência da destreza artesanal. Por vezes, o mármore parece estático demais para as suas idéias, como se suas ondas estivessem congeladas num inverno no Pólo Norte.

Vagina e dedo dão modelagem a escultura

A outra escultura é um cubo vazado, tendo pousado no seu interior algo curioso, feito de prata. Lembra uma flor com seu pedículo. O artista informa que se trata da modelagem de uma vagina e a haste, o dedo da modelo. Felix cultiva a meditação ioga e a comida macrobiótica, mas raramente diz que se emocionou pelas cenas sexuais vistas numa viagem a Pompéia, na Itália. Há as vezes, em seu trabalho, uma certa sensualidade um pouco embutida ou até visível demais. Quanto ao dedo moldado, desde os sexólogos Masters & Johnson, que escreveram no fim dos anos 60, o dedo tornou-se um dos mais eficazes desbravadores da alcova, uma espécie de James Cook – um dos descobridores do Havaí – explorando com eficácia os prazeres do sexo. No trabalho de Felix, resta a dúvida se o dedo, este aventureiro, está lá só por causa disso.

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NELSON FELIX

Nelson Brissac - 2001

Editora Casa da Palavra – 2001

 

A obra de Nelson Felix consolida-se num momento de crise e profun­das transformações no repertório e nos procedimentos artísticos. A importân­cia das reflexões que ele vem fazendo, particularmente nos trabalhos mais recentes, reside em que confrontam as novas configurações espaciais e tempo­rais criadas pelos processos de globalização e seus efeitos nos padrões existentes da experiência, superando os limites conceituais e os expedientes formais que têm circunscrito as práticas escultóricas até aqui.

Mudanças radicais, ocorridas nos últimos anos, nos parâmetros que determinam a organização e percepção de espaço e tempo, tiveram profundo impacto no urbanismo, na arquitetura e nas artes. Os fenômenos relativos à globalização, a internacionalização do capital e os fluxos financeiros voláteis, a supressão das fronteiras e o surgimento de grandes configurações econômicas e políticas, as megacidades e as redes informacionais alteraram por completo nos­sas escalas territoriais, demandando novos princípios de produção e apreensão.

Novos grandes projetos de redesenvolvimento urbano, baseados em enclaves diretamente ligados a outros núcleos internacionais e em megaestruturas arquitetônicas multifuncionais e auto-suficientes, levaram à desertificação do entorno e a exclusão social. Nas artes, ocorre um reforço do papel das instituições, diretamente ligadas a programas de promoção das cidades, com a implantação de grandes museus integrados por esquemas de itinerância inter­nacional. Imensas edificações que contribuem para a espetacularizaçao das cidades e para o turismo cultural, levando a um redimensionamento da pro­dução artística concebida para esses novos espaços.

A aceleração provocada pelas telecomunicações e pelos novos regimes de circulação financeira engendrou uma compressão na experiência de espaço- tempo, levando ao colapso os modos existentes de percepção e representação do mundo.[1] As novas grandes escalas constituem abstrações que escapam à experiência cotidiana e à capacidade cognitiva dos indivíduos, transcendendo os princípios do planejamento urbano e da arquitetura e colocando em xeque o repertório estético das práticas escultóricas, o modo pelo qual a arquitetura e a arte se relacionam com o espaço e o tempo.

Hoje assistimos a um enorme esforço em apreender e redefinir proces­sos que se fazem em grande escala, com alto grau de abstração. Projetos que, em geral, empreendem sistemáticas expansões de escala e relações variáveis de medição, inflação das dimensões estruturais, espessamentos e transbordamentos. Uma ênfase na dificuldade de determinar a própria dimensão, uma reconceitualização da forma a partir de seus fatores de instabilização, que parecem corresponder diretamente à experiência contemporânea de financeirização da economia, de desmaterialização e de crise dos padrões culturais e da prática artística. [2]

Essas respostas às novas escalas atuais são essencialmente estruturantes. Quando os processos apontam para a emergência de configurações complexas e dinâmicas, baseadas em múltiplas, variáveis e imprevistas relações, ocorre uma reação contrária, reforçando a circunscrição, a estabilidade e a homo­geneização. Essa produção estética que aposta em estratégias formais tende necessariamente ao monumental, como se o simples aumento das dimensões, estático além de tudo, pudesse dar conta da alteração de escala do espaço- tempo. Ficam ao nível do visível, da espetacularização, sem perceber que este processo não se dá no plano da experiência e da percepção imediatas, que requer um enfrentamento dos mecanismos sistêmicos abstratos que regem essas novas configurações. Essas alternativas formais são o correspondente estético aos grandes projetos de redesenvolvimento urbano e arquiteturas museológicas que estão sendo implantados no mundo inteiro.

Por outro lado anunciam-se, tanto no urbanismo e na arquitetura quan­to na arte, estratégias que valorizam processos em situações heterogêneas e dinâmicas. São procedimentos baseados na diversidade de ações e programas, fluxos em variação contínua e acontecimentos imprevistos. Eles implicam a supressão dos padrões métricos de medida das distâncias, permitindo a articu­lação e justaposição de elementos díspares e desconectados. Parâmetros que pressupõem campos fluídos e ilimitados, sujeitos a efeitos externos ao longo do tempo. Vastas superfícies que incluem disjunção e descontinuidade, densa rede de informações e predominância do informe. Configurações frouxas que permitem múltiplas relações e a contínua emergência de novas situações.

Já prenunciada em alguns trabalhos anteriores de Nelson Felix – sobre­tudo Vão (Bienal de São Paulo, 1996) a sua abordagem dessas questões ganha contornos conceituais e processuais mais claros a partir da intervenção realizada no projeto Arte/Cidade, em 1997.

Essa edição de Arte/Cidade consistia em várias intervenções em três locais situados ao longo de um trecho de cinco quilômetros do ramal fer­roviário oeste de São Paulo. Vetor da expansão industrial da cidade, o ramal é pontuado por grandes instalações fabris, hoje abandonadas e em ruínas. Uma extensa cicatriz que rompe o tecido urbano hoje existente, bloqueando a cir­culação. A horizontalidade, a falta de pontos de vista elevados, também con­tribui para obstruir todo sentido de localização, transformando a área num amálgama de espaços aparentemente isolados.

A operação realizada por Nelson Felix concentrou-se num desses locais: o prédio vazio de um antigo moinho. Uma grande edificação em concreto, de quatro andares, de pisos e paredes espessos e estreitas aberturas para o exterior. O trabalho consistiu em recortar três segmentos do piso de um dos andares — numa área total de 5 metros por 21 metros — e sustentá-los por cabos de aço a poucos centímetros do piso inferior. Os cortes abrem uma perspectiva no espaço plano das lajes, no ritmo dos pilares, trazendo toda a arquitetura à nossa percepção, levando ao limite a sustentação estrutural daquela edificação tão compacta.

Os cortes do edifício remetem aos cuttings de Matta-Clark, fendas que atravessam pisos e paredes, que rasgam casas ao meio, articulando a construção com o entorno, com os diferentes tempos da cidade. Aqui também as incisões num prédio abandonado estabelecem outros pontos de vista, uma outra per­cepção da sua estrutura e da vizinhança. Uma transparência numa estrutura opaca e extraordinariamente opressiva.

Mas as incisões também introduzem uma tensão, antes inexistente, entre os diferentes andares, rearticulando de outro modo os planos. A distân­cia entre os níveis, rigorosamente igual naquele prédio, é questionada. Introduz-se um diferencial na sucessão repetitiva dos andares. A própria dis­tribuição do peso construído, antes adequadamente repartido, é alterada de forma irreversível. Como poderá o prédio reencontrar seu equilíbrio sem esse novo dispositivo de sustentação, inserido em suas entranhas?

Todos os elementos que compõem a reflexão de Nelson Felix sobre a grande escala e a complexidade do espaço-tempo contemporâneos já estão colocados aqui. O deslocamento de parte do piso da edificação ainda remete aos procedimentos para site specific, mas não é uma operação que se esgota no seu perímetro. O corte e a suspensão das lajes, precedidos por cálculos e testes de sustentação, dizem respeito à totalidade da estrutura e da organização espa­cial do prédio. A própria imobilidade da construção é rompida: as seções cor­tadas da laje não poderão mais ser repostas, uma ruptura brutal da sua aparente estabilidade temporal. Uma reestruturação que leva o observador a refletir sobre a configuração de toda a edificação.

Mas essa intervenção é ainda, em parte, composicional; ela não opera de forma direta sobre as condições estruturais do prédio, embora tenha que levá-las em consideração, para que se viabilize tecnicamente. Trata-se também de uma ação localizada numa área da edificação, proporcionalmente adequada e limitada.

O salto para uma abordagem decididamente ampliada, sem qualquer composição espacial, se daria na proposta de Nelson Felix para próxima edição do projeto Arte/Cidade (1999). A ser realizado num extenso recorte urbano da zona leste de São Paulo, o projeto prevê diversas situações de intervenção, den­tre elas uma antiga área industrial convertida em unidade do SESC, um pré­dio ainda desocupado.

A torre – e o conjunto industrial em que se localiza – é tão grande que parece comportar toda a região. Todos os elementos desse enorme terreno vago, desprovido de significação histórica e identidade arquitetônica, estão concentrados nesta aglomeração de galpões e edifícios vazios. A megalópole nos põe diante do incomensurável. Uma crise resultante da metropolização e da integração global: não se tem mais parâmetros para representar as novas escalas espaciais e temporais instauradas pelo desenvolvimento da técnica e dos meios de comunicação e transporte.

O que está em questão aqui são os limites da figuração, a incapacidade da mente humana para representar as enormes forças da metrópole. Um modo de representar uma organização da produção e do espaço, uma rede de poder e controle, que são de difícil compreensão por nossa imaginação. Não temos ainda o equipamento perceptivo necessário para enfrentar essas novas dimen­sões espaciais. [3]

Esses espaços desconcertantes tornam impossível o uso da antiga lin­guagem dos volumes, já que não podem ser apreendidos. A mutação do espaço ultrapassou a capacidade do corpo humano de se localizar, de organizar perceptivamente o espaço circundante e mapear cognitivamente sua posição no mundo exterior. Uma disjunção entre o corpo e o ambiente urbano que indi­ca nossa incapacidade de compreender os processos complexos de reestrutu­ração da metrópole contemporânea, a enorme rede global de produção e comunicação descentradas em que estamos presos como indivíduos.

A configuração atual impede o mapeamento mental das paisagens urbanas. As cidades não permitem mais que as pessoas tenham, em sua imagi­nação, uma localização correta e contínua com relação ao resto do tecido urbano. A experiência fenomenológica do sujeito individual não coincide mais com o lugar onde ela se dá. Essas coordenadas estruturais não são mais acessíveis à experiência imediata do vivido e, em geral, nem conceituadas pelas pessoas. Dá-se um colapso da experiência, pressuposto das intervenções artís­ticas que visavam a um reordenamento do espaço urbano e da sua apreensão pelo observador passante.

Hoje há sujeitos individuais inseridos em um conjunto multidimensional de realidades radicalmente descontínuas. Um espaço abstrato, homogêneo e fragmentário. O espaço urbano perdeu situabilidade — uma inscrição precisa em dimensões geográficas, acessíveis à experiência individual.

Instaura-se um problema de incomensurabilidade entre o construído e o projeto, o edificado e o entorno, os diferentes espaços da cidade. Torna-se impossível representar. O espaço hoje é sobrecarregado por dimensões mais abstratas. Trata-se de um problema de representabilidade: embora afetados no cotidiano pelos espaços das corporações, não temos como modelá-los mental­mente. Ocorre uma ruptura radical entre a experiência cotidiana e esses mode­los de espaços abstratos.

Confrontadas com algo que não podem apreender, nossas faculdades de conhecimento entram em crise. Aquilo que lhes escapa provoca o sentimento de ter atingido o limite insuperável. A percepção é suspensa, em comoção, por esse choque. Nessa pausa, o pensamento interrompe a adequação àquilo que crê saber, permitindo ao juízo assimilar o que ultrapassa sua capacidade de apreender e reconhecê-lo como fenômeno sensível. A incapacidade de repre­sentar este fenômeno desmedido faz dele o índice de um objeto inapresentável. Incapazes de afigurar o absoluto, experimentamos – por essa sensação que recusa toda forma – a sua presença. Só a arte, num mundo dominado pela premência do controle e da técnica, é capaz de suscitar o inapresentável, o que não tem forma nem medida. [4]

O encontro com o volume e o peso desmedidos da torre provoca, no espectador, o mesmo desconcerto de percepção que ocorre diante das grandes escalas da megalópole. Ambos escapam ao seu mapa mental, aos recursos cog­nitivos, derivados da experiência, de que dispõem os indivíduos. Uma dimen­são que leva à perplexidade: o que se vê não é o que se tem. Uma presença tão massiva que para ela não se tem medida.

A intervenção de Nelson Felix é uma abordagem da inapreensibilidade do desmedidamente grande. Uma situação em que o próprio tamanho do pré­dio, independente de seus eventuais usos e programas, constitui a questão, como as configurações arquitetônicas e urbanísticas que se impõem de modo puramente quantitativo, por suas enormes dimensões.

A produção escultórica contemporânea ainda se faz, essencialmente, sob os princípios da experiência e visão. Ela pressupõe uma relação do observador com a obra que o mobilize e leve a apreender um campo mais amplo, confor­mado pela articulação da escultura com o entorno. Um modo de percepção que abandona o ponto de vista fixo, para se fazer em movimento, à medida em que se caminha pela situação. [5] Mas trata-se, ainda, de um dispositivo fenomenológico, fundado na vivência da situação e na percepção ocular.

A operação contida na proposta de Nelson Felix rompe por completo com este dispositivo. Aqui, como na intervenção feita pelo artista no prédio do Moinho Central, quando do último projeto Arte/Cidade, não existe a pres­suposição de uma forma escultórica inserida no edificado ou na paisagem, uma situação que seja apreendida a partir da presença do observador neste campo ampliado. A escala em que se dá a intervenção implica outros padrões de espacialização e percepção.

Trata-se de inserir, no 2o andar da torre, dois perfis em “I” de ferro – de cerca de oito metros de comprimento e 40cm de altura cada – através de três pilares de sustentação, a pouca distância do chão:- Secionados, os pilares passam a apoiar-se exclusivamente sobre os novos elementos, acentuando o equilíbrio crítico da situação. Um minucioso estudo sobre a distribuição do peso das lajes e a função de apoio de cada pilar foi realizado para se determi­nar o local mais apropriado para as incisões.

A estruturação do prédio todo é a questão da operação. A intervenção numa área precisa, na verdade em três dos muitos pilares, trabalha com todo o sistema de sustentação do edifício. A própria estrutura é inteiramente mobi­lizada: trata-se de “uma escultura de 900 toneladas”. Ocorre uma redistribuição do peso, um redirecionamento de todas as forças que sustentam o prédio. A edificação já existe, nos antigos moldes industriais, mas a intervenção introduz, nesta estrutura rígida e compartimentalizada, o principal predicado da grande dimensão: o imprevisível; a possibilidade de provocar outros eventos no inte­rior deste grande contêiner. O ataque aos pilares, base da estrutura fixa, sugere uma arquitetura flexível e dinâmica. Uma arquitetura líquida.

Uma operação que confronta o observador não com o que ele tem ime­diatamente diante de si, mas com uma configuração muito maior e mais com­plexa: o prédio todo, a área inteira. Engendra um espaço não-visual se­melhante a outros projetos do artista que trabalham com largas escalas de tempo. Uma ação que lida com forças e tensões imensas, com volumes e pesos descomunais, numa escala que escapa à experiência e à percepção dos que habitam ou utilizam quotidianamente essas edificações. Dimensões de espaço e tempo tão extensas que não são abarcáveis pela experiência individual, quando a escultura convencional está baseada em instigar uma vivência das situações.

Aqui, a reconfiguração espacial e a visão peripatética – procedimentos ainda pertencentes à prática escultórica, baseada na experiência e na percepção ótica — não bastam. O que está em jogo não se desvela à experiência, não se dá a ver. Ocorre em dimensões espaciais e temporais que transcendem a situação imediata e local. Requer a apreensão de uma configuração espacial que não pode ser alcançada por mera investigação direta. Uma abordagem radicalmente anti-fenomenológica, que não se esgote no corpo a corpo com a obra.

In loco, o que de fato se vê é uma intervenção aparentemente pontual, limitada. E que se faz sobre algo cuja forma e dimensões não se pode apreen­der, cuja imensa presença só pode sugerir. É esta combinação – entre ação pre­cisa e circunscrita, anti-espetacular e amplitude espacial – que confere radicalidade ao projeto de Nelson Felix. Paradoxo de um procedimento não mais ade­quado às noções escultóricas de espaço e tempo, mas que opera com as escalas das metrópoles globais.

A compressão das dimensões de espaço e tempo, resultante dos processos econômicos e informacionais recentes, é também o substrato de outras obras de Nelson Felix, agora através da vertente complementar: a temporalidade.

Mesa (1997-1999), uma intervenção realizada numa área rural próxima à Uruguaiana (RS), consiste numa longa chapa de aço, de 41 toneladas, sustenta­da por tocos de eucaliptos a pouca distância do solo. Ao seu lado, foram plan­tadas 22 mudas de figueiras-do-mato. Com o tempo, de 15 a 300 anos, na pre­visão do artista, essas árvores sustentarão e deformarão o plano da chapa, reconfigurando o plano da paisagem. Uma obra que, portanto, também não se dá imediatamente a ver. Mas agora porque se desenrola ao longo de um vasto perío­do de tempo, irredutível à apreensão baseada na experiência.

A abordagem de largas fatias de tempo, históricas e até mesmo pré- históricas, escapando de muito a possibilidade da vivência individual, foi operada por alguns artistas da Land Art, particularmente Robert Smithson. Várias de suas obras remetem a fenômenos geológicos e transformações da natureza que questionam nossa percepção desses processos. Elas atuam em áreas sujeitas a metamorfoses que se fazem em grandes ciclos temporais, inapreensíveis pela observação visual, fazendo emergir as diversas camadas de tempo ali contidas. São, em certo sentido, um exercício de arqueologia ao inverso. [6] São obras que nos aportam uma sensação de passado e futuro extremos, ampliando nosso espectro de percepção temporal. Revelam situa­ções onde “os futuros remotos se encontram com os passados remotos.”

Com Mesa, Nelson Felix também nos lança nessa dimensão mais vasta. O trabalho pertence a uma série de obras em que o artista usa plantas para estabelecer um espectro temporal, como também em Mesas (1995). Quando tudo contribui para fazer prevalecer a impressão de instantaneidade das coisas, a operação instaura um processo a muito longo prazo. Não há nada para ver ali. O observador eventual não deve enganar-se com a imponente presença material daquela comprida e pesada chapa de aço: o processo que se desenro­la ali ocorre no tempo, não no espaço. Até mesmo a sensação de peso provo­cada pela peça tenderá a desaparecer, à medida que os troncos e raízes intera­girem com a chapa, criando uma amálgama-, de elementos orgânicos e inorgânicos, característica das situações imersas no atemporal.

O Grande Budha (1985-2000) também retoma a questão do imensa­mente grande, da compressão das dimensões no mundo globalizado e da perda dos padrões de medida de tempo e espaço. O trabalho foi realizado no Acre, em plena floresta amazônica. Em torno de uma árvore, ainda em crescimento, Nelson Felix instalou diversas peças metálicas pontiagudas, voltadas para o tronco. Assentadas no”solo, as peças formam uma espécie de gargantilha de agulhas em volta da árvore. Ao crescer, o tronco vai ser paulatinamente per­furado por elas. Mas, ao longo do processo, acaba por absorver completamente aqueles elementos. Com o tempo, o trabalho desaparece no interior da árvore, que volta a ser uma dentre outras na mata.

O processo de locação do trabalho concentra uma das instâncias da questão dimensional. A localização é, a princípio, precisa, com coordenadas determinadas rigorosamente através de sistemas de posicionamento global (GPS): latitude 10 / longitude 69.

A precisão da localização – as coordenadas intencionalmente redondas e arbitrárias – indica porém, desde logo, uma abstração que problematiza todo o mecanismo de medida. A operação determina um quadrante no interior da mata densa e intrincada, um espaço resistente a todo tipo de compartimentalização e demarcação.

A floresta é um espaço liso. Deleuze traz uma reflexão sobre essas formas de espacialidade que se estendem infinitamente, sem pontos de referência, como o mar e o deserto. Aqui tudo se distribui num plano, um regime de relações de velocidade e lentidão entre elementos não constituídos, segundo composições em permanente variação. Elementos heterogêneos e díspares que formam conjuntos fluidos e voláteis. Bastam movimentos, velocidade ou lentidão, para refazer um espaço sem marcos ou referências. [7]

Ocorre uma perd0

O espaço demarcado por monumentos, radiais ou fronteiras implica visão de longe, distâncias invariáveis em relação a referenciais inertes, perspectiva central. Aqui se dá o contrário: estar muito próximo, não poder mais ver, ficar sem referências. Uma variação contínua de orientações, ligadas a observadores em movimento. O espaço não é visual: não há horizonte, nem fundo, nem perspectiva, nem limite, nem contorno ou centro. Desconhece a profundi­dade, a luminosidade, a perspectiva. Não há distância intermediária: estamos sempre no seu interior, no meio.

Um outro tipo de percepção, de quem está no solo, afirma-se aqui. A astronomia criou um padrão de localização para quem está num espaço sem referências: a observação das estrelas. Estabelece pontos fixos. Nosso obser­vador, porém, está sempre se deslocando, sem referências estáveis. Não se per­corre esse espaço como o marinheiro, com uma carta astronômica, mas como o nômade ou o submarino atômico: sem pontos fixos.

No espaço liso, a articulação de uma vizinhança à seguinte não é defini­da e pode se fazer de diversas maneiras. O espaço se apresenta como uma coleção amorfa de partes justapostas sem vínculos entre si. Ele pode ser definido independentemente de qualquer referência a uma métrica, por acu­mulação. Cada justaposição cria uma zona de indiscernibilidade: essas pas­sagens servem para rearticulações permanentes e mudanças de direção.

Uma operação que se faz por dobradura, permitindo alcançar logo vas­tas dimensões, passar do lugar ao espaço. Preencher o hiato entre o muito pequeno e o imenso, dar conta de grandes escalas. Pequenas intervenções que tomam um campo ampliado através de seus prolongamentos e propagações.

Serres coloca assim a questão das grandes dimensões: em que mapa desenhar essas propagações, esses movimentos imprevisíveis? Trata-se da relação entre o local e o global. Como passar de uma escala a outra? A exploração intensa de localidades singulares e vizinhanças delicadas, lugares particulares cujo afastamento garante a dimensão global do mapeamento. Por prolongamentos curtos ou mais longos, um fluxo que constrói o mundo lugar por lugar. [9]

As intervenções são sempre locais e pontuais. Impossível abarcar de outro modo extensões tão vastas, descomunais. Apenas pela justaposição, pelo desdobramento de uma coisa a- outra, por associações paulatinas e progressi­vas, vai-se abarcando uma área mais extensa, uma tessitura que liga lugares vizinhos e os distribui ao longe. Estes caminhos entrecruzados produzem um campo ampliado por expansões e prolongamentos imprevistos.

Como cartografar um mundo sem fronteiras, sem medida, sem limites? Trata-se de um atlas que vai sendo desenhado por esses entrelaçamentos, por conexões e inclusões contínuas. Espraiando-se cada vez mais longe. As distân­cias são substituídas por novas proximidades, redistribuídas segundo outras conexões. Proximidades que de modo algum mimetizam a realidade do ter­reno, mas que permitem novas passagens, outras interações.

As imagens de sobrevôo são ainda imediatamente espaciais, pressupõem um ponto de vista privilegiado, referências constantes. É preciso orientar-se por mapas que tragam tanto as alterações rápidas das coisas quanto as mais lentas e profundas — geológicas. Em vez de uma arquitetônica clássica, ligada aos sólidos, fixa, pesada; uma carta das passagens, capaz de compreender áreas em convulsão, em transformação contínua.

As novas grandes escalas demandam operações que evidenciem os limi­tes da cartografia, dos dispositivos tradicionais de localização. Abordagens que mostrem como o mapeamento deixou de ser acessível através dos próprios mapas. Elas requerem um jogo entre a presença e a ausência, a fim de trans­mitir algo do senso de que essas novas e enormes realidades globais são inacessíveis a qualquer sujeito individual. Realidades fundamentais irrepresentáveis, que não podem surgir diante da percepção. Como, então, tornar conceitualmente acessíveis essas realidades?

É então preciso buscar um tipo de figuração adequada para esses proces­sos. Transferir o mapa visual da cidade para o globo, agregando escalas que escapam às suas dimensões. Deslocar a figura geográfica, transcendendo de vez os limites do mapeamento. Mas essa estetização da espacialidade seria a única maneira de enfrentar a crise de representação gerada pelas novas escalas do espaço e do tempo? As periódicas transformações nos parâmetros da experiên­cia e da percepção do espaço e do tempo, comprimidos pelo desenvolvimento da técnica e dos meios de transporte e comunicações, engendram reavaliações nos modos de representar o mundo.

Ocorrem então reafirmações da identidade do lugar, em contraposição ao caráter abstrato do espaço. Na impossibilidade de apreender as novas e amplas configurações espaciais, recorre-se a uma estetização do particular. Impõe-se então uma retórica da imagem, das formas de apreensão diretamente vinculadas à experiência e à observação individuais, mas mediadas por um aparato publicitário que tende a tudo converter em cenografia e simulacro.

Não é pelo posicionamento na paisagem, um contínuo indistinto e cer­rado, que o Grande Budha poderá ser apreendido. Não se trata apenas de um lugar remoto, ainda que localizável. Tal como no caso de Spiral Jetty, de Smithson, de nada adiantaria ir até lá, não haveria nada para ver. Não apenas porque a mata encobre tudo, incluindo o próprio trabalho. Mas sobretudo porque ele não se faz, propriamente, ali. Ele ocorre em outra dimensão, em outra escala. Sua localização escapa à experiência; é um dado abstrato.

Essa localização, imersão num espaço essencialmente dinâmico, desprovi­do de forma e limites, leva a outra instância da questão dimensional. O trabalho, ressalta o artista, não é composicional: a inserção de um objeto em relação ao entorno imediato. Não há qualquer recorrência do repertório da arte para site specific. Quando se lida com coordenadas, com medidas de localização em grande escala, abstratas, não se tem composição. Não se leva em consideração aspectos morfológicos e topográficos. Neste caso, não há composição paisagística.

Quando se verifica, por toda parte, justamente em razão da perda da capaci­dade de delimitar o espaço, um revival nostálgico do jardim de esculturas, de um espaço de dimensões e topografia controladas, a estratégia de Nelson Felix descar­ta decididamente qualquer reducionismo. Não evita, através da criação de um simulacro de paisagem, do recurso escultórico clássico da composição formal ou espacial, a questão do caráter desmedido e ilocalizável do espaço contemporâneo.

O trabalho de Nelson Felix desdobra-se em outra escala de tempo-espaço, irredutível a situações dimensionáveis pela métrica da experiência individual e a processamentos composicionais. Ele parte de uma estratégia decididamente não estruturante, para configurar situações complexas e dinâmicas, onde diferenciais espaciais e temporais permitem a ocorrência de novos territórios informes, fluidos e heterogêneos.

 

[1] D. Harvey, The Cortdition of Postmodernity, Cambridge, Blackwell, 1990.

[2]F. Süssekind, “Escalas e ventríloquos”, Caderno Mais!, Folha de S. Paulo, 23/7/2000.

[3] F. Jameson, Postmodernism, or The Cultural Logic ofLate Capitalism, Nova York, Duke UP, 1991.

[4] J-F Lyotard, Llnhumain, Paris, ed. Galilée, 1988.

[5] R. Krauss, The Originality of tbe Avant-Garde and Other Modernist Myths, Cambridge, M1T Press, 1985.

[6] D. Bellman, “R. Smithson and F. L. Olmsted: Earthworks in the Future Anterior”, Arts Magazine, maio, 1978.

[7]G. Deleuze & F. Guatari, Mille Plateaux, Paris, Minuit, 1980.

[8]P. Virilio, Lespace critique, Paris, C. Bourgois ed., 1984.

[9] M. Serres, Atlas, Paris, ed. Julliard, 1994.

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LAVOURA DE PENSAMENTOS

Sônia Salzstein - 2001

O pensamento parece uma coisa à toa,

mas como é que a gente voa

quando começa a pensar?

(Lupicínio Rodrigues, “Felicidade”, canção popular)

O trabalho de Nelson Felix surge da interação peculiar entre procedi­mentos tecnológicos finos, intervenções de engenharia em escala industrial e representações do mundo natural, com seus elementos animais, minerais e vegetais a se revolverem em um rumor difuso de vida latente. Lapsos e desníveis se sucedem na fervura desse processo de interações, que envolve en­xertos e hibridismos entre elementos naturais e artificiais e entrecruzamentos constantes de fenômenos incomensuráveis; mas são tais lapsos e desníveis que constituem, precisamente, o horizonte de interesse da produção desse artista. Eles explicam o lugar instável em que o trabalho se posiciona, assim como suas experiências hiperbólicas da forma, que vão da iridescência fria de superfícies ingresianas, de mármores clássicos ou madeira ultrapolida, a uma constelação de figuras do informe, com seus duetos de azeite e gordas postas de graxa dis­solvendo os contornos dessas superfícies, plantas que interagem sensorial- mente com artefatos industriais — uma variedade, enfim, de elementos dís­pares, que apenas a força penetrante da gramática mental do artista é capaz de juntar.

Em meio a tal regime vertiginoso de funcionamento, o fenômeno mais decisivo para o trabalho é, sem dúvida, a assincronia que ele percebe entre o tempo molecular e digressivo do pensamento que lhe dá origem e o tempo turbinado e prescritivo em que se desenvolve a vida material, vale dizer, entre a pulsão do trabalho e as estruturas materiais de sua realização. Pode-se afirmar, então, que os hibridismos que ele enceta não fazem senão descrever essas trincas que vão se abrindo de modo inelutável na esteira do processo criativo; os mate­riais (ou, como se disse: a própria estrutura material da qual depende a inserção objetiva do trabalho na dinâmica da produção) apresentam-se cada vez mais resistentes aos investimentos simbólicos, cada vez mais autônomos, como se fos­sem compelidos por uma necessidade própria que pudesse preceder a necessidade do trabalho. Quando ingressam no campo de interesse do trabalho, é como se já arrastassem consigo alguma prescrição cultural, como se contrabandeassem para dentro dele algo da racionalidade tecnológica inscrita em seu devir. Por outro lado, a tecnologia torna esses materiais progressivamente mais leves, de sorte que e o pensamento que agora principia a intumescer o trabalho, com seu tempo sem pressa e sua viscosidade de matéria que transborda da superfície dos objetos.

Isso explica que na produção de Nelson Felix os materiais nunca venham à tona como presenças plenas que se pudesse flagrar em pleno langor e sensorialidade, mas condicionados a um rito conceituai tão poderoso quanto inacessível, ou acessível de maneira apenas latente. É importante notar, a propósito, que muitos trabalhos do artista surgem associados a registros escritos, mapas e desenhos preparatórios trazendo indicações geográficas quan­to à sua latitude e longitude, instruções sobre determinados ângulos de insta­lação mais propícios em razão deste ou daquele fenômeno natural etc., de tal modo que estes trabalhos, uma vez instalados, projetam-se sempre um pouco além ou aquém do observador. Além disso, aquela assincronia presente na gênese do trabalho também se manifesta como uma espécie de jogo conceituai e perceptivo entre as formas e os materiais, jogo que comuta incessantemente os valores dos materiais uns nos outros, fazendo, por exemplo, uma pesada estrutura de vigas de ferro alçar-se no espaço como que carregando o chão sob seu impulso e a irradiação branca e imaterial de um lingote de mármore infundir na pedra uma letargia acabrunhante (é o que se vê na Série Árabe[1]).

Outra conseqüência importante daquela assincronia é o turbilhão de escalas díspares em meio às quais o trabalho se desloca. Já se sabe que ele orbita entre as granulações mais moleculares do pensamento e os agenciamentos tec­nológicos necessários para assegurar-lhe o vocabulário e a densidade adequados. Mas como objetivar-se no espaço público? De fato – o artista por certo se per­gunta —, que medida comum pode haver entre o imponderável de um vago pen­samento à deriva, como este que se produz no trabalho de arte, e a psicologia dos interesses predatórios e mutuamente excludentes das cidades contem­porâneas, entre ele e a mentalidade lábil e tediosamente uniformizada dos grandes negócios, das megainstituições culturais? Que medida comum pode haver entre um latejamento de veias mais intenso, uma freqüência cerebral sin­gular, e os padrões de vida subjetiva instilados na cultura em larga escala?

É esse vão que o trabalho problematiza, transformando-o na matéria- prima de sua indagação; cumpre observar que não o faz de fora, como um sujeito ideal que criticasse (e se isentasse) da alienação disseminada pela razão instrumental; ao contrário, submete-se ao jogo dela, inscrustando-se no chão material da vida contemporânea, com seus ecletismos, seus espelhamentos entre natural e artificial, entre o originário e o transgênico. Imbuído de um ânimo, digamos, materialista – que ilumina as contradições intrínsecas ao lugar em que se posiciona, mas também fortalece nele o desejo de transcender este lugar e de assegurar sempre mais autonomia e precedência em relação a ele -, o trabalho camaleonicamente se configura como espécie de “corpo interior”. “Corpo interior”, expliquemos, porque confina com os objetos positivos que lhe dão estrutura material mas reduz tudo a seu núcleo mais interno: corpo ubíquo, sem figura, entretendo com os materiais uma relação ao mesmo tempo distancia­da e altamente carregada de simbolismos, fermentando uma estufa de energias orgânicas no universo virtual da racionalidade tecnológica.

 

O máximo que se pode conjecturar de tal “corpo interior”, de resto esquivo a apelos visuais (pois o artista preza o hermetismo, as alusões e sugestões), é que descreve algo de um pensamento irredutível à noção de sub­jetividade, capaz de se afastar de tudo e haurir em seu próprio reservatório inesgotável de energia mental, tanto quanto de alhear-se no ambiente, sub­mergindo em uma exterioridade absoluta e percebendo-se, para além de suas próprias comoções subjetivas, profundamente engastado no devir que esse ambiente encerra. A experiência de um corpo interior divisado entre os pólos extremos da tecnologia e da natureza se perfaz no curso de uma infinidade de entrecruzamentos, permutações e rearranjos recíprocos entre forças hetero­gêneas, que entretanto sempre o devolverão a si mesmo. Assim, por exemplo, a intervenção cirúrgica pela qual se enxertou um pequeno Buda de ouro no osso de um cão[2] não apenas surtirá o efeito de adaptar o osso ao corpo estra­nho; ameaçado em sua integridade, o organismo do animal instruirá a produção de uma estrutura adaptativa – um novo tecido – que, sem pertencer à natureza primitiva do animal e sem se subordinar a uma razão tecnológica externa, será capaz de absorver esse elemento e de restaurar a normalidade do organismo em outro patamar. Em todo caso, o que se tem aí já não é estritamente um cão, mas um cão abismado em uma interioridade humana.

A interação entre elementos desmesurados e heterogêneos dá-se em diver­sos níveis no trabalho: na relação com o espaço, que o artista experimenta median­te uma sucessão de saltos lancinantes, ora tomando-o em escala monumental ora em escala molecular; nos procedimentos adotados, que oscilam entre a impessoalidade e um expressionismo que vem à tona a contrapelo, através do manejo heterodoxo e voluntarista da tecnologia;[3] na relação com a forma, que ziguezagueia sem freios entre a dispersão oceânica dos pensamentos e a exigên­cia de tangenciar o peso da matéria. Não se pode esquecer, também, os já men­cionados deslocamentos entre os materiais e as formas que os definem – aque­les, de uma fisicalidade impositiva; estas, espécies de emanações abstratas, padrões seriais obtidos por subtração de matéria ou resultando de uma potencialização do entorno (e neste caso pressupondo uma atitude de alheamento quase absoluto perante a matéria). Importa destacar, enfim, que a idéia de intera­ção sugere um trabalho que quer abraçar uma totalidade, mas de tal maneira que esta permaneça diversa em todos os seus pontos, sendo o arranjo entre partes tão heterogêneas sempre pontual e periclitante, e propiciado por uma energia que escapa aos objetos que ali se solidarizam apenas provisoriamente.

A energia constitui, dessa maneira, o problema central na produção do artista; não, por certo, a energia que se obtém de movimentos mecânicos — difícil encontrar trabalho mais refreado em perplexidade e contemplação do que o de Nelson Felix -, mas aquela que se produz dos embates entre gran­dezas diversas (sem que haja precedência de umas sobre outras), que geram verdadeiras estases energéticas. De fato, o trabalho tanto pode solicitar, como no caso do cão, um poder de violência e submissão sobre a matéria (que, como se viu, a ele resiste, tendendo sempre à sua integridade de matéria), como inversamente reclamar uma atitude de ataraxia, mediante a qual grandes repositórios de energia são desentranhados simplesmente porque o artista deixa as coisas jazerem onde estão, ou porque extrai um cinetismo de alta voltagem entre as partes heterogêneas do trabalho, recorrendo apenas à co-presença delas.

O que cabe frisar do processo de interações que tonifica o cerne do tra­balho de Nelson Felix é que faz intervir uma inusitada face orgânica – com seus efeitos de imprevisibilidade e certo estremecimento metafísico — em um universo, como o da tecnologia contemporânea, autônomo e capaz de prescre­ver seus próprios interesses. Não é que o artista se sirva das formas positivas da tecnologia (pode fazê-lo ou não — não é o que conta); antes, é o trabalho que tem como pressuposto uma natureza continuamente violada pela tecno­logia, natureza que amanhece tão mais capaz de se regenerar e de resistir quanto mais complexidade agrega e mais externa se torna a si mesma. Algo como uma natureza que pensa,[4] ou que só é acessível como um pensamento da natureza — pensamento, entretanto, sem objetos, ele próprio uma aplicação insubordinada da tecnologia. Sendo, em todo caso, pura energia física, não se aloja no recesso da consciência, e por isso demonstra-se capaz de se estender em linha horizontal no mundo, como uma perfeita exterioridade.

Pois é tal capacidade que torna o pensamento/energia apto a reco­nhecer-se como parte da natureza alienada e, ao mesmo tempo, a responsabi­lizar-se pelo destino dela. Somente assim pode ele, afinal, integrar-se a tal natureza ininterruptamente reconstituída segundo os interesses da tecnologia, sem jamais se deixar colonizar por esses interesses. Eis a razão pela qual tudo se equivale do ponto de vista do trabalho – da potência do guindaste que sus­pende a laje de ferro de 52 metros em uma paisagem erma nas planícies do Rio Grande do Sul[5] à potência da gota de suor derramada pelo trabalhador que se embrenha na floresta do Acre para instalar o Grande Budha, e destas à potên­cia da imagem de espiritualidade que o procedimento cirúrgico lacrou irrecorrivelmente no osso do cachorro, potência que decorre da própria elisão da imagem do sagrado, do fato de que, sendo simplesmente ausência, permanece salvaguardada de todo antropomorfismo e assim parte inalienável da natureza.

Não obstante essa contínua transgressão de limites entre processos obje­tivos e subjetivos, nossos modelos para pensar as relações entre arte e natureza são ainda profundamente caudatários da tradição moderna, da relação dual que esta constituiu com a própria noção de técnica, e assim tendemos a perceber o entrelaçamento de polaridades que anima o trabalho de Nelson Felix como reencenação contemporânea do célebre dilema moderno entre natureza e cul­tura, se não como retorno ao idealismo clássico e ao velho antagonismo entre corpo e espírito. Entretanto, remeter o movimento do trabalho a tal dilema é o mesmo que engessá-lo e ignorar-lhe o indefinido burburinho interno, no qual, precisamente, é impossível discernir a parte que cabe à “natureza” e aquela que cabe à “cultura”. A radicalidade de uma atitude que repõe a experiência da natureza no centro da indagação da arte – à distância do paradigma romântico e de toda ideologia de busca das origens, bem entendido – é que enlouquece o pensamento dualista incrustado no dilema “natureza versus cultura”.

O pressuposto do trabalho é o de que tal dilema há muito deixou de arbitrar os conflitos da subjetividade contemporânea com a tecnologia (vale dizer: com a instância da cultura), na exata medida em que esta deixou de pro­tagonizar o pólo antagônico naquela máquina dialética, arruinando assim os efeitos de sublimação idealista que ela propiciava. Em vez disso, a tecnologia demonstrou-se progressivamente mais leve, mais estruturalmente engastada nos fenômenos naturais, em uma palavra, mais “naturalizada” e interiorizada no núcleo duro da subjetividade. Daí os hibridismos, os enxertos serem tão presentes no trabalho do artista. Não por acaso, ele também prescinde de uma noção de subjetividade em prol da noção objetiva de energia, que emana, difusa, de um pensamento substancioso e sem objetos. Para que não haja sus­peita de idealismo é preciso destacar que tal experiência da natureza pressupõe a geografia mutante do meio ambiente contemporâneo e uma cultura que, ao franquear intervenções profundas no campo da genética e da biotecnologia, força à redefinição profunda da noção de subjetividade e do próprio sentido do humano.

Por isso, o trabalho já não pode se traduzir naquele conflito dual e, se a sensibilidade contemporânea se desorienta em face da miscigenação contínua que se processa na superfície das coisas, entre o natural e o artificial, é preciso lembrar que tal miscigenação só é possível porque terá antes infligido mudanças profundas nas percepções que tem de si um corpo esquadrinhado pela tecnologia.[6] Importa deixar registrada a equivalência que no trabalho de Nelson Felix se estabelece entre matéria e pensamento; é como se estes fossem tomados como feixe único de energias físicas, uma parte das quais é leve e ubíqua, a outra, densa e sujeita à força da gravidade, de tal sorte que uma e outra estarão aí presentes com igual intensidade, simultaneamente e de modo contínuo, embora devendo se revelar, digamos, em freqüências diversas.

Em um trabalho como Beijo em Madalena é patente esse fenômeno de equivalências. O biomorfismo, a ênfase na fisicalidade dos materiais e a espé­cie de vascularização que interliga todas as partes heterogêneas em uma mesma pulsação sangüínea paradoxalmente conduzem a um ambiente abstrato, à sen­sação de uma proximidade envolvente mas intangível. E embora na já referida Série Árabe, por exemplo, sejam substanciosas as referências ao mundo energético do trabalho e à mais nobre tradição artesanal da arte, que é a da lapidação do mármore (com suas metáforas de uma natureza que se retira da brutalidade originária e se plasma em carne nas mãos do artista), o trabalho apresenta-se com uma fisionomia quase minimalista, à luz vaga de uma acele­ração de pensamentos. Trata-se, diga-se de passagem, do mais “mental” e ao mesmo tempo do mais biomórfico dos trabalhos do artista; entretanto impli­cou o enfrentamento abrasado dos materiais e passou ao largo de qualquer referência figurativa, de qualquer antropomorfismo…

Mas, justamente, a atitude crucial no trabalho parece ter sido a de anu­lar a sintaxe, o estilo e o repertório de procedimentos que a história da arte recente legou das associações entre o ferro e o mármore: uma epifania de infle­xões comportamentais, mediante as quais o mármore aflora como a natureza clássica em desastre, retalhada e reordenada como em uma colagem pelo prag­matismo minimalista do ferro. Em suma: todas as marcas de uma subjetividade moderna que dramatiza seu acossamento perante a disseminação avassa­ladora da razão tecnológica. Ao desvencilhar os materiais dessa espécie de pele cultural, o artista erradica deles o menor resquício de investimento subjetivo e devolve-lhes o peso originário e a memória histórica. Ao ferro, restitui o valor- trabalho, a memória crucial do mundo do trabalho, do domínio febril da natureza sob a égide da sociedade industrial.

Do mármore, evita as comoções expressivas que este pode tão facilmente render, de tal modo que a disciplina monástica e o distanciamento adotados em face do material garantem que assome como um repositório anônimo de energias orgânicas, mas agora é do trabalho artesanal que se trata, vale dizer, do mármore como estrito valor de transformação da natureza, preservado em sua integridade e vocação civilizacional. Dessa maneira, as grelhas de mármore comparecem na Série Árabe como uma evaporação de formas hieráticas e seriais, que contrabalançam o tipo de movimento mecânico a que aludem os trilhos de ferro com o movimento energético, “mental”, que pulsa em suas próprias formas vazadas. A despeito dos procedimentos e materiais vigorosos mobiliza­dos pelo artista, vê-se, afinal, como a Série Árabe personifica como nenhum outro trabalho a idéia daquele corpo interior, algo que remete à disciplina e à impassibilidade requeridas em um processo de emancipação do pensamento (no fim das contas: em um processo de emancipação individual), sem recorrer, para tanto, a quaisquer imagens do ego.

 

Tudo isso posto, é preciso observar que o par antitético “natureza versus cultura” constituiu um modelo cultural extraordinariamente agudo e prolífico para descrever a dessubstancialização crescente da natureza (na esteira do avan­ço imperativo da racionalidade tecnológica) como a marcha progressiva da arte moderna em direção à reflexividade de seus meios; assim, a uma razão resplan­decendo como o triunfo subjetivo da arte autônoma correspondia, no ter­ritório da vida social, a ascensão irresistível da razão instrumental. Além disso, pelo menos desde Freud, a percepção do movimento da história através dos antagonismos entre natureza e cultura parece ter providenciado uma auto- imagem ressonante a uma subjetividade moderna perplexa em face da cisão crescente entre a esfera pública e a esfera privada, cisão evidentemente inscri­ta na gênese daquele antagonismo. Trata-se da auto-imagem segundo a qual a experiência de um mundo da cultura autônomo, propiciada pela sociedade industrial, custara à subjetividade um perpétuo desconforto e mal-estar,[7] não obstante a extraordinária potência crítica e dessacralizadora de que se investia essa experiência.

Tal auto-imagem teve efeitos terapêuticos em uma civilização emulada por seu próprio poder de progresso e destruição: a visão da natureza na imagi­nação moderna aos poucos revelar-se-ia condenada a um horizonte ideal, a aparecer fantasmagoricamente transfigurada sob o sintoma de uma perda — e tanto faz se nos referimos à natureza, refúgio da subjetividade romântica e irracionalista, ou à natureza clarividente da mentalidade clássica, solo primordial do reformismo da vertente construtiva e produtivista da arte moderna. Todavia, a fórmula que rendeu interpretações notáveis da arte do século XX[8] parece ter culminado – e implodido — com a experiência ambígua de “natureza” descortinada pela arte povera. De fato, talvez possamos tomar o panteísmo que anima a cornucópia de materiais nos trabalhos de artistas como Luciano Fabro, Mario Merz, Giovanni Anselmo ou Giuseppe Penone (para ficarmos apenas em alguns), como o derradeiro aparecimento da subjetividade romântica, “autônoma”, no contexto da história da arte moderna.[9]

Entretanto, que espécie de natureza é esta, que se recobra de maneira tão abrasada depois de todo o luto da modernidade? Não pode passar desperce­bido o fato de que nesses trabalhos, a despeito do frêmito barroco de mate­riais e procedimentos que confere a eles poderosa energia orgânica, a imagem da natureza se revela na iminência de desmoronar no informe, alienada em um sem-número de pedaços heteronômicos que se agregam em arranjos casuais, frouxamente costurados. Vale dizer: arranjos definitivamente inadequados para protagonizar a experiência de integridade e autonomia buscada na imagi­nação moderna. Que natureza é esta que aí se reconstitui e desmancha ao bel- prazer de uma operação lingüística? A aderência aos materiais, à abstrusidade das coisas, não relevaria, a essa altura, de uma visão premonitória da natureza transgênica que assoma no mundo contemporâneo, no laboratório do capi­talismo avançado? A insistência em infundir calor a fragmentos industriais anódinos (como ocorre literalmente em Jannis Kounellis mas, em um nível perceptivo, também em outros artistas, como Joseph Beuys e Anselm Kiefer, em cujas obras reencontramos uma imagem transtornada da natureza) não aludiria a uma “segunda” natureza, que retorna de modo obsedante, insemi- nada com elementos midiáticos e ultra-institucionalizados?

Na arte povera trata-se, afinal, da velha polaridade “natureza versus cul­tura” ou aí nos deparamos, dada a suntuosa prodigalidade de imagens de natu­reza que agita esses trabalhos, com o sintoma de uma subjetividade acachapada perante a nova ordem tecnológica, uma subjetividade que finalmente estetiza e “formaliza” seu alijamento dos novos processos de intervenção e controle que agora vicejam nas esferas mais moleculares da existência? Ninguém negaria que o interesse da produção povera reside precisamente nessa voragem de impasses que a revolve, mas o que cabe sublinhar é que o drama de renasci­mento romântico que ela enceta demonstra-se flanqueado pela paródia e o hu­mor, de sorte que nunca sabemos muito bem se estamos diante da irrupção do fenômeno ou da descrição mais ou menos ensaiada de uma figura da história.

Essas considerações – que evocam de passagem um exemplo tão culmi­nante quanto inviável de estremecimento da equação natureza versus cultura na história recente da arte – me pareceram úteis para apontar a insuficiência interpretativa dessa equação no caso de um trabalho, como o de Nelson Felix, atraído pela aventura de buscar transcendência na dimensão energética e mais materialista do pensamento, ciente de que, na vida contemporânea, esta talvez se aloje em lugar tão improvável como nas ruminações moleculares do osso de um cão que encapsula uma partícula de metal precioso, ou de um tronco de árvore no qual se incrustou um pequeno pênis de cristal.[10] Convenhamos, de todo modo, que embora seja ainda tão presente em nossa imaginação, o mo­delo dos pólos antagônicos passou a demonstrar-se insustentável a partir do momento que principiaram a embaçar as fronteiras entre natureza e cultura ou, para dizer em outras palavras, a partir do momento em que o desenvolvi­mento tecnológico encetou um ritmo alucinatório e autônomo, que interfere nas formas mais primárias da subjetividade, engendrando fusões extravagantes de tempo e espaço e, no fim das contas, trazendo à luz uma dimensão desco­nhecida da natureza, por mais bizarra e permissiva que esta possa se revelar. Mas o que interessa destacar é, afinal, que a natureza que se pervertia “lá fora” era a mesma que contaminava a água profunda de nossa subjetividade.

Embora certos procedimentos de fusão entre elementos naturais e arti­ficiais no trabalho de Nelson Felix lembrem os entrechoques imagéticos que fizeram história na arte povera,[11] estão longe de sugerir a visão idealizada da natureza ou a pulsão do retorno às origens que em última instância lá se denunciam; o artista, ademais, sempre contraporá à sensorialidade incitada pelos materiais uma névoa de distanciamento e hermetismo. Em face da desenvoltura mais ou menos calculada ou do luto com que a idéia de natureza foi tratada em boa parte da arte contemporânea desde a arte povera, o artista repõe a questão em novo patamar, problematiza-a, dessacraliza-a, mas ao mesmo tempo experimenta-a como um manancial de possibilidades regeneradoras. Nunca é demais lembrar que se ele se posiciona à distância do discurso sentimental, das paródias de heroísmo e ultra-excitabilidade subjetiva que acabaram por encharcar o velho dilema natureza/cultura, nem por isso deixa de perguntar sobre o sentido simbólico que ainda pode se encartar sob o processo em curso de dessubstancialização da natureza, não excluída aí a própria natureza humana. Nesse processo atribui lugar crucial a um pensa­mento que resiste à alienação da natureza na medida mesma em que jamais deixa de ser natureza, vale dizer (à maneira de Espinosa), na medida mesma em que está em jogo uma vontade de potência que não responde senão à sua própria necessidade, para além da dimensão da cultura.

[1] Trabalho realizado especialmente para o espaço das Cavalariças da Mansão Lage, da Escola de Artes Visuais do Parque Lage, no Rio de Janeiro, em abril de 2001.

[2] Trata-se da Série Gênesis e da Série Gênesis II (1988/1991), trabalhos de intervenção em ciclos biológicos, realizados em árvores e plantas; dois deles tiveram um cão como protagonista.

[3] Cf. comentário do escultor José Resende referente ao trabalho Vão, apresentado por Nelson Felix na Bienal de São Paulo de 1996; o comentário surgiu em entrevista com o artista: Há um gesto deli­cado que de repente confronta com esse voluntarismo absoluto, de pegar um bloco enorme de 5 x 2m que você resolveu reduzir, fazendo pó para todo lado. Você destruiu aquela pedra de mármore para fazer essa obra para a Bienal. Em Rodrigo Naves, Nelson Felix, São Paulo, Cosac & Naify, 1998, p. 45.

[4] A expressão assinala o jogo sutil de deslocamentos entre físico e metafísico, entre empirismo e transcendência que enerva a noção de natureza no trabalho de Nelson Felix. Sobre a fundação necessária do físico no metafísico em Espinosa – evocação obrigatória neste caso — reportemo-nos ao estudo de Marilena Chaui: (…) a potência de pensar do atributo pensamento é igual à potência de agir dos outros atributos porque pensar é a potência de agir do atributo pensamento e pensar é causar idéias — o atributo pensamento age como agem os demais atributos (…); a potência de agir dos outros atributos é igual à potência de pensar do atributo pensamento, cada um deles sendo uma força infinita de produção de seres formais (…). A ordem da Natureza não é o ordenamento da matéria informe, inerte e passiva, por essências imateriais ativas, criadas pelo intelecto e pela vontade divinos, mas é a atividade simultânea da extensão e do pensamento, ambos atributos de Deus que, com igual necessidade e na mesma ordem, produzem corpos e idéias, suas modificações. Cf. Marilena Chaui, “Imanência e geometria”, em A nervura do real: imanência e liberdade em Espinosa, São Paulo, Companhia das Letras, 1999, p. 595.

[5] Trata-se de Mesa, trabalho de 1999 realizado em um imenso descampado no interior do Rio Grande do Sul, no âmbito do projeto “Fronteiras” (organizado pelo Instituto Itaú Cultural), em localidade próxima à cidade de Uruguaiana, na fronteira do Brasil com Uruguai e Argentina.

[6] Para um trabalho que, como o de Nelson Felix, pressupõe um meio ambiente em permanente transmutação, é a própria potência e elasticidade da experiência psicofísica do organismo humano o fulcro de onde emana toda possibilidade de transmutação. Lembremos que o corpo não é aí toma­do como suporte passivo e complacente aos imperativos da racionalidade tecnológica; ao contrário, o corpo resiste a ela por meio de sua incessante auto-recriação, um corpo enfim que instrui a própria possibilidade do avanço tecnológico e de sua transmutação contínua como organismo, paradoxal­mente percebendo-se sujeito a suas limitações e fragilidades. “Eu penso que essa insistência em tra­balhar com o corpo me fez perder o medo do corpo humano. (…). Mas há um outro aspecto, que c essa obrigatoriedade de viver com o próprio corpo, e isso me fascina”. Cf. entrevista concedida pelo artista, “O que me interessa é essa coisa indefinidamente sugestiva…”. Em Rodrigo Naves, Nelson Felix, São Paulo, Cosac & Naify, 1998, p. 44.

[7] Podemos supor que da própria noção de um inconsciente que não cessa de denunciar o desígnio autocrata das pulsões já derive o pressuposto de uma dinâmica cultural que se alimenta da irrealização permanente da subjetividade. Como se sabe, essa dinâmica do funcionamento psíquico é abor­dada no horizonte de uma crítica da cultura em “O mal-estar na cultura”, publicado originalmente em 1930; 6 ilustrativo mencionar que Freud, antes de atribuir a este texto o título definitivo, cogi­tara intitulá-lo “A infelicidade na cultura”, (“Das Unglück in der Kultur”) tendo sugerido à sua tradutora inglesa a fórmula “O desconforto do homem na civilização” (“Mans Discomfort in Civilization”), da qual posteriormente desistiu. Cf. Sigmund Freud, “El malestar en la cultura”, em James Strachcy, (ed.). Obras completas Sigmund Freud, Buenos Aires, Amorrortu editores, 1996, vol. XXI, pp. 65-73; cf. também a “Introducción” a este texto, de autoria de James Strachey, pp. 59-63. Outro estudo emblemático para os interessados na cultura do século XX í “El porvenir de una ilusion”, em op. cit., pp. 5-9.

[8] Considere-se, por exemplo, a interpretação da obra de Cézanne por Meyer Schapiro, uma inter­pretação ademais freqüente em toda a história da arre moderna, e surgindo referida a um universo significativo de artistas de 1 860 à Primeira Guerra Mundial. Cézanne é, para Schapiro, um pintor tão mais moderno quanto mais dilacerado pela opção de render-se à consciência reflexiva dos meios pictóricos ou aos últimos rasgos de uma visão naturalista e sensual do mundo: Mas o mundo visí­vel não é simplesmente representado nas telas de Cézanne. E recriado por meio de pinceladas de cor, muitas das quais não podem ser identificadas a qualquer objeto [reconhecível] e contudo são necessárias à harmonia do conjunto. Nesse processo complexo (…) o eu está sempre presente, equilibrando-se entre o sentir e o conhecer, ou entre suas [próprias] percepções e a atividade prática de ordenar, que domina o mundo externo dominando algo que se põe para além deste (tradução da autora). [“But the visible world is not simply represented in Cézannes canvas. It is recreated through srrokes of color among which are many that we cannot identify with an object and yet are necessary for the harmony of the whole. (…) In this complex process (…), the self is always present, poised between sensing and knowing, or between its perceptions and a practical ordering activity, mastering its inner world by mastering something beyond itself”]. Cf. Meyer Schapiro, Paul Cézanne, Nova York: Harry N. Abrams, 1988, p. 10.

[9] A referência à natureza como fonte geradora é correlata à idéia de liberação, de recusa de um mundo tecnológico em prol de um naturalismo, de um retorno às origens, ao primordial. Tal busca do primor­dial entre os artistas da arte povera tem uma dimensão ideológica em face dos questionamentos políticos, sociais e culturais do fina! dos anos 60, [dimensão] que visa a reconstruir a unidade perdida do homem fora das estruturas sociais que perpetuam sua alienação (tradução da autora). [“La referce à Ia nature comme source génératrice est corrélative à l’idee de libération, de refus d’un monde technologique, au profit d’un naturalisme, d’un retour aux origines, au primaire. Cette recherche du primaire chez les artistes de l’Arte Povera, au regard des remises en cause politiques, sociales et culturelles de la fin des anneés 60, a une dimension idéologique, visant à reconstruire I’unité perdue de I’homme en dehors des structures sociales qui perpétuent son aliénation”]; cf. Jean-Marc Prévost, “Giuseppe Penone: I’ oeuvre entre causalité et hasard”, Artstudi o/Regards sur lArte Povera, Paris, verão de 1989, n. 13, pp. 120-122.

[10] Intervenção ocorrida no âmbito da Série Gênesis, 1988/1991.

[11] Refiro-me a trabalhos como Mesas, Máscaras (ambos de 1995), ou Vão, apresentado na Bienal de São Paulo de 1996.

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IMPROVISOS ENTRE O BELO E O ESTRANHO

Luiz Camillo Osório - 2001

Jornal do Brasil – 2001

 

ESCULTURAS E SÉRIE DE DESENHOS SERVEM DE EXERCÍCIOS PARA NELSON FELIX, UM DOS GRANDES ARTISTAS BRASILEIROS DA ATUALIDADE.

 

Depois de realizar uma das melhores exposições do ano nas cavalariças do Parque Lage, Nelson Felix apresenta, na galeria HAP, no Horto, uma série de desenhos – Baladas – e um par de esculturas. Para quem está acostumado a “pensar em toneladas, pequenos desenhos em papel japonês, com chumbo e aquarela, podem parecer coisa à toa. Mas não são. Revelam-se exercícios de escala poética concentrada, justapondo materiais diversos que se relacionam mais por oposição que por integração. Simultaneamente, foi lançado um segundo livro sobre sua obra, primoroso, editado pela Casa da Palavra, com ensaios críticos de Glória Ferreira, Sônia Salzstein e Nelson Brissac”.

Na verdade, o que muda entre os desenhos e as esculturas é a escala do trabalho; o pensamento e a operação são similares. Em ambos, vemos que um suporte tradicional – no caso, o mármore e o papel japonês – é transformado por uma intervenção plástica radical, onde o apuro técnico e a tensão entre materiais potencializam-se.

A constatação de quem olha a sua obra, seja em que suporte for, é de que a instabilidade é determinante para o vigor da forma. Nestes desenhos, por exemplo, o chumbo crispa o papel, levando ao limite sua capacidade de sustentação. A denominação de desenho, contudo, tem os seus inconvenientes: como falar em desenho se a matéria determina a forma e o papel não é suporte, mas elementos plásticos, junto ao chumbo e à aquarela? As “mordidas” do artista, presentes em vários momentos, comendo pela beirada o papel e cravando marcas no chumbo, explicitam esta simbiose entre suporte e materiais. Quem sabe, não seria melhor chamar estas baladas de pequenos improvisos de escultor: afinal, elas lidam com a gravidade e têm peso.

 

SENSUALIDADE – Chegamos ao ponto: Nelson Felix é acima de tudo escultor – um senhor escultor, diga-se de passagem. No segundo andar da galeria temos duas pequenas mostras desse fato. Na primeira, são criadas tantas sinuosidades no mármore, que o quadrado original desaparece. Não há quem resista tocá-lo, ou melhor, é fundamental tocar – que me desculpe a “etiqueta museológica”. A sensualidade é uma das particularidades desta escultura. Na outra, um bloco cúbico vazado, também de mármore, é delicadamente desequilibrado por uma pequena peça de chumbo, que a desloca por baixo. Dentro do cubo, uma outra peça destas de chumbo, sem forma definida, quebra o silêncio e a brancura do mármore.

A maneira como o natural e o artificial, o belo e o estranho, combinam-se na poética de Nelson Felix, revela seu interesse em ampliar a noção de forma, pondo em tensão o percebido, o concebido e o sugerido. 0 que “vemos” no embate com suas obras ultrapassa o que se mostra; e esta diferença nasce da capacidade de nossa imaginação interagir reflexivamente com o fenômeno percebido. A potência da forma é proporcional à quantidade de idéias que ela libera no jogo reflexivo da percepção.

Para se conhecer melhor esta obra é aconselhadíssima a leitura do livro editado pela Casa da Palavra. 0 que se percebe aí, de imediato, é o quanto a ousadia de suas idéias impõe uma escala monumental para suas intervenções escultóricas. Esta relação não é nada artificial. Há uma dependência absoluta entre a “escala” das idéias e das interferências. Isto não necessariamente implica em uma peça grande, mas em uma intervenção sempre radical. Como, por exemplo, introduzir um pequeno Buda de ouro dentro do osso de um pastor alemão – com o tempo eles se integram, unificam-se. Como salientou Glória Ferreira em seu ensaio no livro, “longe de serem suplementos anedóticos, as ficções na démarche de Nelson Felix são constitutivas dos dispositivos operatórios do seu trabalho, interconectando realidades tanto físicas quanto espirituais, terrenas e cosmológicas”. São ficções que lidam com a simbologia e a metamorfose dos materiais.

 

FIGUEIRAS – Suas intervenções na paisagem merecem destaque. Primeiro, na fronteira Sul do Brasil e, depois no Acre, ele realizou projetos escultóricos cujos resultados só irão se concretizar com o tempo – tempo este mais cósmico do que humano. Falo em 300/400 anos. Por exemplo: uma chapa de aço de 51 metros, pesando 41 toneladas, foi levada pelo artista para um descampado, perto de Uruguaiana. Ela foi escorada em tocos de eucalipto, mas tem de cada lado 11 pés de figueiras-da-índia recém-plantadas. Com o tempo estas árvores crescerão e passarão a segurar a chapa, mordendo-a pelos lados – os tocos de eucalipto apodrecerão. Um século, quem sabe dois, e o trabalho estará maduro, pronto. No meio do nada, figueiras e aço. Nelson Felix, pela ousadia e rigor de sua obra, é dos grandes artistas brasileiros na atualidade.

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EQUILÍBRIO SUBLIME NUM RICO MOMENTO DA ARTE

Wilson Coutinho - 2001

O Globo – 2001

 

Alguns pensadores julgam que se Deus fosse ateu – uma impossibilidade e um paradoxo – seria obrigado a pensar as coisas do mundo e a si próprio com a elegância formal encontrada na “Ética”, do filósofo holandês Spinoza (1632-1667). Quando os matemáticos resolvem um problema dizem que “a solução encontrada foi a mais elegante”. Esta combinação de elegância e formalismo pode ser vista na mostra Série Árabe, de Nelson Felix, na cavalariça, dentro do Projeto Zona Instável, no Parque Lage. O artista conseguiu fazer de uma questão do pós- modernismo – a obra no lugar in situ, como dizem em latim os críticos e os artistas – um verdadeiro clássico.

O conceito geral é o de que a antiga estrebaria seja ocupada não com obras postas no local, mas que o artista utilize o interior do prédio. A obra deve ser disposta, relacionando-se com as dimensões, a altura, as paredes, a luz, enfim, tudo o que a arquitetura oferece. A idéia pode ser velha. Afinal, o Papa Júlio II apontou, em 1508, o teto da Capela Sistina para Michelangelo, mandando-o se virar.

 

IR AO PARQUE LAGE CHEGA A SER ATITUDE SOLENE

Esta questão voltou, desde os anos 1960, com outros problemas. Felix os resolveu com brilhantismo, astúcia e elegância. Para quem gosta de artes plásticas, ir ao Parque Lage chega a ser solene: há muito tempo um brasileiro não faz uma instalação com rigor, método e inteligência. Sobretudo com emoção, embora esta seja muito contida. A mostra tem o mesmo recado de elegância de uma solução matemática.

Usando uma malha quadriculada de mármore, inclinou uma barra de ferro, que se eleva até o teto. A parede é cortada, em diagonal, com o ondeamento de uma peça de mármore, preenchendo os dois campos que ela abriu. Na saleta, vedada ao espectador por um vidro, vê-se a continuidade das ondas marmóreas, espécie de subtração do que foi visto na outra sala. Na cabeça do espectador, soma-se tudo em pura forma, inspirando beleza e evocando algo semelhante a um sublime; do equilíbrio, quase sempre belo, das formas Sabe-se então que não foi à toa que Spinoza Ética à maneira geométrica. Se tudo não for verdadeiro, há, ao menos, beleza.

Nelson é, ainda, um dos poucos artistas ater evolução segura, desde os seus desenhos dos anos 1980 muito ruins por sinal – até hoje, quando demonstra audácia e o seu controle. É fascinante ver como de organizou sua obra com astúcia, exibindo método e segurança, sem deixar que a exuberância do seu passe da medida exata, sem escorregar em exibicionismo e fragmentações.

A mostra tem uma unidade perfeita. A sobriedade dos materiais, a ruptura do mármore na parede, que significa o debochado ato de transgredir um local preservado pelo Patrimônio Histórico, mas ocupá-lo,de forma plástica, faz da mostra um dos mais ricos momentos deste ano de arte contemporânea no Rio. Deus, que não é tolo, não gostaria de ser Spinoza. É possível, porém, imaginar que o filósofo fosse ver a obra de Felix. Geometria suave e sublime, a instalação com pureza plástica dos materiais é uma entonação de sobriedade e beleza. Construção e puro encantamento.

 

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A COISA É AR

Glória Ferreira - 2001

Nelson Felix – Editora Casa da palavra – 2001

 

Dois grandes trabalhos de Nelson Felix demarcam, hoje, uma linha imagi­nária entre o norte e o sul do Brasil: o Grande Budha, no encontro da longitude 10 e da latitude 69, no Acre; e Mesa, em Uruguaiana, no Rio Grande do Sul, no encontro da longitude 30 com a estrada mais próxima à fronteira. Esses traba­lhos pontuam espaços e supõem processos em dimensões temporais de centenas de anos, aos quais nós, seus contemporâneos, não teremos acesso.

Grande Budha e Mesa. dialogam com a expansão do espaço artístico con­quistado a partir dos anos 60, particularmente com a Land Art. Nesse proces­so, a crise do objeto, enquanto universo fechado, e a conseqüente expansão do conceito de obra de arte levaram à absorção, pela obra, do seu contexto mais ampliado. A prática perceptiva baseada em uma ideação instantânea do obje­to dá lugar então a uma exploração ativa de um espaço-tempo real na duração: tornam-se imprecisos os limites do lugar e da obra, esta revelando-se apenas de maneira fragmentada. Michael Heizer, na célebre conversa com Oppenheim e Smithson, dizia: “Não se coloca uma obra em um lugar. Ela é esse lugar”.¹ Não se tratava, assim, de ocupar o espaço, mas de polarizá-lo através da dimensão temporal.

Se para esses artistas tratava-se de agir no espaço real, redefinindo o próprio conceito de espaço, trabalhos atuais, como os de Nelson Felix, inscrevem-se na possibilidade de toda e qualquer parte do globo terrestre ser passível de intervenção artística. Da Islândia à Patagônia são múltiplos os pro­jetos, na maioria institucionais, como o projeto Fronteira (no qual se inscreve a Mesa, 2000), indicando uma transformação profunda da prática artística no que diz respeito à formalização, às condições da experiência estética e à relação cultura/natureza.

Ponto nodal em torno do qual se organiza “o conflito entre os dogmas modernistas e pós-modernistas”² nas artes plásticas, o site specific tende, todavia, a uma espécie de nova categoria artística em que circunstâncias e motivações explícitas são fornecidas, com forte tendência a uma estetização generalizada. Como diz Kate Linker, adquire por vezes um aspecto terapêu­tico de “humanizar o inumano criado pelo homem”, o artista tornando-se “membro do time” e assim parte de planos urbanísticos e econômicos.³

Localizados a partir de escolhas predeterminadas de paralelos, definidos segundo relações simbólicas e espirituais, Grande Budha e Mesa não configu­ram sites specifics. Embora os espaços de sua localização não sejam meros recep- táculos, mas constitutivos dos trabalhos, estes não se articulam a partir de suas características socioculturais. Não participam assim do que Hal Foster carac­teriza como o paradigma do artista enquanto etnógrafo, “onde um mapea­mento etnográfico de uma instituição ou de uma comunidade é hoje a forma primária do site-specific.“4

O sistema de organização provém de fora do trabalho: o espaço real de suas localizações é dado de forma abstrata pelo sistema de coordenadas de lati­tude e longitude. Utilizado na feitura de mapas desde o século II e decisivo nas grandes viagens em mar aberto, esse sistema estabelece uma grade por meio das quais posições exatas podem ser determinadas e descritas em referência ao Primeiro Meridiano e ao Equador. Hoje, movimentos de milhares e milhares de galáxias são descritos em mapas do Universo em três dimensões e, a partir dos sinais de satélites, uma espécie de relógio do espaço, o GPS (Global Positioning System), utilizado pelo artista, indica localizações precisas na Terra.

As relações entre medidas e orientações, como dispositivos operatórios, transgridem a percepção direta e supõem uma dimensão de ordem mais mental. E um referencial que pertence ao mundo, função do espaço externo, público. Os trabalhos não expressam, assim, conteúdos de um espaço psicológico particular nem implicam uma relação de formalização com o contexto: evo­cam o mundo em sua totalidade.

As questões conceituais subjacentes à referência aos signos conven­cionais de orientação espacial, medidas e padrões, presentes na arte contemporânea, sublinham a importância da escala como dimensão da experiência, na relação que esta estabelece entre espaço, tempo e natureza. Como um dado recorrente na poética de Nelson Felix, por intermédio da utilização do arbi­trário desses sistemas, opera-se uma espécie de relação entre a matéria, que se torna abstrata, e os signos abstratos, que se materializam, como tensões entre cultura e natureza. As diferenças geográficas, as medidas e escalas tendem a se anular, deixando apenas a dimensão temporal como evocação e ferramenta para a meditação. Não pressupõem um deslocamento e percurso no local como forma de acesso e vivência da obra. A relação entre o modelo abstrato, arbitrário e convencional dos sistemas de medidas e orientação e a apresen­tação visual das formas guarda certas analogias com os procedimentos de Duchamp no encontro com os ready-mades e com as releituras feitas pela arte contemporânea desses procedimentos, em particular a apropriação. No lugar da “reação de indiferença visual” que funda o ready-made, há uma “indife­rença” ao contexto específico e aos dados destes que, nos trabalhos in situ, determinariam a sua construção. O espaço é apropriado. Em a Mesa e o Grande Budha, a apropriação e presença da dimensão mental do espaço, não restrito à visibilidade, aproximam a abordagem de Nelson da dialética do site/non-site de Smithson: não supõe um retorno à natureza, mas a considera coextensiva à galeria. Não há centro.

Tratamentos diferenciados para o espaço interagem na poética de Nelson Felix. As esculturas, tal “buracos negros”, concentram e absorvem toda a percepção, como, por exemplo, as peças para Caymmi; o “ambiente”, que assinala um laço orgânico entre os elementos dados e sua situação. Trabalhos como Lajes, realizado na Arte/Cidade III, Beijo em Madalena e Flor na pele, apresentados na Galeria Luisa Strina, e sua Série Árabe, no Parque Lage, no Rio de Janeiro, na qual todo o espaço é ativado e relacionado à sua orientação no universo, são exemplares nesse sentido. Uma terceira abordagem é a do espaço mental, que “segue depois da contemplação”, como em Pilar, Grande Budha ou Mesa. “Gosto muito do espaço, da sensação do espaço”, diz Nelson Felix.

O espaço não é só o que se olha, tem um dado muito maior.

A percepção do espaço não passa só pelo olho. Existe uma série de coisas

que acontecem simultaneamente e que geram um espaço simultâneo.

Nós, ocidentais, somos da causa e do efeito, já a concepção de situações

simultâneas é chinesa. O livro das mutações, o I Ching, por exemplo, é relacionado à simultaneidade. E o espaço é dessa natureza.5

Em Grafite, peça de 1984, composta por duas hastes de grafite maciço, uma delas alinhada pelo eixo do sol; a outra, pela composição espacial, estabe­lecem-se “relações da tendência de centralização do espaço físico e filosófico (aleatório e determinado)”, como diz o artista. Grafite dialoga com diversos trabalhos contemporâneos (os observatórios, por exemplo o de Robert Morris) na busca para aceder às dimensões de espaço-tempo do Cosmos como dado da experiência estética. Introduz, igualmente, a idéia de simultaneidade, de espaços distintos interagindo.

O deslocamento de três lajes de uma construção no centro de São Paulo, por ocasião da Arte/Cidade III, criou um outro ritmo no espaço arquitetônico, transgredindo a estrutura do espaço, pela instabilidade e pesos deslocados. Em Lajes, trata-se da consciência da totalidade do espaço da construção, que é de ordem mental. Questão que se faz presente no espaço aberto da paisagem (Grande Budha, Mesa) ou no espaço fechado da arquitetura (Lajes, Pilar).

 

 

Ao associar elementos orgânicos e industriais, os trabalhos de Nelson Felix, como Grande Budha e Mesa, indicam um espaço-tempo cosmológico, furtando-se à medida do tempo histórico, linear. Envolvem um pensamento sobre o devir — a nossa condição humana. Remetem a um tempo outro, de uma arte em processo ao longo de centenas de anos e evocam poeticamente a passagem do tempo, o anti-histórico da Natureza, mas também, o da nossa relação com a natureza: a impossibilidade de vermos a completude do trabalho.

Assim como na Série Gênesis, Mesa e Grande Bhuda configuram estru­turas híbridas. Diferente da fusão ou da interpenetração, a hibridização — caracterizada por associações de processos, matérias e disciplinas diversas — pressupõe que cada elemento preserve sua peculiaridade, resultando em um produto diferente. Como no antigo processo de cruzar organismos pertencendo a categorias biológicas diferentes, dando origem a híbridos interespecíficos, tal como a mula. Transladado para análises socioculturais designa, segundo o antropólogo Nestor Garcia Canclini, o “termo de tradução entre mestiçagem, sincretismo, fusão e os outros vocábulos empregados para designar mesclas particulares.”6

Atos poéticos”, como diz Lygia Pape sobre a Série Gênesis nesses tra­balhos, vários níveis, de leituras se tecem ao tornar relativos os conceitos de identidades “puras” e “autênticas”, de objeto auto-referencial. Dialogam-se metaforicamente com a hibridização generalizada do mundo atual, enfatizam a longa convivência de Nelson com o pensamento oriental que proclama a coexistência dinâmica de opostos, cuja reconciliação não implica redução nem transmutação da singularidade de cada termo.

Ao contrário de uma exploração ativa de um espaço concreto na duração, Mesa e, em particular, o Grande Budha remetem a uma recepção de ordem mental, supõem que o trabalho não se realize em uma dimensão obje­tiva, visível. Tal vanités contemporâneas, contudo sem mensagens moralizadoras, esses trabalhos evocam a transitoriedade da existência humana e o processo entrópico e irreversível da passagem do tempo. Aludem aos liames entre a experiência estética e o sagrado, ao laço primordial que une a arte e a transgressão das interdições que o discernimento da morte introduziu na cons­ciência.7 Apreender o plano imediato da vida até sua expressão extrema é o que inscrevem esses trabalhos como ação poética. E nesse sentido remetem ao sagrado, ao cosmos e à impossibilidade de controlar a Natureza, à natureza humana em sua relação com o sensível. Como diz o artista:

A idéia primeira que gerou o Grande Budha foi que comecei a perceber que através de dois atos, seja um ato cultural, de tendência estética ou um ato sagrado de tendência mística, em quase todas as civilizações quando se mexe nesses dois fatores, existe uma certa trans­gressão da natureza. Esse pensamento, presente tanto no ato cultural quanto no ato místico, sempre me emocionou e fez gerar o Grande Budha: a partir do momento em que eu interfiro nessa árvore eu crio uma escultura, um objeto cultural.

Os elementos de ordem espiritual não estão dissociados do apuro formal nas obras de Nelson Felix. Não são acessórios. São constitutivos de sua poéti­ca, quer seja na eleição dos materiais com forte carga simbólica quer seja na sua luta contra a composição, ou ainda na sua determinação em falar a partir de uma linguagem não-privada. Religião e espiritualidade, embora distintas, tendem a se confundir na análise crítica, resquícios da depuração de toda sig­nificação espiritual e insistência na evidência da forma pelas análises formalistas.

Sempre in progress, sujeito aos fluxos da natureza e às conseqüências ecológicas, o destino imanente do Grande Budha é tornar-se invisível. Miseen-scènes, antes de sua realização no Acre, em 2000, foram apresentadas em livro, por meio de documentação fotográfica e, também, no vídeo Oco. Essas imagens diferem, por exemplo, do que Daniel Buren define como “photos-souvenir” de uma ação; diferem, igualmente, dos resíduos documentais que circulam como obra. Enfim, também não guardam parentesco com a repro­dução de trabalhos, que Benjamin indica como responsável pelo desapareci­mento da aura. As imagens fotográficas fazem assim parte das fabulações.

O devir, ao qual nos confronta, nada guarda da ideologia do progresso que tanto influenciou a ficção científica, com suas previsões de conquistas de mundos futuros. Talvez esteja mais próxima das sagas que ampliam os limites de uma experiência interior. Além das reflexões sobre a arte e sua tradição, o funcionamento de suas obras incorpora dados científicos, especulações filosó­ficas, místicas, sem furtar-se à racionalidade da produção e do sistema cultural. São concretas e minuciosas as pesquisas que informam os trabalhos. Ao mesmo tempo, frustra essa racionalidade ou a desvia, transformando as especulações de diversas ordens em ficções8 dotadas de valor operatório. É famoso o seu interesse pela anatomia, no entanto o tratado em que se baseia é de 1902.9

De fato, a anatomia humana tem sido a matriz de muitos de seus tra­balhos: a “fôrma” da forma. Formas que tomam emprestadas conformações de órgãos, de partes do corpo e mesmo do que, neste, se dá apenas enquanto vazio e circulação de energia. Pé, coração, medula, glândulas moldados em ferro não deixam de lembrar a idéia de fragmento, gênero romântico por excelência, de projeção imediata da totalidade. Se a poética do fragmento foi retomada pela arte moderna como antecipação do fim da arte, como o ateliê de Mondrian que indicava a dissolução, antecipada da arte na vida, 0 frag­mento de origem orgânica na poética de Nelson Felix guarda a mesma decisão operatória quando define o lugar a partir de uma linguagem pública, como as coordenadas. A uma projeção de um fundo psicológico, como diria Pollock “it grows from me Nelson apresenta moldes de partes de seu corpo: rosto, tórax, bacia. 1/2 Eu, de 1995, é exemplar nesse sentido. Qualidades sensíveis e opera­ções racionais, como proporções, quantidades mensuráveis, estudos de dese­nhos técnicos se articulam em relações simbólicas de poderosa presença for­mal. Segundo Rodrigo Naves, suas formas a todo instante remetem a um mundo a que ainda não temos pleno acesso, embora saibamos de algumas de suas carac­terísticas (…) Este atrito entre visibilidade e ocultamento recoloca a realidade como possibilidade. Uma imaginação que se desprende dessas obras. Mas para que essa imaginação tenha plena eficácia ela necessariamente terá de supor uma intui­ção poderosa da realidade.10

Mesas (1995) é composta de seis mesas de geometria rigorosa talhadas em granito.= Sobre elas, moldes de seu corpo, em negativo, nos quais são imer­sas, em azeite, glândulas endócrinas fundidas em ferro. Uma das mesas, de 200kg, suspensa no teto, é deixada a ponto de roçar a planta dormideira, a qual ao mais leve toque se fecha. Esse estado de iminente transformação arti­cula a relação do corpo com a natureza e a união delas com o espírito, bem como a interação entre o movimento da natureza e o objeto cultural. A imagem que representa este trabalho é uma foto de sua sobrinha, bebê, com moldes das glândulas endócrinas fundidos em ferro sobre os pontos dos chakras, pólos de energia que fisicamente refletem o desenvolvimento das glândulas. A associação, em Mesas, da dormideira, que abre e fecha porque exala um hormônio, com a criança diz respeito à consciência do sensível:

“O que é uma dormideira”, diz Nelson, “senão uma quantidade enorme de sen­sibilidade, embora, como as crianças, seja inconsciente de sua sensibilidade?”

 

Trabalhando questões clássicas da escultura, seu espaço e sua tradição, à apropriação de conformações de órgãos junta-se o tomar emprestado as formas de espaços vazios existentes no cérebro — os ventrículos cerebrais. Em Vazio (1992) e, principalmente, Vão, premiado na Bienal de São Paulo, em 1996, as relações espirituais e as articulações formais se fazem mais imanentes ao tratar de espaços que, embora nos sejam estranhos, são nossos: agem como “auto- retratos do desconhecido”. Segundo o artista, neles estão concentradas grandes energias e dão a total consciência do corpo, da supremacia do destino: temos que viver com ele, não há possibilidade de escolha. Ao inverso de Lajes e Pilar e a noção de espaço externo, no rompimento da arquitetura, esses espaços nos jogam para fora de nós mesmos, nos tiram do nosso local.

Em Vão, o vazio que há no cérebro, e que possui uma forma, ganha existência, mas esta não pode ser discutida em termos puramente formais ou de beleza, apesar do seu apuro formal. Não tem composição, processo, segun­do Alberti, “pelo qual as partes se compõem”. Vão reúne as formas dos vazios no interior do cérebro, aumentadas 111 vezes. Até mesmo sua escala é dada por uma predeterminação: a idéia de Trindade. Sulcos no chão preenchidos com graxa criavam, como diz Lorenzo Mammi, fendas úmidas como se daque­las formas pingasse uma secreção capaz de corroer o concreto. Era um trabalho baseado numa idéia do orgânico como metamorfose, geração e degeneração con­tínua de formas.11

Nas significações deste trabalho, o artista relaciona o vazio que existe no corpo com “o vazio perseguido na meditação budista”. As relações internas são “esvaziadas” lançando mão de uma forma ready-made, o vazio existente no cére­bro. Frustrando a confiança na vivência perceptiva literal do mundo, a operação estética parece buscar a mesma eliminação sistemática da abordagem analítica que orienta a meditação budista e, assim, “produzir o vazio para que o ser aflore”. 12

O universo de significações históricas, míticas, simbólicas ou religiosas presentes na poética de Nelson Felix remete a outras formas de percepção não restritas às visuais e a formas de entendimento do mundo que não as da racionalidade. As condições enunciativas, conceituais de seus trabalhos incor­poram ficções de diversas ordens. Como diz Robert Smithson, quando se fala de ficção, esquecemos o sentido geral do termo, para circunscrevê-lo à litera­tura ou para transformar o seu estatuto em mito do fato: A ficção não é con­siderada como fazendo parte do mundo. O racionalismo confina a ficção ao domínio das categorias literárias para proteger seus próprios interesses, seus próprios sistemas de saber.13 Longe de serem suplementos anedóticos, as ficções na démarche de Nelson Felix são constitutivas dos dispositivos operatórios do seu trabalho, interconectando realidades tanto físicas quanto espirituais, terrenas e cosmológicas.

O projeto do Grande Budha data de 1985. Em 2000, no estado do Acre, suas garras foram fixadas em torno çle uma muda de mogno, espécie que vive cerca de 1.300 anos, dos quais 300 em fase de crescimento. A idéia de “desaparecimento” perpassa o trabalho em diversos níveis: o das garras na árvore, da própria árvore na floresta e, enfim, das vicissitudes às quais estão sujeitas a árvore e a floresta. Servindo-se da expansão concêntrica da árvore em seu desenvolvimento para a absorção das garras, o Grande Budha parece responder à metáfora utilizada por Rosalind Krauss na crítica à idealidade da forma. Segundo a autora, a importância simbólica de um espaço interior, central, de onde provém a energia da matéria viva, a partir do qual sua organização se desenvolve como os anéis concêntricos que anualmente se formam em direção ao exterior a partir do núcleo constituído pelo tronco da árvore, tinha desempenhado um papel crucial na escultura moderna.14

No confronto que instaura entre natureza e cultura não há interioridade da forma ou implicações de um espaço interno. Despojado de relações de composição, faz da lógica do desenvolvimento orgânico uma função do seu destino formal, em oposição ao que é ideado. Difere assim do princípio bio-mórfico baseado na célula orgânica e seu processo de crescimento como metá­fora do ato de criação.

A inscrição, no título, da palavra buda, no Grande Budha, guarda a mesma relação que a presença de pequenos budas em diversos de seus traba­lhos. Vazio, por exemplo. Uso que o artista define como uma referência ao que mais facilmente remete a uma dimensão interior. No caso deste trabalho, a sua grafia acentua a relação com a meditação e a experiência interior. Enquanto interface entre o legível e o visível, o título é gerador de sentidos, dá uma dire­tiva para a interpretação. Pode conter ou se confundir com um plano ou pro­jeto cuja realização é diferida, como no caso do Grande Budha, ou ser parte de uma memória de trabalhos efêmeros, como no caso de Lajes.

Enquanto procedimentos de conotação da imagem, como a legenda em relação à fotografia, diferentes modalidades de inscrições lingüísticas, além dos títulos, se fazem presentes nos desenhos/projetos de Nelson Felix. Criam uma cadeia de significações que vai além dos elementos formais. São textos, enunciações que fazem parte das obras.

Esses desenhos “técnicos” diferem dos desenhos com os quais Nelson Felix inicia sua produção artística. Nestes, a presença das enormes manchas de grafite guarda como referência o enfrentamento com a essência do desenho — sua redução a lápis e papel. Trazem igualmente a marca do experimentalismo: incorporam materiais como cal e folhas de chumbo que os colocam no limiar entre desenho e escultura, qual relevos, onde o traço gráfico, como ato de expressão do sujeito, irrompe dentro do espaço. Vão adquirindo uma dis­posição no espaço próximo da tridimensionalidade e o grafite passa a ser, durante alguns anos, a matéria por excelência de suas esculturas, nas quais a pesquisa plástica é inseparável das qualidades físicas do material, das evocações simbólicas e de uma rede de fragmentos de narrações.

Menos que um processo orgânico, que suporia uma força vital dando origem à obra de arte, no trabalho de Nelson Felix é decisiva a presença da indeterminação, do processo, no qual emergem os sentidos subjacentes das pro­priedades dos materiais. Pelo jogo de antagonismo, tanto em suas tradições na arte quanto por suas propriedades físicas e químicas, metais como chumbo, estanho, ferro, cobre, latão, prata, ouro, entre outros, dialogam entre si e com materiais de outros reinos, tais a madeira, o mármore, a torianita, o azeite, for­mando uma cosmologia de materiais. Cria-se assim uma justaposição entre o acessível e o inacessível, o visível’e o invisível, como em Sono, esfera de chum­bo de 120kg, contendo no seu interior três gramas de material radioativo – torianita não-ativada. Ou no uso do grafite que remete à vida pela presença do carbono em todas as substâncias orgânicas – quer seja nesta forma estável do car­bono, ou em sua cristalização como diamante (tido pelos antigos como de origem divina, e peio budismo como metáfora da verdade).

Reformulados temas e técnicas, a forma não mais é valorizada como princípio interno, existindo idealmente no espírito do artista, ontologicamente superior à matéria. Gilles Tiberghien assinala a transformação do “estatuto teórico” desses objetos: ele depende, daqui em diante, de uma questão não mais deforma, mas de matéria, não mais de eternidade, mas de duração, os dois andando juntos. A. escultura deixou de considerar o material essencialmente submetido ao domínio formal do escultor.15

Se o conceito de escultura, ou de qualquer outra categoria artística, tornou-se estreito e desqualificado para determinar a práxis artística, a insistência no seu retorno e investigação de suas especificidades é um dos traços da arte contemporânea. E um dos traços presentes na poética de Nelson Felix. Em 1998, duas exposições realizadas simultaneamente em São Paulo, no Museu Brasileiro de Escultura e na Galeria Luisa Strina, são exemplares nesse sentido. Trata-se de duas homenagens: Seis peças para Caymmi e Beijo em Madalena. Enquanto a homenagem a Donatello, tradição por excelência da escultura ocidental, realiza-se na ocupação de todo o espaço, já as esculturas ocupando o lugar paradigmático de centro do espaço têm a música como referência: a expansão do espaço dialoga com o ritmo, que age igualmente contra a estabilidade da forma.

Beijo em Madalena concentra um universo de questões geradas no campo histórico da escultura. Horizontal, com um grande tablado ocupando o espaço, contrapõe-se à verticalidade antropomórfica à qual a estátua é tradi­cionalmente associada. Sem um ponto de vista único, mas uma multiplicidade de perspectivas, exige do espectador que compartilhe o campo da obra e ative o espaço. Em madeira policromada, com cerca de 180cm de altura, a Madalena de Donatello, com uma forte carga expressiva no tratamento da superfície, mescla o retorno ao clássico, ao mais profundo naturalismo. Beijo em Madalena retoma essa carga expressiva no trabalho da superfície, mas abrindo a forma e a superfície contínua da escultura. O volume, considerado elemento essencial da representação escultórica tradicional, é aqui uma função do espaço. A grande superfície do tablado trabalhada como um relevo instaura um lugar ambíguo entre o volume e o plano. Se a Madalena de Donatello supõe um lugar definido para o espectador, um ponto de vista, Beijo em Madalena fun­ciona como modelo de reorganização do espaço, “a galeria vira sua moldura.”16 Tangente à porta, uma cadeira – em que um dos pés apóia-se em uma máscara do artista e outro em um balde, também em bronze, ambos contendo azeite — serve de introdução ao espectador. Se o azeite, símbolo de luz e pureza, parece evocar a possibilidade de transformação espiritual, molde de parte do corpo do artista parece remeter a um momento de comunhão, no caso as evocações da Ceia de Cristo com seus apóstolos, situação justamente na qual Madalena vai beijar e secar com seus cabelos os pés de Jesus. Beijo em Madalena e Flor na pele, na qual a superfície é trabalhada pelas suas linhas, tratam da mesma questão: a relação com o espaço. Ou melhor, a maneira de preencher o espaço com o máximo e com o mínimo de volume, e ao colocar a questão do volume discutem esse espaço do ponto de vista da escultura.

Os trabalhos apresentados em Seis esculturas para Caymmi remetem para a definição clássica da escultura como arte relacionada com a disposição de objetos no espaço. No entanto, enquanto signos auto-referentes, abstratos, introduzem uma erosão no próprio conceito histórico de escultura, seja pelo ritmo de suas formas ou pelas transgressões introduzidas no tratamento das matérias clássicas da escultura. Fazem-se presentes os ecos de sua experiência com a música. Desenhista impulsivo desde pequeno, adolescente começa a tocar bateria e, morador de Ipanema, liga-se ao pessoal do morro Pavãozinho: O primeiro ensinamento de arte profundo que tive veio da música desse pessoal. (…) Acho que Caymmi, a simplicidade de um Caymmi, a audácia de um Miles Davis, a criatividade de um Thelonious Monk ficarão sempre para mim mais evidentes.17

Se não há uma dimensão sonora, como nas obras de artistas, tais como Takis, Wolf Vostell, Hélio Oiticica, estes guardam ressonâncias com as relações estruturais entre a música e as artes plásticas que perpassaram a arte do século XX (mesmo que recalcadas pela análise formalista em seu credo de uma autonomia e separação entre as artes). Apontam para uma experiência artística mais próxima da música, de um universo mais mental e de estados mais elementares da consciência. Sua vivência da música se dá em um momento, particularmente no jazz, de transformação do papel do baterista de “guardião do tempo” (time-keeper) a acompanhante que faz ” swinger” a banda. Para Max Roach, a nova linguagem da percussão se torna “diálogo”: o drummer é aque­le que escuta, que sabe o que se passa em torno dele, tanto harmônica quanto melodicamente.18 Esse “diálogo” pode ser “escutado” não só nas relações híbri­das de materiais, nos “pequenos atos poéticos”, que só podem existir na imagi­nação, quanto de maneira incisiva no ritmo presente na articulação do espaço, como na Série Árabe. O ritmo que orienta a forma (como em Copacabana, Língua, entre outras peças) age contra a estabilidade do espaço visual, dissolve a coerência da forma e contesta, assim, a ambição de basear as artes visuais em uma particular noção de autonomia da visão.19

Na exposição do MuBE, a referência é a grande tradição da escultura e sua ocupação do lugar paradigmático de centro do espaço. A referência não se faz sem transgressão, até mesmo no tratamento dos materiais. No mármore, material por excelência da escultura clássica, graxa e azeite deixam suas marcas, contrariando a tradição. Ao ritmo que estrutura a forma soma-se a confluên­cia de materiais, desestabilizando assim a possibilidade de auto-referência: a relação entre suas partes, como em Escultura para Caymmi, impõe diferentes configurações a cada apresentação. O mármore submete-se ao transitório. E as peças tecem relações entre si, e criam ritmos e diálogos com o espaço que habitam.

Grande Budha e Mesa levam a uma extrema radicalidade a experiência da forma aberta no tempo e no espaço. Na contingência da forma como função de um desenvolvimento orgânico, só nos é dado a ver (ou imaginar) o processo, a sua lógica imanente. Essa relação entre reinos distintos, presentes na Mesa, no Grande Budha ou na Série Gênesis e que são função do processo orgânico, desqualifica o primado da forma e confunde os limites tradicionais entre os produtos da arte e da natureza.

Nesse processo de transformação do material orgânico em objeto cul­tural, incluem-se relações plásticas e significações de ordem histórica da própria escultura. Na Mesa, nove chapas de aço cortén são colocadas, sem so­frer processo algum, horizontalmente, uma depois da outra. Sem articulação ou montagem de partes para formar o todo, as chapas remetem ao uso de ele­mentos industriais na escultura, não mais moldada ou esculpida. E em parti­cular ao do uso do ferro e das experiências que levam em conta sua gravidade, peso, densidade. Amílcar de Castro, por exemplo, diz que sua escultura é de ferro “porque é necessário”. As chapas estão expostas à ação do tempo para se incrustarem na parte viva da árvore, por onde escorre sua seiva, e ir fazendo parte da madeira maciça e sem vida do seu interior. Com quarenta e uma toneladas de peso, as chapas estão apoiadas em moirões de eucalipto, que deve­rão apodrecer quando as árvores começarem a morder as chapas em quinze, vinte anos. O processo só se completará, no entanto, daqui a 250 anos, tempo de crescimento da figueira-do-mato. Segundo o artista, “tem uma profunda poesia nisso, a impotência, a força do tempo, do universo* da predestinação”.

São vinte e duas figueiras-do-mato, árvore não-nativa, trazida da índia. Tanto o número vinte e dois, considerado mágico na Cabala, por totalizar as letras que exprimem o universo, quanto a figueira conjugam uma extensa simbologia. No entanto, se não deixa de fazer parte do trabalho, o repertório de símbolos é convocado menos para ilustrar significados latentes do que para assegurar o vazio da composição, da mesma maneira que o GPS, pelas coor­denadas, determina a localização.

A horizontalidade das chapas, que remete à recusa do antropomorfismo e também à recusa da verticalidade sublimatória, contrapõe-se a afirmação, pelos planos das árvores, da metafísica ligada à elevação. As duas fileiras de árvores criam como que uma imagem reflexiva uma da outra: não sabemos onde está o espelho ou o reflexo, os papéis se alternam convocando a idéia de infinito. E nesse embate entre o horizontal e o vertical, o orgânico e o mine­ral, com uma escala temporal que ultrapassa a condição humana e a escala espacial que se relaciona com o horizonte, diferentes significações emergem.” tanto do ponto de vista iconográfico (sua clara alusão à Última Ceia), da situa­ção no espaço ou do funcionamento semântico. Pela intensidade das forças em questão na integração entre o vegetal e o ferro, violência que guarda a memória de intervenção humana na natureza, Mesa está destinada à entropia, como uma ruína do futuro. “Pode acabar tudo reduzido a algo tão irreal quanto uma linha imaginária”, diz o artista. “Uma carcaça de ferro retorcido pelas raízes das árvores.”

A acuidade formal e as dimensões espirituais presentes na poética de Nelson Felix não deixam de evocar Brancusi. Em particular, as garras de latão polido do Grande Budha dialogam com o Pássara no espaço e sua unidade for­mal absoluta. Segundo Leo Steinberg, o Pássaro é uma obra “onde a escultura dá forma a uma trajetória”,20 onde o movimento é transposto em forma escultórica. As garras, fabricadas industrialmente, evocam esse limite extremo do monolito e se inscrevem no espaço como a trajetória de um percurso, não da luz como no Pássaro, mas da natureza enquanto atividade. Como um pino inserido em nosso corpo, as garras do Grande Budha estão destinadas à hibridização, a se tornarem invisíveis, transformando o elemento vegetal em cultura.

Menos que estender o registro estético ao real e o tornar visível a partir desse ponto de vista, no Grande Budha são as potências criadoras e o fluxo temporal da Natureza que são convocados. O invisível, como elemento opera- tório de interseção entre o cognitivo e o sensível, é a maneira de a obra tecer relações, e evocar diferentes níveis de temporalidade e dimensões espirituais. Um trabalho, cujo processo de realização dura 500 anos, perdido na floresta entre milhões de copas parecidas, e só localizável pelo GPS, apela à imaginação poética como única condição de alcançarmos a imensidão. Esta implicação do imemorial da Natureza no presente, daquilo que se dá como estando lá antes de nós, é um apelo à experiência do presente. O confronto entre natureza e cultura, com as evocações temporais do devir envolvendo a nossa finitude, remete para a poética do sublime, para a tensão entre intuição sensível e reflexão. Sem que se formem sistemas, fragmentos de narrações atualizam as múltiplas ordens de referências presentes em sua obra.

 

1 “Discussions with Heizer, Oppenheim, Smithson”, Avalanche, outono 1970.

2 Jean-Marc Poinsot, “Lin situ et la circonstance’de sa mise en vue”, Cahiers du Musée National d’Art Moderne, n° 27, primavera 1989.

3 Kate Linker, “Public Sculpture: The Pursuit of the Pleasurable and Profitable Paradise”, Artforum, março 1981, pp. 63-74.

4 Hal Foster, “The Artist as Ethnographer”, The Return of the Real, Cambridge, Mass. / Londres, The MIT Press, 1996, p. 185.

5 Entre maio e junho de 2000 foram realizadas cinco entrevistas com o artista. As citações que não vierem acompanhadas de notas referem-se a essas conversas. A ele, meus agradecimentos.

6 Nestor Garcia Canclini, “Notícias recentes sobre a hibridização”. Em Heloisa Buarque de Hollanda, Beatriz Resende (org.), Artelatina, Rio de Janeiro, Aeroplano/MAM-RJ, 2000, p. 78.

7 Segundo Georges Bataille: “E o estado de transgressão que comanda o desejo, a exigência de um mundo mais profundo, mais rico e prodigioso, a exigência, em uma palavra, de um mundo sagrado.” Em La peinture pré-historique. Lascaux ou la naissance de l’art, Paris, Skira/Flammarion, 1986, p. 38.

8 Tomo emprestado este termo utilizado por Gilles Tiberghien para configurar as teorias dos artis­tas contemporâneos. Em Land Art, Paris, Carré, 1993, p. 18.

9 Segundo Wilson Coutinho, “Neto de médico e filho de um patologista, Nelson detestava medici­na. ‘Eu via sangue e desmaiava. Estudava tudo menos o corpo humano’, confessa. Hoje em seu ateliê, o livro mais estudado é o famoso Tratado de anatomia humana, de L. Testut, professor de anatomia da Faculdade de Medicina de Lyon, uma obra publicada em 1902. São quatro grossos volumes, com mais de 1.000 páginas, com elaborados desenhos de G. Devy e S. Dupret. É dali que tem partido a matriz de suas esculturas”. Wilson Coutinho, De corpo e alma, Rio Artes, março 1993.

10 Rodrigo Naves, “O espírito da coisa”. Em Nelson Felix, São Paulo, Cosac & Naify, 1998, p. 17.

11 Lorenzo Mammi, “Evento acha cidade morta dentro da cidade atual”, Folha de S. Paulo, 20/11/97.

12 Otávio Paz, “A imagem”. Signos em rotação, São Paulo, Perspectiva, 1976.

13 Robert Smithson, “A Museum of Language in the Vicinity of Art”. Em Nancy Holt (org.), The Writings of Robert Smithson, Nova York, New York University Press, 1979.

14 Rosalind Krauss, Caminhos da escultura, trad. de Júlio Fischer, São Paulo, Martins Fontes, 1998, p. 301.

15 Gilles Tiberghien, “A arte da natureza”, trad. de Neusa Dagani e Malu Fatorelli, Arte&Ensaios n° 7, dezembro 2000, p. 170.

16 Nelson Felix, citado em Cristian Klein, “O enigma de Nelson Felix”, Jornal do Brasil, 10/11/98.

17 Renata Lucas e Maria Lúcia Bueno, “Entrevista com Nelson Felix”, Cadernos da Pós-Graduação Unicamp, 1998.

[1]8 Mike Hennessey, Klook the story of Kenny Clarke, Londres/Nova York, Quertet Books, 1990; Max Roach, notas no disco “Max Roach Quintet”, Chicago, Argo, LP 623, 1958.

[1]9 Ver Hal Foster (org.), Vison and Visuality, Seattle, Bay Press, 1988.

20 Leo Steinberg, “Rodin”, Other Critério: Confrontations With Twentieth-Century Art, Oxford University Press, 1972.

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A ESCULTURA DE NELSON FELIX

Luiz Camillo Osorio - 1999

Revista Veredas – Centro Cultural Banco do Brasil – 1999

 

O recente lançamento do livro sobre a obra do escultor carioca Nelson Felix é um exemplo a ser sublinhado. De impecável qualidade gráfica, ele traz um texto de fôlego do crítico paulista Rodrigo Naves, seguido de uma entrevista entre Nelson Felix, Naves e os artistas Lygia Pape, José Resende e Nuno Ramos. Completa o livro um caderno de reproduções que dá conta do desenvolvimento de sua obra.

Depois da premiação na XXIII Bienal de São Paulo (19963), a obra de Felix, inciada no final do anos 70, ganhou impulso considerável, principalmente no meio de arte paulista. Espera-se que depois deste lançamento sua obra comece a circular mais no Rio das Janeiro.

Como ele mesmo salienta na entrevista contida no livro, o isolamento foi meio intencional: “Tudo o que eu fazia (isto em 1980) o Jean Boghici vendia. Então eu pensei: isto está muito fácil, e não foi o que eu vi nas minhas histórias de artista. A coisa era mais árdua” (pág. 31). Logo depois, em 1981, Felix vai morar em Florianópolis e, em seguida, no meio do mato em Nova Friburgo, onde ele ainda está, completamente entocado.

Este recolhimento, o interesse em não aparecer ostensivamente, é algo que se inscreve na sua própria poética. O jogo entre o que se expõe e o que se oculta é uma constante nos seus trabalhos. Como observou Rodrigo Naves, “sua obra tende a existir praticamente em dois planos: um estritamente formal, que se entrega plenamente aos olhos do observador, e outro sugerido, ao qual não temos acesso direto e que possui uma vida interior misteriosa e intensa. Será a precisão na articulação dessas duas dimensões que conferirá ao trabalho não só uma particularidade em meio à produção contemporânea, como principalmente um teor crítico distante das inúmeras mitologias intimistas dos nossos dias” (pág. 14).

A opção por não resolver a obra integralmente no âmbito da forma, da visibilidade, deixando sempre um resíduo semântico a ser garimpado em uma “leitura” alargada e imaginativa, coloca sua obra no interior do território artístico contemporâneo _ bem mais polifônico e plural que o movimento modernista. No entanto devemos compreender não só as tensões, mas também as interseções entre a forma e o símbolo, o visível e o discursivo, o que se mostra e o que se insinua, para não tomar a arte contemporânea, e a obra de Nelson Felix aí incluída, apenas como uma ruptura em relações às poéticas modernas.

A perspectiva crítica e a resistência à instrumentalização da vida conduzem do moderno ao contemporâneo; o que se transforma são os meios de atualização da obra, mais do que isto, sua referência à temporalidade. A arte moderna acreditava na perfectibilidade da existência através da realização da forma na vida. Já a produção contemporânea, menos utópica, quer se dar integralmente no presente, criar brechas e fraturas em um mundo unidimensionalizado. Por isso o interesse “por esta coisa indefinidamente sugestiva”, onde a obra está sempre se defendendo da incorporação e da banalização dos sentidos e formas adquiridos.

Como sublinha Rodrigo Naves, “suas formas a todos instante remetem a um mundo a que ainda não temos pleno acesso, embora saibamos de algumas de suas características (…). Este atrito entre visibilidade e ocultamente recoloca a realidade como possibilidade. Uma imaginação se desprende dessas obras” (pág. 17). E esta imaginação potencializada é a garantia, na opacidade do presente, de se vislumbrar algum oxigênio para a arte e, consequentemente para o mundo.

Além do texto de Rodrigo Naves, a realização da entrevista feita entre os dois e outros artistas é bastante esclarecedora em relação ao desenvolvimento da obra de Nelson Felix. A discussão em torno do desenho e do modo como ele vai se materializando até se tornar escultura é das mais interessantes. Afinal, o desenho é fundamental em sua obra.

O somatório das leituras sobre o trabalho do artista que surge na entrevista dá ao livro uma densidade reflexiva singular. São com iniciativas deste nível que o nosso meio de arte vai se consolidando e respondendo aos desafios de uma produção artística qualificada e madura.

Para final de conversa devo ressaltar o excelente trabalho editorial que vem sendo realizado pela Cosac & Naify. Em alguns poucos anos esta editora lançou livros importantes e de grande contribuição para a pesquisa histórica e a fortuna crítica relativas à arte brasileira.

*Luiz Camillo Osorio é crítico de arte de O Globo e professor de Estética e História da Arte na PUC-RJ.

Livros disponíveis na Biblioteca do CCBB.

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OBRA DE NELSON FÉLIX É REVELADA É DOSE TRIPLA

MARIA HIRSZMAN - 1998

Estado de São Paulo -1998

Artista carioca inaugura duas mostras e é tema de monografia que será lançada na Luisa Strina

Depois de ter recebido o prêmio de melhor obra da representação brasileira na 23ª Bienal de São Paulo e realizado uma das intervenções mais aplaudidas durante a terceira edição do Arte/Cidade, Nelson Félix volta à cidade mais uma vez para mostrar por que é considerado um dos maiores nomes da escultura contemporânea brasileira.

Esta noite, o artista inaugura as exposições Seis Peças para Caymmi, no Museu Brasileiro de Escultura (MUBE) e Beijo em Madalena, na Galeria Luisa Strina. A editora Cosac & Naify aproveita a ocasião para lançar a monografia Nelson Félix, na qual o crítico Rodrigo Naves analisa a produção ao mesmo tempo rigorosa e espiritual do artista carioca.

Segundo o autor de Forma Difícil, a riqueza da produção de Félix é consequência direta da capacidade do artista em aliar um pensamento rigoroso ao uso criativo de materiais simbólicos que, quando confrontados, criam novos significados. Rompendo com a monotonia da arte moderna, Félix está sempre criando “pequenos atos poéticos”, como bem definiu Lygia Pape na mesa redonda organizada para discutir o trabalho do artista e que está publicada no livro (José Resende e Nuno Ramos, além de Naves e do próprio Félix, também estiveram presentes). Essa conversa, transcrita com o máximo de fidelidade, também deixa evidente a principal falha da obra: as intervenções têm folego curto, deixando o leitor com desejo de ter acesso a análises mais profundas de cada participante.

O mergulho na obra de Félix dá-se, no entanto, de maneira totalmente visual, por meio de uma ampla seleção de fotografias que deixa clara sua forma de pensar. Concisão e contraste são duas características vitais de sua obra. Aliando elementos díspares como uma árvore, que ao crescer será inevitavelmente ferida pelas lanças que a cercam, ou contrapondo um material nobre como o mármore a seu pior inimigo – a graxa -, o artista estabelece relações de confronto e agressão, que não apenas perturbam o espectador como criam novas instâncias de percepção.

“Suas formas a todo instante remetem a um mundo a que ainda não temos pleno acesso”, explica Naves. Ao mencionar esse lado espiritual de seu trabalho, convém lembrar que Félix é budista e vive há anos no campo.

“O trabalho te de ter alma, se for só design não me interessa”, explica. Não se deve pensar, no entanto que Félix seja displicente com a forma. Basta ver a finíssima peça de mármore feita de delicadas ondulações – que preserva o desenho natural da pedra – para ver como ele vai depurando a forma até transformá-la numa pequena jóia. Afinal como ele mesmo diz, artes plásticas não é linear como a música e deve ser apreendida de imediato.

Mesmo assim, seu trabalho deve muito à música. Não é a toa que a exposição do MuBE chama-se Seis Peças para Caymmi. “Aprendi que o que era simplicidade e elegância com ele, conheci Caymmi muito antes de qualquer arte minimalista’, diz.

No caso de Beijo em Madalena há uma evidente apropriação do tema bíblico, mas a peça também dialoga com as instituições da história da arte. Além de dar corpo à superfície plana da pintura, ela remete à escultura da santa feita no século 16 por Donatello. “A tradição está direto na cabeça da gente”, diz o artista. “Interessa-me que meus trabalho tenham vários tentáculos”, afirma, concluindo que esse entrecruzamento de conceitos e idéias “vai produzindo um mistério que protege o trabalho”.

 

[ CAYMMI ENSINOU-LHE A TER SIMPLICIDADE E ELEGÂNCIA ]

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NELSON FELIX: O ESPÍRITO DA COISA

Rodrigo Naves - 1998

Texto para o livro Nelson Felix – Editora Cosac&Naify – 1998

I

Em 1995, Nelson Felix e Luís Felipe Sá realizaram o vídeo “O oco”, uma obra que apresenta alguns trabalhos de Nelson Felix, ao mesmo tempo que faz uma reflexão sobre o conjunto de sua produção. Como o próprio título indica, o vídeo acentua um certo viés do trabalho do artista, a tendência marcada para sugerir uma interioridade nas coisas que vemos, para além de sua simples aparência.

Uma das partes de “O oco”, no entanto, radicaliza esse movimento e talvez por essa razão ajude a esclarecer — ao menos inicialmente — o sentido mais geral da produção de Nelson Felix. O segmento se chama “Série Genesis” e engloba três ações, todas próximas entre si. Na primeira, o artista faz um furo no tronco de uma árvore e introduz um pequeno pênis de cristal no seu interior. Posteriormente, presenciamos uma intervenção cirúrgica em um cão: o animal tem um de seus membros aberto por uma lâmina e um Buda de ouro é incrustado no osso de sua perna. Por fim, um brilhante é posto no interior de uma ostra.

O tom bíblico do segmento — “Série Genesis” — torna um pouco grandiloquentes as intervenções e sublinha um aspecto fundante que elas não me parecem ter. De todos os modos, há aí sem dúvida a busca de atos que dêem a esses seres uma dimensão oculta e insondável, um sentido misterioso que os diferencie dos demais seres. Mas para que esse processo ocorra será preciso estabelecer uma relação específica entre os elementos envolvidos, de modo a desencadear uma espécie de reação aversiva entre eles, sem o que tudo tenderia a uma uniformidade pacificadora, que afastaria a possibilidade de algo dentro de algo, num contato vital e conflitivo.

Vem daí a necessidade de agredir o tronco da árvore, furá-lo, e colocar no seu interior um corpo em tudo oposto àquilo que é vegetal — algo sexualmente afirmativo, translúcido e mineral. Operações semelhantes ocorrem nos dois outros momentos e nos levam a imaginar os estranhos metabolismos provocados por esses contatos angulosos. Num certo sentido, podemos ir mesmo mais longe: em vários aspectos, o movimento provocado no interior desses seres se assemelha à própria imaginação. Como no caso da ostra, uma partícula intrusa ativa mecanismos inesperados, com consequências igualmente pouco previsíveis. No entanto, como não podemos acompanhar os desdobramentos dessas reações voluntariamente provocadas, já que elas se dão fora de nós, temos que nos contentar em supor os efeitos desses cruzamentos. E com isso um mistério repleto de arestas e estranhas forças passa a povoar esses seres híbridos.

Contudo, por mais obscuras que sejam as reações desencadeadas por esses enxertos cruéis, algo da natureza das relações estabelecidas nos fornece pistas sobre os desdobramentos desses vínculos arbitrariamente criados. O atrito entre um pedaço de metal e o osso de um animal vivo pode, por exemplo, conduzir a certas mudanças na forma dos ossos, que lentamente tendem a assimilar o corpo estranho, envolvendo-o em meio a sua matéria, que progressivamente sofre alterações, calosidades provocadas pelo objeto incrustado. Até aqui não há nada de extraordinário. Trata-se de um acontecimento corriqueiro, conhecido pela ciência e apenas a gratuidade da intervenção guarda alguma estranheza. Mas o mesmo não ocorre com a relação subjacente — afinal, o que pensar da união entre uma imagem em ouro de Buda e o osso de um pastor alemão? As associações mais díspares poderiam ser feitas, os resultados mais variados poderiam surgir. A pequena imagem de Buda talvez extraísse do cão uma espécie de energia animal, crescendo incontrolavelmente e competindo com o próprio bicho que lhe serve de hospedeiro. Ou ao contrário: transmitiria ao cachorro uma espiritualidade que lhe é inata, envolvendo-o num halo de santidade que abrandaria seu lado animal. Ou ainda nada disso, quem sabe algo mais híbrido: um bicho de espiritualidade raivosa, tomado de uma hidrofobia tântrica — quem poderia dizer? Nesse ponto, a busca de transubstanciação dos elementos e dos seres teria algo de liberador, ao subverter a concepção dominante de relação entre coisas, transportando-as para um mundo imaginoso e repleto de possibilidades. O conjunto das concatenações mecânicas, das reações químicas, das causações lineares daria lugar a outros tipos de vínculo e resultado. E como a intenção desses atos não é a de remeter as novas realidades a causas primeiras e substâncias metafísicas, e sim de multiplicar as formas e suas origens, o projeto também se vê livre de qualquer vestígio escatológico, que o empobreceria em muito, ao pôr em ação movimentos decididamente regressivos.

Não custa insistir: a imaginação desses desdobramentos é atiçada pelas próprias relações que o artista estabelece, e nisso há um rigor plástico indiscutível. No entanto, a intervenção no cão irá cicatrizar, o tronco da árvore terá sua inteireza restabelecida e o brilhante será envolvido por uma pérola que o deixará oculto. Afora algumas ligeiras marcas, as superfícies retomarão uma aparência normal, embora no interior delas latejem profundas mutações. De todas aquelas intervenções restará apenas um relato — o vídeo, as histórias que se acrescentaram a ele, narrativas que se somam e se superpõem. Um procedimento semelhante ao das lendas e ao das mitologias acompanha então o trabalho do artista. Aos poucos certas situações originais desaparecerão e serão substituídas progressivamente por uma espécie de rumor, por uma prosa anônima que remeterá a lugares e objetos dúbios, em cujo interior talvez ainda se dêem transformações profundas, a cujas manifestações não temos contudo acesso.

 

II

 

Esse modo de conceber o trabalho de arte praticamente reverte algumas das características básicas da arte moderna, embora talvez o faça para manter no horizonte seu espírito crítico. Na obra de Manet, Picasso, Brancusi, Matisse, Cartier-Bresson, Miró, Mies van der Hohe ou Pollock — apenas para tomarmos como exemplo alguns dos momentos altos da arte moderna — o significado dos trabalhos se esgotava naquilo que mostravam, sem deixar resíduos. Tratava-se de propor a experiência de novas formas, de novas relações que mantivessem o real enquanto possibilidade, enquanto transformação potencial. E esse modo de proceder necessariamente supunha uma realidade que, em sua dinâmica, deixasse entrever uma tendência à diferenciação, movimentos de ruptura. A reflexividade da arte moderna nasce da apreensão crítica — que precisa se provar formalmente pertinente — desse processo, que para se mostrar realmente renovador precisava ser entendido como algo não substancial, como uma dinâmica em que decididamente tudo estava em jogo, avessa portanto a qualquer determinação misteriosa ou metafísica. A pertinência da superfície moderna reside precisamente na compreensão dessa realidade dessubstancializada, tanto no que diz respeito às relações de poder quanto no tocante à sua dimensão epistemológica. Assim sendo não me parece estranho que correntes modernas que caminharam em outra direção — por exemplo, o simbolismo de Odilon Redon, Gustave Moreau, Puvis de Chavannes — tenham perdido rapidamente a atualidade[1]. Para elas, a alternativa se apoiava nas projeções de um sujeito altamente diferenciado, capaz de visões peculiaríssimas. O mistério se deslocava — do mundo para o indivíduo —, mas se mantinha intacto.

A forte presença de tendências simbólicas na arte contemporânea — basta pensar nos trabalhos de Beuys, talvez o grande inaugurador desse novo simbolismo, de vários artistas ligados à arte povera, como Kounellis, Zorio e Mario Merz, em parcela da obra de Eva Hesse, e, entre nós, em trabalhos de Farnese de Andrade, Tunga, Nelson Felix e, a partir de 1992, em parte considerável da produção de Nuno Ramos — parece encontrar explicação, ao menos em parte, em algumas mudanças altamente significativas da dinâmica social. O desenvolvimento tecnológico exponencial, suas consequências na composição das classes sociais — o peso crescente do setor de serviços, em detrimento do trabalho industrial — e a insegurança provocada por um desemprego estrutural sem dúvida reduziram fortemente o potencial de dissenso no interior das sociedades contemporâneas. Além disso, os desdobramentos culturais do avanço tecnológico — a onipresença da mídia, as novas operações proporcionadas pela informática, enfim uma espécie de império da imagem nunca antes visto — dificultam crescentemente a própria experiência das dificuldades por que passamos, já que infiltra em toda a realidade uma fluidez, uma plasticidade e uma proximidade que parecem tornar provisórios todos os entraves, sem falar que a própria realidade — em sua opacidade, imprevisibilidade e resistência — tende a adquirir um estatuto fantasioso, que quase impossibilita sua simples menção, pois tudo se encaminharia para uma transparência absoluta, proporcionada pela ciência e pela técnica. Esses aspectos unidos à crise aguda dos projetos socialistas indiscutivelmente conduziram a uma colonização sem precedentes do mundo social, que por vezes se mostra absolutamente sem fraturas. Em vista dessa situação não é de estranhar que vários importantes artistas tenham abdicado ao menos em parte daquela visibilidade moderna que retirava suas energias de um mundo que se apresentava como uma forma imperfeita mas perfectível, e que agora adquire uma circularidade assustadora.

No trabalho de Joseph Beuys, por exemplo, é nítido o esforço para desvincular certos materiais de sua exterioridade estritamente instrumental — algo que, por algumas particularidades físico-químicas ou por quaisquer outras características, pode ser transformado em outra coisa, ou ser empregado para se fazer algo —, conferindo-lhes um sentido mais problemático, que em geral conduz a uma simbolização. Feltro, gordura ou cera de abelha[2] tendem em geral a deixar de se mostrar apenas como uma superfície material para, através de certas relações também formais, se apresentarem, por exemplo, como indeterminação, caoticidade, indistinção, e assim por diante.

Em “Queda de neve” — trabalho de Beuys em que várias mantas de feltro recobrem parcialmente três galhos de árvore —, o feltro sem dúvida funciona como um duplo da neve, numa operação de estabelecimento de semelhanças que lembra a “Cabeça de touro” de Picasso, na qual um guidão e um selim de bicicleta ganham as feições do animal[3]. No entanto, o trabalho de Beuys aponta também para outras direções. Em contato com os galhos ásperos, as mantas de feltro adquirem um poder de dissolução considerável. Com sua composição peculiar — o feltro não é propriamente um tecido, e sim um aglomerado de lãs e pêlos —, esse material transfere sua indeterminação à irregularidade espinhosa dos galhos, absorvendo-os. Nesse processo, o feltro portanto deixa de ser apenas um produto industrial para conquistar uma espécie de interioridade, um poder de dissolução que o organiciza, embora em “Queda de neve” essa dimensão se apresente apenas parcialmente. Se considerarmos ainda que Beuys utiliza o feltro sistematicamente, construindo desse modo uma trama de relações que reforça certos significados, fica razoavelmente claro que por meio desses procedimentos — que obviamente também supõem um rigor formal primoroso — esse material tende a ganhar uma carga simbólica intensa, que passa a constituir o sentido das obras em que ele comparece. E o conjunto da produção de Beuys, que certamente envolve outras dimensões, gera uma realidade cuja experiência conduz a camadas ocultas, alheias à instrumentalização que permeia o trato habitual com o mundo. A superfície da realidade parece estar inteiramente comprometida com o uso, e resta procurar outras instâncias de significação.

 

III

 

Em todos os trabalhos dessa vertente simbólica da arte contemporânea há um esforço para repotencializar a realidade. Estabelecem-se relações e cenários que escapam aos desdobramentos rotineiros e o mundo parece adquirir uma vitalidade nova, de consequências imprevisíveis. No entanto, tudo leva a crer que a própria dinâmica que conduziu a essa necessidade de simbolização acaba por solicitar também outras características dos trabalhos de arte. Não era apenas uma exigência banal que fazia Nelson Felix manter as intervenções que vimos anteriormente nos estritos limites de um processo sugerido, cujas consequências apenas podíamos imaginar. Qualquer materialização das promessas contidas nas obras ficaria aquém daquilo que se apresentava como pura possibilidade, mesmo porque reduziria-se terminantemente o leque de escolhas. Mas não é apenas isso que impõe restrições à concretização daqueles projetos fugidios. Transformados em realidades tangíveis, os enxertos de Nelson Felix dificilmente superariam em estranheza ou novidade toda a série de hibridismos e monstruosidades que povoa a cultura de massa e que ajuda a conferir ao mundo contemporâneo essa plasticidade supostamente capaz de quaisquer arranjos, de todas as soluções. Deslocadas para o mundo das coisas acabadas, aquelas possibilidades passariam a compor o rol das realidades construídas, instrumentalizadas.

Portanto será preciso insistir na suspensão do sentido dos trabalhos, procurar manter a todo custo um adiamento de significação, e isso a partir da própria forma das obras. Por essa razão se esclarece também a importância e a necessidade de narrativas que acompanhem essas produções. Não se trata de um discurso paralelo que ajude a entender o significado de trabalhos mais ou menos complexos. Trata-se antes de uma espécie de estimulação recíproca entre obras de arte e certos relatos, com o intuito de deslocar e postergar uma significação mais delineada[4]. Essa situação por certo deixa as obras numa posição difícil, em que os riscos de mistificação e de intimismo rondam-nas sem cessar. Voltar a uma noção romântica e animista de natureza pode ter lá seus ganhos, ao retirá-la do exclusivo âmbito do utilitarismo. Mas fica sempre o perigo de se recair num ocultismo estreito em que impera um pensamento mítico muito aquém das exigências contemporâneas. Nos nossos dias, quando um sem-número de trabalhos procura essa dimensão simbólica pela fetichização dos artistas que as produziram — seja pelo vínculo biográfico tortuoso, seja pelo uso de secreções corporais dos autores, ou ainda por um sentido que só se completa com a intromissão de subjetividades obscuras —, esse risco fica mais evidente do que nunca.

 

 

IV

 

Toda a produção de Nelson Felix tem uma feição orgânica inequívoca. O artista lança mão de formas tiradas do corpo humano, usa por vezes seres vivos em suas obras (plantas, animais etc.) e mesmo o caráter das relações que estabelece tem muito de troca de energia, de movimento vital. Com isso sua obra tende a existir praticamente em dois planos: um estritamente formal, que se entrega plenamente aos olhos do observador, e outro sugerido, ao qual não temos acesso direto e que possui uma vida interior misteriosa e intensa. Será a precisão na articulação dessas duas dimensões que conferirá ao trabalho não só uma particularidade em meio à produção contemporânea como principalmente um teor crítico distante das inúmeras mitologias intimistas dos nossos dias.

“Grande Budha” (1985) e “Cactus” (1994) lidam com essas passagens de maneira explícita e ajudam a entender melhor o sentido daquela articulação. Na primeira obra, seis garras de metal penetram o tronco de uma árvore à medida que ela cresce. O trabalho tem indiscutivelmente uma aparência agressiva e é justamente essa agressão que permitirá que a árvore se exteriorize, acentuando de maneira exacerbada um processo — o de crescimento — que de outro modo passaria despercebido. Ao ser pressionado por uma outra força, o tronco oferece uma imagem geral do que ocorre quando se pretende canalizar um elemento qualquer da natureza. No entanto, ao penetrá-lo a garra faz com que a árvore extravase e se mostre como potência excessiva, o que, com alguma diferença, também pode se notar nas calçadas que cedem à ação das raízes[5]. Menos vigoroso que “Grande Budha” — pois aquela oposição se reduz a uma duplicação —, “Cactus” também consegue transmitir impressão semelhante, ao fazer que a lâmina com pregos, por estranho espelhamento, intensifique a rispidez do cacto. Em ambos os casos é uma natureza ferina que desponta. A intenção de lhe conferir uma interioridade nem de longe conduz a uma intimidade meiga e ponderada, digna de afeição justamente porque doméstica, e que é corrente mesmo em boa parte dos discursos ecológicos contemporâneos.

Vários outros trabalhos de Nelson Felix revelam essa face aguda e cortante da natureza. A exposição de 1993 na Galeria Luisa Strina opunha duas peças bicudas, uma delas apoiada num coração de cobre, separadas por um leve tecido de metal. A delicada trama funcionava como um plano em que as peças de madeira se espelhavam, como na superfície de um lago. Na solidão da sala de exposições, as duas hastes voltavam uma para a outra suas pontas afiadas, sem que soubéssemos a causa do confronto. A própria natureza se desdobrava ameaçadoramente, opondo-se a si mesma. Uma de suas partes no entanto apoiava-se num coração solitário, sinal de que aquele enfrentamento tinha seus dias contados, que mancava de uma perna e não podia durar. E de fato havia no trabalho uma esterilidade precoce, uma energia celibatária, à maneira do “Grande vidro” de Duchamp, que zerava o confronto. Extremamente erótica, a obra via seu movimento detido, dada a impossibilidade de multiplicação entre duas forças masculinas. Isoladas, tendendo uma para a outra mas sem fusão possível, as peças acentuavam então uma individualidade angulosa, numa presença ostensiva e impotente: a membrana entre elas não seria rompida.

Um movimento semelhante ocorre nos desenhos de Nelson Felix, e na passagem que parecem solicitar para as esculturas de grafite. Os desenhos têm uma espacialização tortuosa, que não se satisfaz com os limites impostos pelo papel — e de fato eles conduziram às esculturas de grafite[6]. A tridimensionalidade acolheria melhor seus desdobramentos, daria margem às contorções que revelariam os fluxos que inervam a peça. Mas para que esse processo apareça claramente será preciso que o trabalho exponha todo seu volume, donde a necessidade de apoiá-lo contra a parede, em lugar de deixá-lo sobre o chão. O equilíbrio proporcionado pelos dois pontos de apoio — chão e parede — no entanto estica a peça, torna-a elo de ligação entre A e B, e consequentemente reduz a presença de suas sinuosidades: o que conduz não se mostra, o que se mostra não conduz. E o que dizer dessas línguas que serpenteiam incansavelmente, tentando transmitir seu fluxo ao meio, indecisas entre expansão e regularidade?

 

V

 

A natureza que a obra de Nelson Felix nos faz vislumbrar tem características particulares. Ela é excessiva, violenta, dificilmente instrumentalizável. As dormideiras utilizadas na exposição “Mesas”, de 1995, revelam bem esse último traço: são plantas que, tocadas, fecham-se imediatamente — falam portanto de um mundo que não se deixa manipular, recolhendo-se ao menor contato. Mas essa realidade vigorosa possui uma outra particularidade. Ela é incompleta, descontínua. Nada em seu movimento autoriza a suposição de um fluxo pleno, que sem obstáculos conduzisse de parte a parte, apresentando assim uma unidade sem fraturas, imagem de um mundo harmonioso e fecundo.

Ao mesmo tempo que sugerem uma interioridade, uma vida ativa e silenciosa, os trabalhos de Nelson Felix acentuam um isolamento desses seres povoados de energia. Por deslocamento, falta de função ou estranheza, as obras pedem uma ambiência que lhes restitua a organicidade, um meio em que se possam dar trocas entre sistemas diversos e complementares, que confirme as promessas do seu interior. Mas nada disso acontece. Como os corações de metal que aparecem em vários momentos de sua trajetória, há nelas uma pulsação que se vê estancada, uma cadência que se perde no vazio. Existe aí algo da solidão que permeia toda a pintura metafísica, uma falta de congruência que intensifica o desejo de um fundamento que dê unidade a coisas díspares.

Uma peça de 1996, “Máscaras”, revela com precisão essa marca do artista. O rosto, tronco e ventre de um homem foram fundidos em ferro. Côncavas, num primeiro momento as três partes parecem a imagem do interior de um corpo humano, para o que contribui a rudeza do ferro e as poças de azeite. Mas logo nos damos conta que são apenas um decalque de sua superfície. E que o líquido empoçado diz mais de recipientes abandonados ao relento do que de turvas secreções. A última camada do corpo humano, a pele, já não consegue transmitir vitalidade. Dentro e fora não se comunicam. E também alguns moldes de cavidades do cérebro — como em “Vazio”, de 1992 — apontam nesse sentido: formas biológicas — que por isso mesmo supõem um nexo com outras formas — totalmente isoladas, dada a falta de solidariedade com tudo que as cerca.

Mas talvez sejam “Vazio I” e “Vazio II”, expostos na Bienal de São Paulo de 1996, as peças que melhor lidem com essa questão. Novamente é um vão do cérebro que dá base às formas do trabalho, embora o conhecimento ou não desse fato em nada modifique a sua observação. Sustentada por cabos de aço, a escultura em mármore parece ver restituída sua posição num conjunto maior, que a envolve e dá sentido. O relevo sutil de suas superfícies acusa uma relação forte com o espaço, que desse modo passa a agir sobre elas. E a posição do trabalho lembra o deslocamento de um ser vivo no interior de um líquido, como ocorre com o “Peixe” de Brancusi, no qual as estrias do mármore dão a impressão de um peixe na água. Mas logo essa harmonia é rompida: sobre o chão repousa um outro trabalho, uma outra forma que em nada complementa a peça suspensa. Deslizando sobre o solo ela chama a atenção para uma região que contraria aquela organicidade aquosa. De um instante para o outro a realidade espacial se reinstala e ambas as obras se vêem isoladas no interior de uma caixa vazia, sem nada que proporcione contato entre elas. E as fendas abertas no chão, empastadas de graxa e azeite, tornam ainda mais material esse cenário de dispersão em que apenas o branco empresta alguma proximidade ao conjunto.

 

VI

Nos trabalhos de Nelson Felix se desenha uma realidade problemática, que não se manifesta plenamente assim como não se satisfaz apenas com uma interioridade amena, recolhida. Suas formas a todo instante remetem a um mundo a que ainda não temos pleno acesso, embora saibamos de algumas de suas características. Essa articulação de dois planos distintos mantém constantemente a tensão que lhe deu origem e sem a qual essa obra não teria sentido. Será preciso portanto resistir às tentações tanto de propor uma espécie de realidade insondável porém perfeita — num ocultismo que nos afaste de qualquer relação com o mundo visível — quanto de reatar com uma exterioridade absoluta, sem transformações possíveis. Esse atrito entre visibilidade e ocultamento recoloca a realidade como possibilidade. Uma imaginação se desprende dessas obras. Mas para que essa imaginação tenha eficácia ela necessariamente terá de supor uma intuição poderosa da realidade, sem o que tudo tende a girar no vazio.

No vídeo “O oco” as imagens com trabalhos de Nelson Felix eram entremeadas com cenas em que apareciam halterofilistas, pessoas sendo depiladas, tatuadas etc. São atividades triviais e sem maiores consequências, que têm em comum a vontade de dotar o corpo humano de formas e superfícies que em princípio não lhe pertencem. Contrastadas porém com as cenas que descrevemos no início deste ensaio adquirem um caráter mais profundo, a busca de uma plasticidade dócil, em tudo diversa daqueles cruzamentos imprevisíveis e opacos. E por proximidade trazem à mente toda a sorte de operações que nos nossos dias insistem numa intervenção patológica sobre os seres, na esperança de um controle total e absoluto de todos os processos, uma intervenção sobre a interioridade dos seres e dos processos sociais, mas que os considera como puras exterioridades. A essa imaginação fluida e prepotente o trabalho de Nelson Felix opõe uma imaginação que leve em conta a resistência do mundo, suas disparidades e heterogeneidade. Interrompida, descontínua, abrupta, talvez híbrida e mesmo um tanto cruel. Antes assim.

 

Publicado no livro Nelson Felix. São Paulo: Cosac & Naify, 1998.

[1] Sem dúvida, seria preciso analisar as particularidades de outras vertentes mais ou menos simbólicas, como a pintura metafísica, o surrealismo etc., sem falar, é claro, de Duchamp e de sua crítica à arte retiniana. Mas essa análise escapa aos objetivos deste ensaio.

[2] Existe toda uma polêmica em torno do significado desses materiais na obra do artista. Durante a II Guerra Mundial, Beuys era piloto da Luftwaffe e foi derrubado na Criméia. Os nativos ajudaram a salvá-lo, usando alguns desses produtos. A importância ou não dessa ocorrência biográfica na escolha desses materiais não muda em nada o sentido da presente argumentação.

[3] Devo essa idéia a Alberto Tassinari.

[4] Isso de fato ocorre com a grande maioria desses trabalhos. No caso de Beuys, todo o discurso em torno do projeto de escultura social cumpre um papel dessa ordem. Tunga e Nuno Ramos por vezes também associam narrativas a suas obras. A diferença entre os textos de artistas modernos e os de artistas contemporâneos dessa vertente mais simbólica também ajuda a esclarecer as peculiaridades da produção contemporânea. Nos escritos de Kandinsky, Klee ou Malevitch — apenas para tomarmos alguns exemplos — discutiam-se questões artísticas que, ao menos em princípio, precisavam o sentido dos trabalhos, seja por filiação histórica, por explicações formais ou por explicitação de intenções. E o pendor espiritualizante de vários desses artistas — Mondrian, Kandinsky e mesmo Malevitch — não mudava em nada a vocação iluminista de seus textos. Nos escritos desses artistas contemporâneos ocorre praticamente o contrário.

[5] Esse excesso também irá afetar a imagem de serenidade e contemplação que cerca a figura de Buda — tão recorrente na obra do artista, embora aqui apareça apenas no título —, dando à sua espiritualidade uma turbulência que talvez seja mais instrutiva que o simples endosso da elevação espiritual.

[6] Ver, a esse respeito, comentários de José Resende, Nelson Felix e Lygia Pape no debate transcrito neste livro.

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EVENTO ACHA CIDADE MORTA DENTRO DA CIDADE ATUAL

Lorenzo Mammi - 1997

Folha de São Paulo – 1997

 

Desde a primeira exposição, no antigo matadouro, o Arte/Cidade procurou garimpar espaços que estivessem de alguma forma esquecidos ou invisíveis – invisibilidade de significados, que não exclui uma visibilidade física gritante, como a do Vale do Anhangabaú, onde foi realizado o segundo bloco do projeto.

O Arte/Cidade 2, de fato, tratava de uma invisibilidade de superfície. O Arte/Cidade 3, ao contrário, descobriu uma cidade morta nas entranhas da cidade atual. O dado que mais impressiona, nessas ruínas, é menos a

monumentalidade do que a proximidade de lugares densamente freqüentados.

Surpreende nunca termos visto esses espaços, como não vemos os trens que atravessam quotidianamente a cidade. À diferença de Rio ou Salvador (para não falar das metrópoles européias e norte-americanas), São Paulo é uma cidade cega, que não vê a si mesma. O grande mérito Arte/Cidade é remexer nessa cegueira, cutucar a amnésia coletiva, não tanto de um ponto de vista

documentário, mas no plano do imaginário.

Ao trabalhar a cidade invisível como objeto visual e não apenas como história, faz com que ela seja percebida como algo que está aqui e agora, não só como signo passado ou possibilidade no futuro. E nos obriga, por tabela, a nos interrogarmos sobre o fato de nunca a termos visto.

Contudo, o projeto parece-me estar numa encruzlihada: até agora, apresentou-se como uma exposição de arte, mas essa classificação torna-se sempre mais problemática. A arte não é a única maneira de intervir visualmente num espaço, embora tradicionalmente seja a prestigiosa. Mesmo em suas formas mais abertas (instalação, site specific, land art), a obra de arte possui suas regras, sem as quais simplesmente desaparece como estético: quando se instala num espaço, chama-o a si, faz dele o espaço da obra; e seu significado pertence à história da arte (às outras obras), mais do que a um espaço ou a uma coletividade, ainda que possa incidir sobre eles.

Nisso está sua autonomia, que não pode ser revogada. Mas é sso, justamente, que a torna difícil de ser manuseada, quando o discurso que se pretende fazer com ela não é propriamente ou apenas estético. O problema do Arte/Cidade 3, enquanto exposição de arte, não é a falta de boas obras (há algumas, embora não muitas, e pelo menos duas bastante significativas): o problema é que, se as obras fossem outras, o significado da exposição seria mais ou menos o mesmo.

Talvez isso se deva a uma evolução natural: à medida que avança, o projeto adquire espessura, seu sentido se solidifica. Por isso mesmo, o espaço de manobra dos artistas se estreita e as possibilidades de gerar um significado autônomo se reduzem. Ou talvez a crise surja por termos chegado, dessa vez, ao cerne da questão: São Paulo não nasceu de um conjunto de moradorias, mas de uma empreitada industrial, que já embutia em si toda a violência posterior.

A descoberta da cena do crime, a exumação do cadáver é tão impactante que não deixa espaço para comentários. As obras ficam à margem. Quem sabe não seja o caso, em vista de um Arte/Cidade 4, de mudar radicalmente de fórmula, pensar em algo que não seja propriamente uma exposição, ainda que conte com a participação de um ou outro artista.

No entanto, como disse, há pelo menos dois artistas que conseguiram se inserir com autoridade no projeto – não por serem necessariamente mais hábeis ou inspirados do que outros, mas por terem linhas de pesquisas que os colocam naturalmente na nova situação, sem sacrifício nem soluções forçadas.

O primeiro é Nelson Felix, que despontou recentemente como um nome de peso nacional, com duas esculturas que foram a melhor obra brasileira na última Bienal de São Paulo: naquela ocasião, duas grandes formas suspensas de mármore branco reproduziam seções do cérebro humano, mas, para um espectador desavisado, mais lembravam dois cetáceos encalhados. No chão, abaixo delas, havia fendas úmidas, como se daquelas formas pingasse uma secreção capaz de corroer o concreto. Era um trabalho baseado numa idéia do orgânico como metamorfose, geração e degeneração contínua de formas. A intervenção no Moinho Central vai à mesma direção.

O Moinho é um edifício de seis andares, de que sobraram pavimentos e vigas, e quase nenhuma parede. Do ponto de vista formal, um prédio de múltiplos andares é uma diagramação do vazio, uma tentativa de reduzir o espaço aéreo em paralelepípedos.

Num prédio em ruínas, o espaço aéreo reconquista seus direitos: algumas divisões permanecem, mas revelam toda sua precariedade; o chão em que pisamos já não é tão chão como antes. Nelson Felix recortou grandes quadrados de concreto em um dos pavimentos e os suspendeu por cabos de aço a poucos centímetros do chão do andar de baixo. A sensação de alarme, proporcionada pelo equilíbrio precário das grandes massas de concreto, mistura-se ao fascínio pela multiplicação de perspectivas que os recortes proporcionam, reproduzindo, na vertical, a mesma fuga perspectiva que a derrubada das paredes criou na horizontal. A destruição da arquitetura, antes de chegar ao mero informe, gera uma multiplicação de possibilidades formais – uma metástase perspectiva como numa Prigione de Piranesi.

A outra artista que alcançou êxito pleno foi Laura Vince. Aqui também a estrutura da obra transgride a estrutura do espaço, com sua divisão por pavimentes. Nesse caso, porém, não há recortes brutais: apenas pequeno buraco, que deixa cair um sutil fio de areia. No andar de cima, a areia, amontoada na curva redonda de uma duna, abre-se progressivamente numa cratera, escorrendo para o andar de baixo. Uma construção em ruínas é uma construção que não consegue mais estancar o tempo. A areia é tempo enquanto erosão e tempo enquanto ampulheta. Mas, sobretudo, é tempo enquanto movimento que depende do vento, da umidade, do peso variável dos grãos e, no entanto, acaba criando formas perfeitas pela sua própria entropia, que equilibra e — cada movimento com um movimento oposto.

Assim, o monte de areia torna-se forma exemplar de contínuo temporal, em oposição ao edifício, forma exemplar da descontinuidade da história. E a areia recobre esse cubo industrial com a mesma regularidade inexorável e doce com que já recobriu as pirâmides do Egito. No fundo, a coluna de areia que oscila ao vento no Moinho Central, medindo a distância temporal entre teto e pavimento, é uma versão mais incorpórea de o trabalhos da artista: listras escuras que sugerem uma verticalidade possível ou serpenteiam no chão, deixando adivinhar uma curva invisível na atmosfera. De fato, desde que começou a fazer esculturas, Laura Vince busca pontuações rítmicas do espaço vazio, mais do que volumes construídos.

O êxito dos trabalhos de Nelson Felix e Laura Vince se deve sobretudo, a meu ver, ao fato de terem encarado o Moinho Central como um problema formal e não apenas como tema ou cenário. Assim, a história do edifício insere- se numa questão bem mais ampla: o contraste entre espaços ilimitados e construídos, tempos infinitos e descontínuos. 0 caráter individual e histórico do lugar não se dilui por isso – ao contrário, adquire maior pungência. E a obra de arte cumpre a função que, afinal lhe compete desde sempre: gerar identidade entre particular e universal.

 

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CORAÇÕES SOLITÁRIOS

Rodrigo Naves - 1995

Texto para o catálogo da exposição na Galeria Luisa Strina e Galeria Millan – 1995

 

São estranhos esses trabalhos de Nelson Felix. Convivem aí formas simples e corpos opacos; objetos familiares e órgãos que mal podemos reconhecer; materiais corriqueiros que dão forma a objetos extravagantes. Sobre uma mesa de pedra, o molde em ferro de um rosto. Dentro da máscara, a reprodução em metal de uma glândula pituitária. O local das refeições, do trabalho, de todas as operações que nos garantem proximidade ou domínio sobre os seres, de repente parece recuar, envolvido por uma radical mudança de sentido. Aquilo que se expõe sobre a mesa é o reverso da imagem que nos acostumamos a olhar. Poderia, a princípio, representar apenas um rosto triste, a atitude de compadecimento de quem procura acariciar a própria face apoiando-a sobre uma superfície. Mas o vazio do molde sobressai, e corrói a plenitude da expressão figurativa. Um pequeno abismo se abre sobre o tampo familiar. O que é ofertado à mesa parece então ecoar antigos rituais. O doméstico e o acolhedor guardam sacrifícios, ritos obscuros, significados esquecidos. Como as glândulas, segregam algo: separam e aproximam.

Além disso, um outro movimento vem reforçar ainda mais aquela sensação de estranheza. Em seus trabalhos, Nelson Felix põe juntos elementos que raramente estiveram unidos na tradição moderna, embora tenham certo peso na arte dos últimos trinta anos (Beuys, arte povera, Eva Hesse, entre outros). Refiro-me à combinação de rigor formal e um simbolismo meio opaco. Mesas por certo são objetos triviais, sem maiores implicações visuais ou plásticas. Feitas em pedra rústica, sólidas e massudas, elas adquirem porém um caráter híbrido que desloca seu significado, aproximando-as da aparência de um altar, com todas as consequências apontadas anteriormente. Por meio de escolhas precisas — de material, de formato, de disposição –, torna-se possível atingir um sentido visual límpido, a partir de construções banais, sem quase nenhuma significação que não aquelas conferidas pelo uso, no dia-a-dia.

Essa precisão visual contudo parece turvar-se intencionalmente. Afinal, esses corpos esquivos — glândulas, corações, plantas — sugerem uma significação que ultrapassa sua simples presença física. Como em alguns dos melhores quadros de Tarsila do Amaral — Urutu (1928), Composição (1930) –, tudo se arma para reforçar a irrupção dessas coisas pânicas e deslocadas, acentuando sua singularidade sem nexos. Sabemos que esses elementos devem ter um sentido. Experimentamos perceptivamente a combinação de isolamento e solidariedade entre os seres. E no entanto seu aspecto visceral acaba predominando, e seu significado parece escapar. A natureza de Nelson Felix tem uma face oculta, e reluta em se deixar compreender e manusear. As frágeis mimosas pudicas — essas plantinhas popularmente conhecidas como sensitivas ou dormideiras, e que se fecham ao mínimo toque — resumem bem o movimento desses trabalhos. Mal as tocamos, elas deixam de ser o que eram, e se fecham num silêncio retraído. O toque — e, de maneira geral, as tentativas de enquadramento da natureza — conduz a uma transformação inesperada, que ironiza a ânsia de domesticação.

Por essa razão, Nelson Felix precisou articular uma trama que aponte um novo tipo de significação, para além das configurações que simplesmente submetam os materiais a um sentido dado. Numa outra série de trabalhos — que prolonga as questões levantadas pelas Mesas –, uma obra sintetiza bem sua interrogação. Uma peça de mármore transita suavemente de uma forma regularmente ondulada para um aspecto mais orgânico. Um movimento interno parece presidir essas passagens, essas transições formais. Sobre a extremidade direita da obra estende-se uma leve malha de fios de cobre. Com sua sutileza, o tecido de metal produz a impressão de apenas materializar e conduzir uma trama de energias que anima a escultura. Mas aquilo que poderia se transformar num sistema imponente desemboca num fio tênue que liga essa peça a uma outra escultura, essa apenas ondulada. Sua energia já não consegue dar ânimo à regularidade formal. Sobre uma mesa também ondulada — o último trabalho dessa série –, três corações de ferro. O órgão mais interno, verdadeira metáfora da vida, parece um peixe fora d’água. Dois movimentos distintos — ondulação e pulsação — permanecem exteriores entre si, sem concatenação possível.

Aquilo que prometia ser um sistema a mais, fluido e previsível, não se cumpre. Afinal, teríamos apenas um outro circuito, a operar como uma máquina mágica — mas sempre uma máquina, sempre uma imagem da própria instrumentalização. A trama articulada pelas obras de Nelson Felix, ao contrário, tem nódulos, pontos cegos. A combinação de rigor formal e simbolismo constrói um sistema perverso e generoso que nunca se deixa apreender totalmente. A todo momento a limpidez formal se vê turvada por opacidades viscosas, por sentidos espessos. Ao mundo feito se opõem corpos e seres cujo significado apenas vislumbramos. Uma realidade orgânica e deslocada sugere uma infinidade de sentidos. A natureza deixa de ser somente o suporte de operações ordenadoras para se converter numa imaginação em ato. Obscura, mas não obscurantista, repleta de possibilidades. Nessas obras, a estranheza é o sentido que ainda não ser revelou por inteiro, sempre na dependência de sua inscrição, de suas constelações. Aqui o coração pode ser uma metáfora errante, ou simplesmente um músculo sem vocação.

 

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NELSON FELIX NA LUISA STRINA

Agnaldo Farias - 1990

Revista Guia da Artes – 1990.

 

A recente exposição de esculturas de Nelson Felix demonstra que o seu raciocínio espacial não se limita à aparência dos objetos. O artista não visa apenas a presença apurada das suas peças, que se impõem espraiando-se em um vácuo, o que ele atinge explorando com habilidade os procedimentos peculiares ao ofício: as relações entre massa e volumetria, a experimentação atenta da resistência dos delicados materiais empregados, e a sintonia sutil entre forma e estrutura. Não lhe basta o espaço que se irradia internamente delas, da sua aura de respeitabilidade, produto de suas formas conspicuamente ancestrais, e de sua materialidade densa e exata, feita de madeira, pedra e pó. Indo além deste efeito, Felix lembra que suas peças estão colocadas próximas uma das outras e que, além disso, também habitam um lugar.

Sob qualquer ângulo vê-se que elas não estão fechadas em si mesmas. Além de conviverem, enredando-se mutuamente, roçando-se, estão inscritas em um ambiente, um espaço, que as abriga e que entra em relação com elas, que se modifica e que as modifica. O vazio que há entre elas é, portanto, pura ilusão. E a prova se obtém com o corpo

em trânsito do espectador que, ao passo em que vai desvelando as paisagens, intercepta o timbre singular de cada uma das vozes.

Ressonância parece ser uma palavra-chave deste trabalho. Transmutação parece ser outra. O corpo do espectador dialoga com a escultura, que dialoga com ele, com as esculturas vizinhas e com a arquitetura que contém a todos. A reverberação se expande ilimitadamente indicando que o conjunto foi concebido como coisa única, mesmo que agora se assemelhe a um vitral fraturado. As peças entrecruzam o ambiente indicando eixos verticais, diagonais e horizontais. Fendem o espaço e antagonizam a rigidez da arquitetura ou se enamoram dela, quando não negam totalmente arrojando-se ao chão até se pulverizarem.

Mas não é somente nesta direção que esta obra se estrutura. Daí o recurso a palavras que aludem ao efeito de contigüidade. O diálogo acontece porque o mesmo raciocínio preside a escolha e o tratamento dos materiais.Também eles são tratados de modo a induzirem, simultaneamente, movimentos que os relaciona com as peças vizinhas, e um outro, de direção inversa, rumo ao seu próprio interior. O exemplo mais notável dessa operação está no uso que Felix faz da grafite. Depois de anos trabalhando com desenho, ele chegou à escultura levado pelo desejo de “tridimensionalizá-la”. Fez com que ela passasse de meio para alvo de expressão. No desenho, o desgaste do material, sua impressa: numa folha de papel, dá lugar a uma obra; já na escultura, seu desgaste, o esforço despedido no descamamento da barra maciça, dá lugar ao desentranhamento do material, vivificado pela mágica do artesão. Felix incorpora nas formas singelas e essenciais das suas esculturas a lição de Perret, para quem a arquitetura era a arte de fazer cantar os pontos de apoio. Polindo suas superfícies, desbastando seus excessos até atingir reduções pontuais ou longilíneas, ele tensiona o corpo e a pele do material até fazê-lo ressoar.

A passagem, o diálogo, acontece em todos os sentidos. O mais íntimo ocorre nas peças de pedra que possuem fragmentos de ouro em seu interior, da mesma forma que as de grafite trazem embutidas pequenos diamantes. O artista, artífice de encontros, promove cerimônias secretas que se desenrolam no interior indevassável dos objetos.

 

 

 

 

DE CORPO E ALMA | Wilson Coutinho

In: Rio Artes, março 1993

 

0 ARTISTA NELSON FELIX INAUGURA, EM ABRIL, UMA NOVA GALERIA NO RIO, PUBLICA UM LIVRO SOBRE AS SUAS OBRAS E MOSTRA UMA SÉRIE DE ESCULTURAS, INSPIRADAS EM UM CLÁSSICO DE ANATOMIA

O ateliê em Nova Friburgo, estado do Rio, com seus 70 metros quadrados, parece uma oficina de marceneiro. Tem uma talha – espécie de guindaste – que serve para erguer pesadas esculturas; uma serra circular de mão, o chicote, útil para a modelagem da madeira, variados tipos de martelos e, na parede, dois pares de luvas operárias nas cores amarela e cinza. No chão, um polvilho púrpuro: é a serragem de uma madeira chamada roxinho, uma preciosidade da Amazônia, transformada agora em quase quatro metros na forma de uma escultura pontiaguda, que representa a medula óssea.

Nelson Felix, 39 anos, magro como um monge ascético, com um queixo ornado por uma barbicha de Rasputin, com dificuldade, ergue e coloca debaixo da escultura púrpura os oito quilos e cobre com artérias e volumes. É um suporte de um denso coração. Esta obra- Medula – está sendo exibida em São Paulo na prestigiada galeria Luisa Strina, até 4 de abril. Outra mostra, com oito peças, poderá ser vista no Museu de Arte de São Paulo (MASP). No Rio, a partir de 22 de abril, Nelson inaugurará a galeria Paulo Fernandes (Rua do Rosário, 38), a mais nova da cidade e, em 24 de junho, estará no Museu Nacional de Belas Artes (MNBA), autografando um livro sobre as suas obras, com texto do crítico português Alexandre Mello.

O ateliê e a casa do artista ficavam, anos atrás, numa íngreme pirambeira, mas a compra de uma possante caminhonete D20 fez com que Nelson – arquiteto também – urbanizasse a área, de modo que o carro pudesse entrar no ateliê para carregar e descarregar as suas esculturas pesadas e enormes. Hoje, avista-se uma calma paisagem em volta, mas o ferro, a madeira, o chumbo e a grafite, materiais que o artista usa em seu trabalho, contrariam a ordem bela da natureza e respiram trabalho, quase um trabalho de indústria, que as luvas operárias na parede não desmentem.

Não foi sempre assim. Ele começou sua carreira em 1980, expondo na Jean Boghici desenhos hedonísticos, irônicos, carregados de humor frívolo, catados na iconografia das histórias em quadrinhos. Poderia ser dele o primeiro vagido no berçário da Geração 80, no que ela tinha de infantil porque, alguns anos depois, via-se nas galerias cariocas simulacros de pátios de um recreio de jardim de infância. Nelson fugiu do playground e refugiou- se em Florianópolis, não desejando ser o precursor de uma geração que apostara suas fichas em Walt Disney. 0 fato é que o público gostou e quem tinha dinheiro comprou os seus trabalhos. Nelson estava de bem com o mercado, tanto que pôde passar quatro meses na Europa. No fundo estava tenso e em crise. “Eu só conhecia os gênios da pintura”, brinca ele, referindo-se aos álbuns que popularizam os grandes mestres do passado. “Comecei também a questionar a facilidade de minha mão”, explica. Um livro do poeta R. M. Rilke bateu-lhe no cérebro como o clarão de um raio. 0 poeta mostrava o quanto eram inúteis a ironia e a brincadeira, marcas de seus desenhos, quando se aspira à profundidade.

Nos anos seguintes, Nelson estava tão distante da arte infantilista, que já se apostava em sua maioridade. Fazia desenhos puramente visuais, usando grafite com chumbo e, em 1990, na Luisa Strina, era um artista que usava uma semântica estrutural, buscando na sua obra a expressão de conceitos mentais que erradicavam, de maneira brusca, o seu aprendizado um tanto quanto espontâneo. Na exposição exibia longas esculturas de grafite e jogara no chão da galeria um minúsculo diamante. A idéia central era a de “cristalização” na medida em que o diamante é o seu ponto máximo, ao menos o ponto máximo da grafite. “Diamante e grafite são carbono puro”, explica o artista demonstrando a relação conceituai entre os dois materiais. Escultor com um trabalho culto, ganhou, em 1991, a cobiçada Bolsa Vitae de Arte, recebendo US$ 1.500 por mês, o que lhe permitiu passar pelo furacão da crise econômica pensando e realizando suas esculturas.

É certo que fizera anteriormente um trabalho decisivo para a sua nova fase. Ele o chamou de Cabeças Felizes e era uma espécie de investigação interior e anatômica, uma mistura de idéia e materialidade física, de corpo e alma.Todo o mistério estava na glândula pineal, a mesma que Descartes cismou que era o local, onde se depositava a inteligência ou na linguagem da época, a alma. Ele descobriu que o crânio não era uma massa óssea compacta e que havia um buraco que avançava até a medula. A sua idéia foi a de moldar esse vazio, uma “forma praticamente desconhecida”, segundo o escultor.

Neto de médico e filho de um patologista-, Nelson detestava medicina. “Eu via sangue e desmaiava. Estudava tudo, menos o corpo humano”, confessa. Hoje, em seu ateliê, o livro mais estudado é o famoso Tratado de anatomia humana, de L.Testut, professor de anatomia da Faculdade de Medicina de Lyon, uma obra publicada em 1902. São quatro grossos volumes, com mais de 1000 páginas, com elaborados desenhos de G. Devy e S. Dupret. É dali que tem partido a matriz de suas esculturas.

Nelson estuda os desenhos anatômicos, faz projeções de seus vários lados, desenha e depois, com uma faca de cozinha, modela-os em polipropileno – material muito usado para as pranchas dos surfistas. Essa física do corpo não é, contudo, um naturalismo nem uma representação em volume de nossos ossos. Em Línguas, uma espécie de medula é sustentada por 30 budas de bronze, cada um com três centímetros de altura, mesclando a relação matéria e espírito (Nelson é, por sinal, zen-budista e admirador das pinturas eróticas e esculturas fálicas encontradas em Pompéia), que define esta sua nova fase. Camisas, porém, feitas de chumbo, atravessadas por uma haste de granito, são sombrias, melancólicas e puramente visuais. “É uma espécie de poesia sobre a morte”, diz o artista, trabalho que nasceu simultaneamente à morte de seu pai.

Anatomista do espírito e escultor do corpo, Nelson Felix, carioca casado, dois filhos, vegetariano de duas décadas entra, este ano, com quatro exposições, em sua fase madura. Suas esculturas – um véu feito de crochê de cobre envolve as cabeças enferrujadas no trabalho Cabeças – primam por serem extremamente objetivas sem destruir uma interrogação mística e poética sobre as coisas, como se o interior do corpo ainda fosse invisível, misterioso e sagrado.

 

 

 

 

 

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ESCULTURA REVELA MODERNIDADE DE NELSON FELIX

ALVARO MACHADO - 1990

Folha de São Paulo – 1990

NELSON FELIX – Desenhos e esculturas Vernissage hoje às 19h, na galeria Luisa Strina (r. Pde. João Manoel, 974-a, tel. 280-2471, Jardins, zona sul). De segunda a sexta das 10h às 20h, sábado das 10h às 14h. Até 19 de julho.]

A individual do carioca Nelson Felix que a galeria Luisa Strina inaugura hoje às 19h compõe, com as exposições que o artista tem realizado desde o início da década no Rio e em São Paulo, uma obra maior que as esculturas e desenhos dispostos no espaço da galeria. O conjunto dessas exposições se inscreve não apenas no olho do espectador, mas, ao recusar a reprodução de padrões, na própria linha do tempo, que compreende mudança e renovação.

Característica comum à trajetória do artista e do buscador, a inquietude de Felix revela-se na evolução das técnicas e materiais das últimas exposições: os desenhos “espichados” da individual de 84, na galeria Paulo Figueiredo, começaram a dividir espaço, em 88 na Luisa Strina, com monólitos de grafite puro que ampliavam a presença e a reflexão sobre a matéria dos desenhos.

Apesar de ter ganho no ano passado o prêmio “Melhor Desenhista do “Ano” da Associação Paulista de Críticos de Arte, Felix mostra nesta exposição predominância de esculturas, que evoluíram em tamanho e passaram a incorporar elementos que embora às vezes quase invisíveis em proporção aos grandes blocos de grafite, ou mesmo detectáveis apenas na descrição do catálogo da exposição, estabelecem um diálogo táctil com o olho que contempla.

Essa tactilidade, a presença do próprio objeto sobrepondo-se ao possível discurso das formas é bem traduzida nos títulos das obras – “Colocar os Pés Sobre o Chão Firme”, em 88, e “Vem e Vê” na atual exposição – e insere o artista na tendência mais consequente da arte contemporânea, que se distancia da metáfora e apenas tange o símbolo, contornando definitivamente, em sua trajetória, o inferno da “pós-modernidade”. Essa busca da “presentidade”, que é simples, mas não fácil, insere o artista na linha de frente da arte contemporânea.

A escultura “Vem e Vê”, de 3 metros e 30cm de altura, teve um processo de confecção que merece ser descrito: na impossibilidade de conseguir um único bloco de grafite nessas dimensões (o carbônico puro, ou grafite, é cedido ao artista pela empresa de geradores elétricos Carbovaz), Nelson Felix emendou três grandes peças através de encaixes situados no interior dos blocos. Antes de soldar definitivamente os encaixes, o artista colocou no interior dos blocos três pequenos budas – imagem popularmente associada à integridade e à interioridade – que ele mesmo moldou em ouro maciço.

Os materiais usados numa única peça são contrastantes não só nas dimensões, mas em sua própria natureza física. As esculturas “Vem e Vê” aliam granito e marfim, madeira e diamante, ou ainda grafite, latão, cobre e pó de cristal (esta, horizontalizada no chão numa coluna vertebral que se desmaterializa progressivamente até uma faixa de brilhos), solicitando ao visitante uma percepção que muitas vezes está além de sua própria compreensão.

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NELSON FELIX CULTUA ESPAÇO ABERTO

Nelson Aguilar - 1988

Folha de São Paulo – 1988

 

Nelson Felix construiu uma paisagem na galeria Luisa Strina. É a partir do descortinamento de uma extensão com relevos, reflexos e outros acidentes que se dá a exposição. As peças pousam no assoalho como picos eólicos ou dunas. Daí advém a associação imediata com o parque de pedras de Stonehenge, oriundo do último Neolítico, com um campo de menires bretão ou marcos à flor da terra.

O produto artístico provém de um fazer, não é natural, mas na forma deste produto a finalidade manifesta-se tão desligada de qualquer submissão a regras arbitrárias, que desponta como um produto da natureza, observa Kant. O objeto cultura adquire tamanha desenvoltura que parece estar milenarmente aí. A mostra enuncia a paisagem ou pelo menos o culto ao espaço aberto que possuíam os primeiros escultores erigindo peças que instituíam um centro de energias, proto-obeliscos que captam o espaço circunvizinho.

Colocar os pés sobre o chão firme chama-se a série de peças verticais que desfilam na mostra. Numa delas, composta por 22 elementos, Nelson Felix detêm-se no estudo das atrações, entre eles. As relações das mônadas de grafite forma parentesco casuais e indissolúveis. Remetem-nos ao enigma da unidade na multiplicidade.

Faz-nos lembrar as notas para a recordação do mestre Caeiro escritas por Álvaro de Campos, heterônimo ativista de Fernando Pessoa. “Olhe, Caeiro… considere os números… onde é que acabam os números? Tomemos qualquer número – 34, por exemplo. Para além dele e temos 35, 36, 37, 38, e assim sem poder parar. Não há número grande que não haja um número maior…” “Mas isso são só números”, protestou o meu mestre Caeiro. E depois acrescentou, olhando-me com uma formidável infância: “ o que é o 34 na realidade?”

EXIGÊNCIA ASO SENTIDOS

Caminhamos até as quatros agulhas, viagem longa devido à exigência que cada momento pede aos sentidos do excursionista. Grafite, calcita e diamante marcam o apogeu da tactilidade e da luminosidade da exposição. A pedra branca fortemente texturada recebe todo o influxo liso de suas vizinhas negras.

A grande qualidade do escultor está na compreensão e na interpretação da contiguidade. Isso se manifesta igualmente na composição horizontal, Chão, onde a sucessão de discos de cobre, latão, ferro, estanho e chumbo, eis o virtuosismo da matéria, explode em forma vazia, vestígio de ocupação anterior, na praia em pó de grafite. Aqui ocorre a desmaterialização da progressão, pois os discos multiplicam de dimensão À medida que se aproximam do ponto de chegada, vazio.

Nelson Felix exibe desenhos também. Prolongam o evento tridimensional, diríamos que são mesmo homólogos. Ônibus trabalha o sentido de horizontalidade e outros, nomeados Montanha, alinham-se verticalmente. Para edificar estes cúmplices da escultura, o autor vale-se de montagem de folhas de mesmo formato. A divisão desempenha papel fundamental tornando a elevação ou a extensão marcadas por estágios, escandida em sua pretensão aumentativa. Nos perfis das montanhas, o papel designa o motivo, pois, o fundo plúmbeo constitui também a forma de cada desenho, o branco valendo como passe-partout. O pastel se introduz à maneira de veio aurífero numa jazida. Resultam cores preciosas que têm um poder “aparicional”.

A mostra tem a qualidade do espaço habitado. Certos aspectos só se revelam mediante um longo período de germinação ao lado da peça. Gostaríamos de saber mais acerca do que o artista chama “9 mil paisagens para um novo christo”, porém o catálogo-cartaz é tão silencioso quanto as esculturas no que diz respeito a um texto não enumerativo.

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NEGRAS PAISAGENS LUMINOSAS

Marcus de Lontra Costa - 1984

Revista Módulo – 1984

 

O desenho como território da confissão livre das correntes que lhe impunham a função de base, de projeto, passagem para o suposto reino das obras acabadas, o desenho se fez como local da dúvida. A modernidade incumbiu-se da ruptura de um suposto casamento feliz.

Registro dos passos, reduto da simplicidade e da ausência, jamais há de se impor ao desenho as seduções da ordem e do autoritarismo. No meio da urbe, isolado num rochedo em alto-mar, o artista, desenhista, contenta-se com pouco: escuta o barulho das ondas e das buzinas, pressente o cheiro de sal e de petróleo. E se o desenho se presta à representação, à cópia, ao símbolo, ele se faz fundamentalmente como essência.

Num hipotético mundo (cada vez mais próximo) dominado pela setorização, pela hierarquia e pelo militarismo, o desenho se fará presente nos painéis glorificadores da propaganda oficial; ele, porém estará vivo, sobretudo, nos banheiros públicos, nos raios da cultura, nos muros dos parques proletários e nos cadernos esquecidos num canto qualquer da gaveta. Lápis e papel, nada mais. Riscar, rabiscar, não obedecem a ordem alguma. O desenho é a maior “bandeira”, incorrigível e inevitável.

Para as pessoas da nossa geração, filhotes do autoritarismo, o desenho é a história do nosso caminho. Enquanto o país explodia nos campos, quartéis, fábricas e universidades, a criança descobria o mundo através dos desenhos animados da televisão e das histórias em quadrinhos, nas bancas de jornais. Tempo que segue, rumo que se alterna, 100 mil pessoas na rua são silenciadas por um forte “cala a boca” militar. Adolescente, o sexo se insinua, delirante, pelas nádegas, vaginas, falos, no heroico traço de Carlos Zéfiro, paraíso da descoberta, escondido entre os livros de matemática e gramática portuguesa. História do Brasil, histórias do prazer que se escondiam no pensamento pousado entre as coxas roliças da professora… Pouco depois o país desaba de vez no seu enorme baixo-astral, capitaneado por esse general que ainda hoje aparece na televisão travestido de velhinho-esclerosado. A situação da época exige silêncio, proteção; o sistema social impõe isolamento e a falta de circulação da inteligência.

O desenho, irrefreável, se instala como elemento de subversão. Nas agradáveis conversar após arato, o desenho é o nosso sinal de troca e mantem acesa a chamada esperança de um dia poder vir a ocupar galerias, salões, museus e todas as praças de apoteose que haveriam e haverão de ser construídas por uma geração abraçada com a ânsia de ser feliz. Todo esse papo, por quê? Ora, foi daí que a gente surgiu, taí Nelson Felix. Quando, três anos atrás, conheci os seus trabalhos numa galeria carioca, senti vontade de lhe dizer: cara, até que enfim a nossa coragem, íntima, está passando a se expor, a ser coragem coletiva. No carro, com Sandra, deitava entusiasmo, o desenho me fazia viajar muito mais longe e rápido, foi curto o trajeto para a minha casa. Identidade total: Narciso diante de seu espelho.

Hoje, num prédio do bairro do Flamengo, desses que os arquiteto da turma do less in more sempre tentaram destruir, eu revejo alguns desses trabalho. Nelson e eu não somos mais os mesmos e, para mim, os desenhos são simples e agradáveis exercícios de um artista “virtuose”, narrativas de forte apelo literário e que foram apropriadas pela caretice circulante. Acontece o seguinte: num país como o nosso, sem tradição do olhar, o comprador é normalmente desinteressado ou burro, a maioria dos “marchand’s d’art” assemelha-se a vendedores de bazar e os supostos responsáveis pela reflexão não passam de pedantes patrulheiros a fazer da ironia e da retórica o seu ganha-pão. No meio disso o artista se sacode e tenta, se possível, viver decentemente. Nelson Felix virou, de um dia para o outro, a Shirley Temple da arte carioca: os intelectuais torciam seus narizes e os compradores, generosos, escancaravam as suas carteiras. Retira estratégica: o artista recolhe-se, viaja, Florianópolis, Cordilheira dos Andes, o espaço do artista é o espaço do mundo. Dois anos depois reaparece e todos afirmam que ele não é mais o mesmo. Inverte-se o processo, quem gostava não gosta mais, quem não gostava passa a gostar. Maniqueísmo panaca: o que importa é o caminho do artista, o percurso do desenho. Só que a arte, no Brasil, insiste em viver a era pré-darwiniana.

Maios, 1984. Nelson Felix me mostra seus trabalhos mais recentes, que serão expostos na capital paulista. Neles foram eliminados alguns apelos gratuitos da narrativa, o artista economiza, faz do papel e do grafite a história de seu saber e do seu fazer. Riscos, gestos, pressão, atritos, cobrir largas e negras superfícies. Mantem-se, entretanto, a presença da figura, a paisagem permanece sendo a premissa de seu processo criativo. O gráfico, o grafite, o gesto são as suas armas. A repetição desse gesto – o traço é o gesto do desenho – espalha-se pelo espaço, ele percorre o bloco, todas as folhas, as capas, incorporando-as num único desenho, único elemento. Essa repetição do gesto (como a repetição das folhas do bloco), no qual altera-se somente a variação do sentido, compõe a narrativa, ela é a estrutura, a forma e a matéria. O papel ameaça romper-se, ele é “tensionado” por essa força, por esse peso, a repetição provoca o acúmulo da matéria, e essas negras superfícies, repetidas, provocam o reflexo, o brilho, o tom prata. Não há espaço, aqui, para a “fachada”, não existe o revestir-se, o esconder-se. Trata-se, pois, de trabalho no qual a “figura da paisagem” se faz pela elaboração do construído, pelo interesse de desmitificar o processo, revelando-o como fruto e resultado da base estrutural. Assim, a inserção de pequenos sinais de cor (ouro, vermelho e verde) sugere a idéia de movimento e provoca ambiguidade: a opacidade da cor e a luminosidade do negro; a matéria como fruto da construção, estrutura, e a matéria inseria, leve, como aquarela, gesto.

Neste território preciso e precioso do desenho, liberdade e rigor, confissão e mistério, Nelson Felix constrói e reconstrói o seu trabalho. Distanciado das oscilações pendulares que alguns tentam impor à arte, sujeito, porém, como qualquer mortal, Às chuvas e trovoadas, ele parece querer sempre afirmar que as árvores e as pedras da montanha se compõem de terra e água. Pó, grafite, fumaça, estrutura, construção, luz. Firme e forte. Nelson Felix.

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